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“A RELIGIÃO DO CAPITAL” DE PAUL LAFARGUE

Allan de Campos Silva


Livro de Paul Lafargue, célebre autor de "Direito à Preguiça" e contemporâneo de Marx, toma a Bíblia emprestada para escrever o seu próprio evangelho dos amaldiçoados pelo Deus-Único do Capital



Acaba de ser publicado no Brasil o livro A religião do Capital (1887) de Paul Lafargue, célebre autor de Direito à Preguiça e contemporâneo de Marx. Com tradução de Alexandre Barbosa de Souza e prefácio e organização de Iná Camargo da Costa, a edição, à cargo da Edições 100/cabeças, é impecável, com o perdão do trocadilho, já que se trata de uma publicação encharcada na religião cristã, na forma e conteúdo.


O projeto gráfico – dos tipos e diagramação aos acabamentos em vermelho-sangue nas bordas das páginas – pode ser tomados, por engano, com um missal romano. Nada mais coerente, já que Lafargue toma a Bíblia emprestada para escrever o seu próprio evangelho dos amaldiçoados pelo Deus-Único do Capital: os condenados “a comer o pão coberto de escarro e a beber a água suja de lama” (p.45).


Ao colocar em curso a sua escrita satírica, implacável e escatológica, Lafargue prenuncia as formas breves de Kafka, os dramas de Brecht, ou a prosa política de B. Traven. Como em seu Catecismo dos trabalhadores, um texto mordaz, no qual a classe trabalhadora responde em coro e de forma profundamente consciente às perguntas do pastor, vocalizando uma liturgia profana, a meio passo do teatro de arena:


P: – Como o Capital, seu Deus, recompensa você?

R: – Dando trabalho todo dia para mim, para minha mulher e para meus filhinhos

[…]

P: – Como seu Deus o castiga?

R: – Condenando-me ao desemprego, quando então sou excomungado; proibindo-me a carne, o vinho e o fogo. Nós morreríamos de fome, minha mulher e meus filhos

[…]

P: – Você receberá uma recompensa depois da morte?

R: – Sim, uma muito grande. Depois da morte, o Capital permitirá que eu me sente e descanse.


Textos como os de Marx ou de Lafargue, escritos contra a alienação, devem percorrer no escuro o caminho das violações para que o leitor alinhe os pontos e desvele por conta própria a origem dos seus males. Aliás, Kafka, que também emulou textos sagrados do judaísmo, o fazia para desferir patadas contra a lei religiosa. Dos textos de Lafargue podemos esperar coisa bem semelhante: se dobram diante do altar da religião do Capital, somente para atacá-la com mais força e bem de pertinho.


A religião do Capital é composta por O congresso de Londres; O catecismo dos trabalhadores, Sermão da Cortesã, Eclesiastes ou o livro do Capitalismo, Lamentações de Jó Rothschild e Preces Capitalistas, soma-se ao livro os ensaios A questão da mulher e O socialismo e os intelectuais, estes escolhidos pela prefaciadora chamando a atenção “por sua impressionante atualidade”, como ela nos diz. Cada um dos ensaios é capaz de oferecer vislumbres valiosos sobre o tempo e a luta dos socialistas do XIX e dos anti-capitalistas do século XXI.

 

Allan de Campos Silva

Publicação original em:

 


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