VIVIANE VIEIRA
Especial para a IK

Rapaz carrega sacos de carvão em bicicleta em Nacala, Moçambique
Em janeiro de 2021 a mineradora Vale anunciou sua saída de Moçambique. O motivo declarado como central é que a empresa está atenta às urgências atuais do planeta e reforçando o pacto com a sociedade. Por isso a exploração de carvão mineral está fora de sua agenda ambiental, visto que a partir de agora a empresa está empenhada em reduzir a emissão de gases para tornar-se carbono neutra. De fato, o carvão mineral é altamente poluente. Foi, por exemplo, em consequência da queima desse combustível fóssil para produção de energia que Londres viveu o Grande Nevoeiro de 1952, o Big Smoke, quando uma densa camada de fumaça encobriu a cidade inglesa e provocou a morte de milhares de pessoas por problemas respiratórios.

O Grande Nevoeiro de Londres (1952)
Atualmente, na cidade de Moatize, Moçambique, onde a Vale extrai o carvão a céu aberto, o cenário é de uma nuvem poluente cinzenta que envolve o distrito, cuja fuligem cobre a superfície de casas, móveis, alimentos, vegetação, envolve os corpos dos moradores e também provoca corriqueiros problemas respiratórios. Esses apontamentos são feitos desde o início das atividades em 2011 e não se restringem à área de extração. Residentes de todo o percurso logístico, que conecta Moatize ao porto de Nacala, também sofrem com o rastro de fuligem que os trens cargueiros deixam, numa situação que faz lembrar relatos, por exemplo, da comunidade de Piquiá de Baixo, no interior do Maranhão. Essa comunidade é vizinha da ferrovia Carajás, concessão da Vale, e vive também há 10 anos em meio a poluição, nesse caso, em consequência do rejeito do minério de ferro.
Com isso, parece razoável que a empresa se volte para as questões ambientais. No entanto, o debate sobre poluição, com propostas de ação para a diminuição de emissão de gases, tem abrangência internacional ao menos desde 1992 com a Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente, mas, naquele período, a então estatal Companhia Vale do Rio Doce estava há poucos anos de ser privatizada. Um processo que abriu o capital da empresa e a colocou, em 1997, no mercado de ações. A partir disso, a atuação da empresa expandiu para outros Com isso, parece razoável que a empresa se volte para as questões ambientais. No entanto, o debate sobre poluição, com propostas de ação para a diminuição de emissão de gases, tem abrangência internacional ao menos desde 1992 com a Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente, mas, naquele período, a então estatal Companhia Vale do Rio Doce estava há poucos anos de ser privatizada. Um processo que abriu o capital da empresa e a colocou, em 1997, no mercado de ações. A partir disso, a atuação da empresa expandiu para outros países e tomou novas proporções fantasmagóricas. Já em 2013, quando ocorreu a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Ri0+20, o ativista moçambicano Jeremias Vunjanhe, na altura membro da organização “Justiça Ambiental”, tinha como principal pauta apresentar os problemas em Moçambique em consequência da exploração de carvão pela Vale. No entanto, mesmo com visto para entrada no país, o ativista foi barrado no aeroporto e deportado sem grandes explicações.
Com muito a dizer para os participantes do evento, a denúncia de Vunjanhe dificilmente seria uma novidade para a Vale. Primeiro por não serem problemas exclusivos de Moçambique, ainda que muitos moçambicanos que vivem próximos às minas acreditem que a violência que sofreram seja uma expressão do racismo: fizeram isso porque somos africanos. Segundo porque antes do início das atividades havia sido realizado o Estudo de Impacto Ambiental, datado em 2006, e para muitos aspectos analisados, tanto ambientais quanto sociais, foi apontada a sentença: o impacto é irreversível. Mas a sentença não foi o suficiente para que o negócio fosse interrompido.
Naquele período, enquanto o holofote da Vale se voltava para as promessas de modernização, incluindo a geração de empregos, na sombra, mas no mesmo processo, moradores eram removidos de seus lares para dar lugar à atividade econômica e postos a viver em reassentamentos que mais parecem campos de refugiados de uma guerra não declarada. A promessa era de aumentar a circulação de dinheiro pelo trabalho assalariado, mas, contraditoriamente, a atividade mineira impediu outras atividades rentáveis na área que se tornou cinzenta, ao mesmo tempo em que moradores locais foram contratados pelas empresas apenas esporadicamente. A crise iniciada pela terceira revolução industrial a partir dos anos 1970, se expressa em Moatize por meio da generalização do desemprego estrutural ao mesmo tempo em que terras são expropriadas, em razão do desenvolvimento das forças produtivas que tornam o trabalho, que é a substância do capital, supérfluo (Kurz, 2015).
Essas mesmas pessoas perderam ainda referenciais materiais e simbólicos de forma irreversível, excluídos das suas formas de sociabilidade pela ordem capitalista. A nova condição a que são colocados a viver foi muito bem documentada pela Human Rights Watch, numa pesquisa cujo título expõe o problema central: o que é uma casa sem comida? A crítica apontada é de que não basta a compensação com a construção das casas dos reassentamentos quando não há condição de reprodução social.
Tendo em vista que tudo foi documentado 15 anos atrás e o debate sobre a emissão de gases ocorre ao menos há 30 anos, é de se questionar em que se diferencia do contexto atual para que a empresa argumente, nesse momento, que a exploração está fora da agenda ambiental. E quando falamos que a Vale está preocupada com questões ambientais, certamente o caso recente do rompimento da barragem de rejeitos em Brumadinho vem à mente do leitor, já que é considerado o maior crime ambiental da história. E foi após Brumadinho que a Vale estabeleceu o então Novo pacto com a sociedade para restabelecer a confiança e agora estende esse pacto para as minas de Moatize. Mas restabelecer a confiança de quem?
A Vale entrou em Moçambique durante o boom das commodities dos anos 2000 e abriu um novo patamar de produtividade e de técnicas produtivas que alterou as relações de trabalho no setor e localmente. O conglomerado foi seguido por outras grandes mineradoras, como a anglo-australiana Riversdale Mining Ltda e a indiana Jindal Steel and Power Limited, num momento em que Moatize era chamada de “Eldorado”, uma promessa para investimentos e de produção futura. Em 2013, Miguel Peres, diretor da Odebrecht Moçambique, declarou para a jornalista Amanda Rossi que o país evoluiu muito rápido. Daqui a quatro anos a gente não vai reconhecer. Você viu o investimento da Vale em Nacala. Há dois anos, o porto era um fantasma. Hoje está lotado. É impressionante o que aconteceu e o que vai acontecer daqui pra frente. É como se o movimento de modernização fosse apenas ascender e continuar movimentando outros setores, como o da construção civil.
No entanto, o que seguiu foi a desaceleração na economia mundial e a diminuição do consumo do carvão para geração de energia em diversos países, dentre eles a China, principal compradora da mercadoria produzida em Moçambique - como consequência, houve a queda do preço do carvão no mercado. Logo nos primeiros anos de atividades das mineradoras em Moatize, houve um processo de venda de ativos entre mineradoras e a Vale vendeu parte para a japonesa Mitsui numa política de desinvestimento, que agora está em processo de compra novamente para centralizar os ativos e revender para um terceiro interessado. Ou seja, a saída da empresa não é necessariamente a interrupção da exploração de carvão e com isso não se pode dizer que a saída seja por questões ambientais, pois passa por um imbróglio de transferência de ativos e dívidas.

Vagão de trem carregado com carvão mineral
De qualquer forma, o processo mostra que a relação concorrencial entre os conglomerados do setor, que impõe a necessidade do desenvolvimento das técnicas produtivas, acelerou a extração do carvão, pois as máquinas permitem um volume maior de extração num menor tempo.Contraditoriamente, porém, a aceleração na produção da mercadoria carvão, com promessa de valorização futura, parece ser também a saída da empresa de forma antecipada. De um contrato de 25 anos que poderia ser prorrogado por mais 25, esse será interrompido com 15 anos de execução, deixando o rastro de impactos ambientais e sociais permanente, de modo que nenhuma jogada de marketing para investidores seja capaz de reverter.
Considerando ainda que atualmente a mercadoria de maior exportação de Moçambique é o carvão mineral e com isso é a mercadoria que representa a maior fonte de divisas para o Estado moçambicano, a saída antecipada da empresa pode ser também a antecipação dessa expressão da crise para o Estado moçambicano.
Referências
HUMAN RIGHTS WATCH. O que é uma casa sem comida? O boom da mineração em Moçambique e o reassentamento. EUA: HRW. 2013
Kurz, Robert. Poder mundial e dinheiro mundial: crônicas do capitalismo em declínio. Rio de Janeiro: Consequência. 2015.
Rossi, Amanda. Moçambique: o Brasil é aqui - Uma investigação sobre os negócios brasileiros na África. São Paulo: Record. 2015