Os velhos crentes não querem permitir a ninguém que escolha a vida que deseja levar, querem que vocês trabalhem para eles e se contentem com a fé que os doutores te inculcam. Luther Blisset, Q
A crise é total. O desenvolvimento da pandemia não deixa dúvidas quanto ao desmoronamento, um a um, dos pilares que sustentavam o velho edifício da separação. Nesse naufrágio, as coações impostas pela civilização mercantil são postas à prova pela própria realidade, que tão logo aparece se desprendendo de suas qualidades intercambiáveis, as aparências do vivo. Abre-se uma brecha onde cabem outros mundos possíveis. Apenas a apropriação destas condições poderá acabar com a guerra social do capital. É na vida cotidiana, e não no plano econômico ou político, onde, em última instância, estão em jogo nossas possibilidades contra a decadência civiliatória. O humano não provem da máquina, mas do coração.
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2 de abril / A incerteza
A ameaça do vírus parece ter acendido mais um sinal de alerta, um que mantém o povo acordado apesar do confinamento. Graças a este despertar destituinte, como nunca, o Estado se viu superado. Na austral Porvenir[1], por exemplo, até a prefeita saiu para levantar barricadas para deter a propagação da peste.
A Incerteza
A primeira coisa que o Estado fez foi apagar todos os rastros de revolta das ruas de Santiago. E o fizeram imediatamente depois de anunciar suas medidas frente à pandemia. A “beleza” e a “limpeza” das cidades são valores estruturais para a cultura moderna e, como tais, são defendidos na ponta do fuzil por seus detentores. É isso o que promoviam os ideólogos e os publicistas da infraestrutura estatal já no século XIX: “sistemas de transporte modernos e nada de pobreza à vista”[2]. Nenhum bairro do mundo pode se gabar de ser um emblema do urbanismo se tem pobres sujando suas calçadas. A menos que encontre uma forma de tratá-los como decoração.
É uma visão simplista e medíocre da memória aquela que considera possível tapar a experiência com o cotovelo. De fato, essa visão não seria nada se não fosse pelo fuzil. Nem a memória nem a experiência são unidimensionais. Isto é o que hoje estamos constatando intensamente nas cidades do Chile, onde nos últimos 6 meses se passou de um “estado de emergência” a um “estado de catástrofe”. Para além da diferença entre os conceitos, ambos foram vividos como violentas alterações da vida cotidiana. E mais, foram vividos diretamente como limitações e restrições impostas sobre a vida cotidiana pela militarização. Ainda viva na memória corporal, a experiência repressiva/espacial do toque de recolher de outubro se repete, intensificada. Por isso não deixa de surpreender que, ainda que pulsando por debaixo da pandemia estatal, haja certa efervescência.
A ameaça do vírus parece ter acendido mais um sinal de alerta, um que mantém o povo acordado apesar do confinamento. Graças a este despertar destituinte, como nunca, o Estado se viu superado. Na austral Porvenir, por exemplo, até a prefeita saiu para levantar barricadas para deter a propagação da peste. De uma forma inesperada certos setores do planeta estão se tornando autônomos, e exigem ser para conservar sua saúde e vitalidade. Ainda mais: a pandemia aparece como uma oportunidade para recuperar uma vida que havia sido arrancada à força. Nesse sentido, a esperança tem deixado de ser uma palavra equivalente a ingenuidade: o mundo está passando da espera à ação.
Este dado nos traz à memória outros assuntos estruturais: o que houve com tudo o que estava acontecendo no mundo até a pouco tempo? É como se num golpe a realidade tivesse se alinhado e se ajustado a uma só dimensão. De repente, o Covid-19 é a única notícia urgente e voam mais helicópteros sobre nossas cabeças que de costume. Não é só o espaço em metros quadrados que foi ocupado, foi em metros cúbicos, mentais, espirituais e cibernéticos.
É verdade que cada um de nós está vivendo este momento da história como um ajuste de contas que já foi postergado muitas vezes, seja com a história universal ou com a pessoal. Mas o fato total em que se converteu a pandemia é mais uma metáfora que uma síntese do problema humano.[3]
Boa parte do que circula na internet – espaço no qual se reduziu a vida social – como notícia ou comentários críticos, é produto de condutas obsessivas e neuróticas. Algumas plataformas geram condições tão estritas e limitadas para a comunicação que facilitam essa conduta ao mesmo tempo que a produzem. Amplificam a ansiedade a tal ponto que, tal como o lixo industrial, conseguem tapar os discretos brotos de vida que germinam abaixo.
Há muito acontecendo no mundo, no nosso entorno imediato, mas nossos sentidos e instintos são tão afetados quanto a memória pelo choque da repressão e o trauma do confinamento. Na medida em que estamos todos conectados à Matrix, a pandemia aparece como a totalidade do problema. Mas essa Matrix é apenas um fragmento da realidade que consegue, por meio de velhos e perversos mecanismos, aparecer como o todo.
A “atenção” padece quando tenta assimilar a totalidade. O instante, a experiência inominável da qual se compõe essa totalidade, falta tanto quanto como o espaço. A menos que o organismo lute, o único que se experimenta são fragmentos organizados para nosso consumo por forças externas.
Então se apodera do espírito uma espécie de amnésia de curto prazo, uma amnésia total. As guerras do Oriente Médio, África, América Central e Ásia ainda estão aí, a precarização da vida ainda esta aí, a violência patriarcal ainda está aí, o aquecimento global ainda está aí. Há poucos dias um cientista voltava nossa atenção para outro importante indicador do nosso frágil estado existencial. Um iceberg gigantesco derreteu no Ártico com duas consequências nunca registradas: seu desaparecimento levou um tempo recorde de 2 meses e seu volume liberado no oceano significou um aumento de 2 milímetros no nível do mar.
Sem dúvida são dias excepcionalmente estranhos. No norte do Chile os enfrentamentos urbanos entre o povo e a polícia se transformaram em provas de country nas cross montanhas. Nos Estados Unidos os “serviços essenciais” durante a quarentena incluem lojas de armas, enquanto no Equador o sistema de saúde já colapsou. No sul da Italia há povoados que ameaçam com a rebelião frente ao desabastecimento. Ou será um show das máfias? O que está claro é que a elegante marca de roupas Armani agora se ofereceu para fabricas Equipamentos de Proteção Individual (PPE nas iniciais em inglês) e o fabricante dos luxuosos Ferrari para produzir respiradores mecânicos – todo o mundo unido pela nobre causa de salvar o trabalho assalariado. Há músicos que fazem concertos pela webcam para pessoas encerradas, e uma amarga aceitação da eutanásia como medida sanitária vai crescendo pelo mundo. Logo, teremos que passar todo o dia confinados com uma série de pessoas mais ou menos conhecidas que dia a dia se tornam mais ou menos desconhecidas. Ou ficamos sozinhos na companhia dessa altiva incerteza que ronda tudo.
Talvez a arrogância esteja do outro lado; na realidade a incerteza não sabe de nada; a incerteza, na realidade, não sabe de nada. Daí a vertigem. A incerteza é um vírus para a mente.
RB/2&3Dorm 2 de abril
[1] [N.T.] Capital da Província da Terra do Fogo-Chile
[2] Isto era parte do programa que o famoso City Beautiful Movement (Movimento da Cidade Bonita) anunciou na Feira Mundial de 1893 em Chicago. O evento celebrava os 400 anos da chegada de Colombo ao “novo mundo” com a construção de um modelo em escala real de uma cidade (mais de 200 edifícios provisórios) que, segundo eles, concentrava os ideais do urbanismo moderno.
[3] A respeito recomendamos consultar os últimos comentários de Giorgio Agamben sobre a pandemia, disponíveis em português aqui.

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