
Crítica da separação, 1961 (Guy Debord)
O ir, ou a busca do ideal, daquilo que acreditamos ser melhor, nos dá a sensação de que estamos progredindo, de que estamos avançando em direção a um mundo melhor. Mas este movimento não é um movimento em absoluto pois seu fim foi projetado a partir de nossa miséria, confusão, cobiça e inveja. Portanto este fim, que se supõe ser o contrário do que é, é realmente o que é, engendrado pelo que é. Portanto cria o conflito entre o que é e o que deveria ser. Aqui é onde surge nossa confusão e conflitos básicos. O final não está ali, do outro lado do muro: o princípio e o fim estão aqui. Krishnamurti
O que predomina: tua própria ansiedade ou tua visão do que está atualmente ao teu redor? Se predomina o medo, então você não pode realmente ver o que está se passando, porque o medo é obscuridade e no obscuro não se vê absolutamente nada.
A etimologia da palavra crise indica que se trata do ponto decisivo no progresso de uma enfermidade, bem ali onde as coisas melhoram ou pioram. O termo provem de krinein que significa "separar, decidir, rasgar". O momento agora é portanto o do ponto culminante: chegou a hora do juízo final da civilização mercantil.
Pois bem - por mais que esteja mais ou menos claro o que poderia significar "as coisas piorarem", não está tão claro assim o que implicaria dizer "que melhorassem". É evidente, no entanto, que um retorno à velha aparência da sobrevivência apenas serviria para estender tortuosamente as condições que produziram a crise em primeiro lugar. A imaginação submetida ao condicionamento patriarcal capitalista é estreita.
Há quem diga que a imaginação deforma o que é, por mais que estejamos orgulhosas/os da imaginação e da especulação: "A mente especulativa não é capaz de se transformar, não é uma mente revolucionária. Todas as suas ações surgem do passado pois seguem o limitado jogo de seus padrões e projeções".
O que tem sido até aqui asfixia a aparição do novo. Sair desta prisão está em perceber o que é.
5 de maio / Memórias encontradas em uma banheira
7 de maio / Holodomor
9 de maio / A grande decomposição
A GRANDE DECOMPOSIÇÃO
Ninguém pode determinar com exatidão quando começou porque não foi um processo disparado da noite para o dia, mas sabemos que até meados do século XIX a sociedade degringolou definitivamente para uma forma de capitalismo selvagem que, não importa quão evidentemente suicida seja, é ainda hoje impossível de deter.
Aceitemos o uso pejorativo do adjetivo “selvagem” por um momento. Quando se diz “capitalismo selvagem” pode se estar referindo a coisas muito distintas. Para muitos pode ser indicativo de que existe outro tipo de capitalismo “não-selvagem”, uma forma de relação social baseada na exploração e no dinheiro que pode estar subtraída de seus aspectos negativos. É como o alcoolatra que se convence de que passar da cachaça para a cerveja seja uma mudança substancial no seu processo de recuperação. Desconhece o fato básico de que, por menos graus alcoólicos que tenha uma nova bebida, a substância em que está viciado segue sendo a mesma.
Too much thinking makes me ill
I think I’ll have another gin
A few more drinks it’ill be alright
Each day seems like a natural fact [1]
O que pensamos muda a maneira como atuamos, e a maneira como atuamos muda nossa forma de pensar. Porém, muito mais do que gostaríamos, essa máxima tem se mostrado inútil, e nos encontramos uma vez ou outra cometendo os mesmos erros, com as mesmas pessoas, nos mesmos lugares, etc. Quem poderia pensar que depois de uma tragédia como a de Bhopal [2], a humanidade ainda teria estômago para seguir bradando a industrialização como ideal supremo? A pior parte disso é que, por mais esmagadora que tenha sido a experiência para as vítimas desse massacre, a única prerrogativa que o mundo as concedeu como consolo foi somente estar no topo de uma larguíssima lista de catástrofes precedentes.
Falamos sobre mudança mais do que mudamos, e cada momento de obediência a uma vontade estranha é um momento arrancado da vida. Quem pode garantir que esta pandemia trará uma forma de consciência mais elevada e saudável? Quem garantirá um “depois de amanhã?” [3]. O Tao segue seu fluxo e nós continuamos estancados negando-o.
Qual é a pergunta que coloca a vida? A pergunta é: como podemos superar o sofrimento, o aprisionamento, a vergonha, que cria a experiência da separação? Como podemos encontrar a união dentro de nós mesmos, com nossos semelhantes, com a natureza? [4]
A história dessa tendência autodestrutiva é antiga, somos herdeiros de uma cultura bárbara que sobreviveu durante milhares de anos através de pilhagens, saques e guerras – produtos de sua própria incapacidade para a autossuficiência -, assim como da sujeição de mulheres e crianças. Daí vem a guerra que aparece como fundo de qualquer figura. Hoje são esses mesmos bárbaros fanáticos da guerra os que mantêm a máquina de morte funcionando a qualquer custo. Nossas vidas nas mãos do crime organizado. Jacobinos, homens de negócios, mercenários e especialistas, trogloditas insaciáveis, devoradores de almas sem alma, bestas ansiosas por poder que atuam em nome da “racionalidade” e do “progresso” destruindo tudo por onde passam.
Hoje os saqueadores estão amedrontando uma população que há dois meses apenas se insurgia nas ruas para reivindicar uma vida digna. Nunca antes tinham tido a possibilidade de ter mais da metade da população mundial presa, mas com o atual simulacro vão assentando as bases para a ordem de coisas que vem. Como não poderia ser conveniente ao empresário médio prescindir da maior quantidade de capital fixo que for possível ao manter o trabalhador em casa? De alguma forma tem que lucrar, e só se lucra quando se rouba (tempo).
Para isso existe a polícia [5]. Enquanto nas ruas os guardas uniformizados dos ricos roubam os ambulantes e os feirantes, o ministro da guerra afirma que colocarão nas ruas mais 14 500 mercenários – incluindo os “boinas negras” – para garantir a custódia dos novos bairros em quarentena, ou seja: as comunidades mais pobres e populosas de Santiago. Desde hoje, mais de 5 milhões de pessoas estão em estado de quarentena total, em uma cidade com pouco mais de 7 milhões de habitantes. E caso alguém ainda queria sair para protestar, um projeto de lei acaba de ser apresentado para “sancionar pessoas que participam de multidões violentas, ainda que não cometam delitos” [6]. Os efeitos da militarização são bem conhecidos – nos anos recentes o caso do México resultou paradigmático [7]. Nessa parte de seu filme de ação, o Estado deve atacar com tudo contra a população para intensificar cada vez mais o choque e apagar qualquer rastro de resistência intelectual, física ou espiritual. Possuem todo um arsenal de vírus a sua disposição (biológicos, linguísticos, ideológicos, etc.). Com esta jogada se completa a fase de transição entre a “batalha de Santiago” e a "nova normalidade", estabelecida em menos de uma semana graças à mão implacável do chefe máximo do ministério da Saúde.
O ministro da economia não ficou atrás em própria guerra e saiu dizendo o que provavelmente seja a única coisa certa que disse em toda sua vida: “o bolo está encolhendo”. Esta é a verdadeira substância do jogo capitalista, seja selvagem ou não[8]. Agora que acabaram os coelhos na cartola, só resta o último truque: fazer com que o dinheiro siga gerando dinheiro. Banqueiros e investidores vendem títulos entre si, desesperados para fazer a máquina continuar funcionando. Mas se inflam de ar como sempre. Seus lucros estão baseados na expectativa de uma futura exploração do trabalho, que os permite acumular no presente, mas apenas ficticiamente.
Todas as formas de ansiedade vêm do fato de que em alguma parte de nossa consciência existe o sentimento de conhecimento incompleto da situação e essa falta de conhecimento conduz a uma sensação de insegurança e a ansiedade, com todos os graus de intensidade.9
Todo esse sistema está por um fio.
RB / 2&3 DORM
9 de maio
1 “Pensar muito me adoece / Penso que devo tomar outro gin / Alguns drinks a mais e estará tudo bem / Cada dia parece um fato natural.” Why Theory, Gang of four.
2 O desastre de Bophal é considerado o pior massacre industrial do mundo. Durante a noite de 2 de dezembro de 1984, uma infiltração de gás venenoso isocianato de metilo, da fábrica de pesticidas estadunidense Union Carbide, alcançou uma área de 8 quilômetros, matando mais 3000 pessoas em poucas horas. No dia seguinte, o número subiu para 20 000. Os milhares de sobreviventes, muitos deles crianças, sobreviveram às custas de amputações, câncers, má-formações e outros problemas de saúde. A companhia responsável não foi processada. Cada família recebeu aproximadamente 3 000 dólares de compensação. Segundo as estimativas da “Indian Council of Medical Research”, entre os anos de 1989 e 2007 as taxas de câncer aumentaram em um total de 72% nas zonas afetadas pela infiltração de gás. Até hoje na fábrica abandonada há toneladas de materiais tóxicos que contaminam as águas subterrâneas que abastecem mais de 100 000 pessoas.
3 Ver “Detrás nuestro, el pasado mañana, de Joël Gayraud, disponível aqui.
4 Erich Fromm em Budismo zen e psicanálise, de D.T. Suzuky e Eric Fromm.
5 Nos Estados Unidos a prática legalizada de roubo pela polícia é conhecida como “confisco civil”. Trata-se de um mecanismo que permite apreender a propriedade de civis que não estão condenados por nenhum crime. A taxa de confisco que a polícia norte-americana comete sobre os civis é de 87%. Os afetados devem provar sua inocência na corte para recuperar sua propriedade. Interrogado sobre como fazem para escolher o que confiscar, um policial em 2012 confessava: “geralmente está ligado a uma necessidade... ah retiro o que disse. Existem algumas limitações... bom, na verdade não existe limitação nenhuma em relação ao que se pode confiscar ou não. Normalmente nós escolhemos algo que seria bom ter por conta do orçamento [...] são como centavos vindos do céu, te dão um brinquedo ou algo que você precisa, essa é a maneira como tipicamente vemos”. Para maior informação ver How Police Departaments Use Civil Forfeiture to Collect Billions, disponível aqui. No Chile a prática do confisco por parte dos carabineros, ainda que em várias instâncias tenha sido considerada ilegal por medidas judiciais, é a realidade diária para os vendedores ambulantes. Diante do confisco de uma carga de chocolates de um vendedor ambulante em Ovalle, um comentarista aponta lucidamente o pano de fundo desses roubos legalizados dizendo “É o melhor que fazem os carabineros. Amanhã vão vender pamonha na delegacia”. Ver aqui.
6 O projeto busca condenar de 541 dias à 3 anos e um dia de reclusão qualquer um que participar de uma multidão onde se “cometam atos de violência contra pessoas ou bens públicos ou privados”. É notável que a proposta desse projeto assegure que a lei “possa solucionar o problema de segurança pública e ao mesmo tempo velar pelos direitos humanos”. Para mais informações ver: Presentan proyecto de ley que busca sancionar con cárcel a quienes participen de aglomeraciones violentas sin cometer delito, disponível aqui.
7 Ver Estudios preliminares sobre la violencia: Ciudad Juárez, 2&3DORM, #1, disponível aqui.
8 "A nova interpretação da história da modernização no século 20, feita pelo grupo [Krisis], trouxe o problema de como pensar “a contrapelo” do marxismo. Inicia-se, com isso, uma nova teoria da crise: até então, a teoria marxista tinha analisado as crises como interrupções passageiras da acumulação capitalista, isto é, como crises conjunturais ou rupturas estruturais na transição para um novo modelo de acumulação. A teoria da crise, assim como a ideia e a práxis do socialismo estatal, ficou presa ao horizonte do trabalho abstrato e às formas sociais do sistema produtor de mercadorias. Ou não se considerou possível uma barreira interna absoluta ao processo de acumulação ou não se relacionou essa possibilidade ao “trabalho abstrato” enquanto “substância do capital” (Marx). Nossa teoria da crise, ao contrário, esboçou a tese de que a “dessubstancialização” do capital levada a cabo pela terceira revolução industrial da microeletrônica representa uma barreira interna absoluta ao processo de acumulação. Pela primeira vez na história capitalista, realiza-se uma racionalização que torna dispensável a força de trabalho de modo mais rápido (e em volume maior) que a ampliação dos mercados possibilitada pelo barateamento dos produtos. Assim, apaga-se o mecanismo de compensação das crises vigente até então. Não é apenas conjunturalmente, mas estruturalmente, que o capital foge da acumulação real para o “capital fictício” (Marx) em bolhas financeiras que tem que estourar. Na medida em que se demonstra, nesta crise qualitativamente nova, a barreira histórica de acumulação do “modo de produção baseado no valor” (Marx) torna-se obsoleto o sistema produtor de mercadorias, o “trabalho abstrato” e, com eles, a ontologia marxista do trabalho. A partir da teoria da crise foi determinado, assim, o próprio locus histórico da nova e mais fundamental crítica ao capitalismo." Novos e velhos combates, entrevista a Robert Kurz de Dieter Heidemann, Anselmo Alfredo, Caio Melo, Carlos Toledo e Vicente Alves, disponível aqui.
9 D.T. Suziki em Budismo zen e psicoanálise, de D.T. Suzuki e Eric Fromm.