FICÇÃO VISIONÁRIA PARA MUDAR O MUNDO
- allan cob
- 20 de fev.
- 23 min de leitura

O QUE É FICÇÃO VISIONÁRIA?
"Lembre-se de imaginar e criar os mundos sem os quais você não pode viver, da mesma maneira como você desmantela aqueles dentro dos quais você não pode viver”
Ruha Benjamin
Para muitos e muitas de nós que estamos tentando mudar o mundo, é comum pensarmos em desmantelamento, em derrubar esses tantos sistemas de opressão. Nossa indignação diante de tantos horrores que nos acometem dia a dia nos coloca, frequentemente, em um estado de reação constante. Nos vemos na iminência de romper com essas estruturas e nos colocar em oposição a elas a todo o momento, mas onde estamos investindo nosso tempo e energia para a parte da imaginação?
Dizer “mudar o mundo” parece, em primeiro momento, uma utopia quase que ingênua. Seríamos mesmo capazes de mudar um mundo subjugado secularmente por um sistema enrijecido, que coloca a vida e a dignidade de viver de comunidades inteiras (humanas e não humanas) sob ameaça constante, somente para alimentar uma fome insaciável de poder dos soberanos?
A história tem nos mostrado que sim.
Como já nos lembrava a escritora de ficção científica Ursula K. Le Guin, em seu célebre discurso no National Book Award de 2014:
“Vivemos no capitalismo. Seu poder parece inescapável. Assim também parecia o divino direito dos reis. Qualquer poder humano pode ser resistido e mudado por seres humanos” (National Book, 2014).
E é justamente motivada por essas percepções que a artista de spoken word, escritora e educadora estadunidense Walidah Imarisha, desenvolve seu trabalho criativo que combina perfeitamente com o abolicionismo penal e com a ideia de que podemos e precisamos viver sem prisões.
Seja no Brasil ou nos Estados Unidos crescemos com uma ideia que nos foi contada durante toda a vida de que a sociedade não pode existir sem prisões e, portanto, para muitas pessoas, a ideia de um mundo sem prisões é uma fantasia completa, é ficção científica.
As prisões são uma ideia muito recente na história da humanidade. No Brasil, a Carta Régia de 08 de junho de 1796 instituiu os primeiros pactos coloniais de nosso sistema penitenciário, mas é somente em 06 de julho de 1850 que se inaugura, no Rio de Janeiro, a Casa de Correção, primeira prisão do país.
Cento e setenta e quatro anos de existência não parece tempo suficiente para nos fazer acreditar que um sistema de opressão como as prisões nos sejam algo natural, muito menos um elemento fundamental para a manutenção e permanência das sociedades humanas. No entanto, o hábito de tornar corpos subalternizados cativos e reféns de uma domesticação punitivista – violenta e genocida – nos assombra desde a chegada dos conquistadores. E é desse comportamento social que advém a naturalização das prisões.
Angela Davis, ao abordar o sistema prisional estadunidense, nos lembra que:
Logo após a abolição da escravidão, os estados do Sul se apressaram em desenvolver um sistema de justiça criminal que restringisse legalmente as possibilidades de liberdade para os escravos recém-emancipados. As pessoas negras se tornaram os principais alvos de um sistema em desenvolvimento de arrendamento de condenados, ao qual muitos se referiam como uma reencarnação da escravidão. (Davis, 2018, p.23)
Em seu estudo aprofundado sobre a história da penitenciária do Estado de São Paulo, Silvia Haskel Nascimento (2005), relata que o sistema penitenciário brasileiro não fugiu nem um pouco a essa regra, mantendo-se como uma perpetuação e continuidade do projeto escravocrata. Ao analisar as primeiras prisões de São Paulo, Nascimento (2005, p.135) afirma:
Criada para abrigar condenados à pena de prisão com trabalho, a Casa de Correção abrigava temporariamente presos de outras cadeias e foi utilizada também para outros fins. Como, por exemplo, "depósito" de setores marginalizados: alojamento de indígenas, recolhimento de escravos com problemas com seus senhores, africanos livres sem trabalho ou casa, assim como menores abandonados e até doentes e loucos que não foram recolhidos pelos hospitais adequados.
A falta de funcionários nesses estabelecimentos era compensada pelo trabalho forçado de pessoas escravizadas e africanos livres, que desempenhavam os trabalhos de limpeza e alimentação dos apenados.
Essa insistência colonial em punir para educar, condicionou o imaginário de nações inteiras a crer que as prisões são uma resolução natural para a condição humana e seus conflitos inerentes. Por isso, a frase de Ruha Benjamim na epígrafe deste artigo é importante para nos lembrar que a proposta do abolicionismo penal não se trata apenas de derrubar prisões, trata-se do que vamos construir no lugar delas.
Essa ideia do que vamos fazer crescer no lugar e como fazemos brotar a justiça é o que levou a Walidah Imarisha ao que ela denominou como ficção visionária.
Ficção visionária se trata de uma arte fantástica, pautada na escrita de ficção científica ou especulativa, que nos ajuda a compreender e a desafiar as estruturas de poder existentes e nos apoia na imaginação de caminhos para sonhar e criar mundos mais justos. Está inextricavelmente ligada à luta por mudança social.
A metodologia se apoia em dois eixos centrais que ajudam a diferenciar as ficções visionárias das narrativas elaboradas pela ficção científica mainstream. Esses eixos são identidade e poder. O eixo da identidade consiste em questionar quais olhos estão enxergando a história. Quem narra e vive os eventos capturados na narrativa? Na perspectiva da ficção visionária, o protagonismo e a liderança devem estar centrados nas experiências dos corpos mais marginalizados e afetados pelo sistema de opressão que se reimagina.
Ao fazer esse movimento, a história muda, tudo muda. Quem vemos como mocinhos, como bandidos, o que entendemos como final feliz...
Ao trazer identidades marginalizadas para o centro, não estamos adicionando um elemento à história, mas mudando-a completamente. No entanto, a identidade não é um elemento que vem isolado, mas que precisa ser protagonizado de forma interseccional. Temos que reconhecer a necessidade de interseccionalidade, percebendo que quando centramos as pessoas que se sentam nas interseções de opressões, como pessoas lgbtqia+ racializadas, é quando vemos o que pode ser a verdadeira libertação para toda comunidade.
Quando a ficção visionária está enraizada nessas experiências, também temos uma compreensão diferente de como a mudança acontece. Isso é o que Walidah vai chamar de descolonização não-linear.
Sonhar as histórias que o Ocidente conta ou que você sabe que os ocidentais brancos contam sobre mudança social, é um caminho linear. A narrativa e os desejos estão sempre se movendo em uma única direção. Uma espécie de conjunto de passos que continuamos dando em direção à a uma ideia – capitalista, neoliberal e colonial - de grandeza.
Quando nos enraízamos em experiências de comunidades subalternizadas, sabemos que nossos sonhos de liberdade para o futuro estão conectados aos nossos ancestrais e que estamos realmente sonhando e construindo ativamente com eles.
Sobre essa relação com o tempo e os ancestrais, adriene maree brown (Imarisha, 2022), co-editora de Walidah Imarisha, analisou a dinâmica dos fractos para cunhar o termo “perspectiva fractal”. Agir de forma fractal significa reconhecer o fenômeno de que mesmo os menores movimentos são capazes de ir se refletindo, nutrindo e crescendo. Assim, refletimos essa consciência para a forma como nos tratamos e como tratamos quem se aproxima de nós, sendo multiplicadores da existência – filosófica, física, emocional e espiritual – de nossas comunidades. Levamos conosco o legado daqueles que vieram antes de nós e atuamos ativamente ao lado desses que já se foram para construir novos e mais justos futuros.
Precisamos ser e pensar diferentes para construir coisas diferentes. Não podemos usar as mesmas estratégias que operam o sistema que estamos tentando derrubar.
Sob a perspectiva fractal podemos vislumbrar outra relação possível com o tempo. Se a narrativa branca ocidental segue um rumo linear em direção ao progresso e ao ato de seguir um pensamento supremacista branco, essa concepção nos afirma a todo momento que o passado está perdido e que o futuro é incerto, restando-nos apenas o aceitar o presente como aquilo que temos e o que nos está dado. Na contramão, povos africanos, afrodiaspóricos e indígenas sustentaram saberes ancestrais (apesar das tentativas de silenciamento e soterramento) que nos convidam a pensar que a história e o tempo se movem como ondas, de forma circular, espiral ou emaranhada (de forma fractal). Os sonhos, tecnologias e sabedorias de nossos ancestrais estão conosco enquanto construímos essa outra visão de história e de mundo. Sendo assim, o futuro também está conectado e pode ser constantemente reescrito.
O segundo eixo da ficção visionária é o poder. Consiste em mirar para como operam as desigualdades e tornar visíveis os sistemas de poder que moldam toda a nossa vida. Nessa perspectiva, é realmente muito importante que possamos praticar o ato de imaginar diferentes relações com o poder dentro de nossas comunidades, como um ensaio coletivo realizado por aqueles e aquelas que lutam por um mundo diferente. A ficção visionária exige que imaginemos diferentes maneiras de compartilhar o poder juntos para construir os futuros que queremos.
Para entender se uma obra se enquadra como ficção visionária é importante entender como as mudanças e as relações de poder acontecem. Em uma ficção visionária a forma como a mudança acontece é coletiva de baixo para cima. Os integrantes da comunidade se unem sem criar hierarquias, ou seja, sem que haja a necessidade de colocar algumas pessoas acima das demais. A pluralidade dos agentes envolvidos também é de suma importância, pois a ficção visionária busca gerar tantas maneiras de fazer mudanças quantas forem as pessoas envolvidas.
Aqui mudança é uma transformação real, desmantelar sistemas substituindo-os completamente. Não se trata de reformas, trata-se de uma mudança revolucionária radical e anticapitalista. A ficção visionária não trata as formas como estamos nos organizando e fazendo mudanças como transações, vai além da ideia de que todos temos que conquistar algo para ter valor, em vez disso, reconhece que cada um de nós tem valor apenas por existir.
A mudança é também relacional, trata das relações entre pessoas e reconhece que a forma como tratamos uns aos outros é a mesma forma que se organiza o mundo que vamos construir. Por fim, é importante frisar que uma obra de ficção visionária nunca será neutra, não é arte pela arte. Seu objetivo é propor mudanças de forma radical e revolucionária.
Para adrienne marie brown (Imarisha, 2022), toda arte avança ou regride com a luta por justiça, jamais podendo ser considerada neutra. Dessa forma, artistas que produzem obras de ficção visionária estão engajados em avançar com a justiça a partir de suas produções.
Essa relação entre produção de ficções como exercício de imaginários políticos surge de um entendimento de Walidah de que toda organização, coletivo, grupo ou movimento que luta por mudança social é, por si só, uma ficção científica.
Isso porque estamos falando de comunidades que se reúnem para sonhar mundos que jamais fomos capazes de experimentar na realidade. O racismo, a lgbtqia+fobia, a xenofobia, o capacitismo, o cárcere, o patriarcado, todas essas estruturas já estavam e operavam hegemonicamente por aqui antes mesmo de existirmos nessa terra. Lutar por um mundo onde esses sistemas de opressão não existam é defender uma sociedade que ainda só existe em nossas imaginações, o que por si só é um exemplo de ficção científica.
Ao mesmo tempo, podemos entender que somos o sonho materializado de nossos ancestrais. Afinal, um dia alguém imaginou que dois homens poderiam andar de mãos dadas na rua sem apanhar; que o direito divino dos reis acabaria; que a escravidão e o tráfico de pessoas racializadas não fosse amparado pela lei. Um dia duas travestis jogaram garrafas e trocaram socos com a polícia em Stonewall e hoje, muitas outras tantas travestis podem ser eleitas na política, se tornar advogadas, professoras, médicas… Isso nos garante a certeza de que podemos mudar qualquer coisa na sociedade. A história nos mostra que as pessoas que se organizam juntas fizeram isso por repetidas vezes, o primeiro passo é apenas acreditar que é possível.
Uma vez que a nossa imaginação é libertada, a liberação torna-se ilimitada, podemos construir juntos qualquer coisa que possamos imaginar.
A metodologia de ficções visionárias é um exemplo claro do poder comunitário na produção artística e da relevância que nossas práticas coletivas, realizadas a partir do encontro de nossas experiências pessoais, pode produzir/resgatar importantes saberes. É uma forma anticolonial de se pesquisar no contexto artístico, onde as teorias, conceitos e posicionamentos se fazem a partir da existência e do encontro das coletividades.
FICÇÃO VISIONÁRIA E PROCESSOS CRIATIVOS COMUNITÁRIOS EM ARTES
Desde 2017, a CiA dXs TeRrOrIsTaS, coletivo artístico LGBTQIA+ que atua na periferia norte da cidade de São Paulo, desenvolve um trabalho com ficções visionárias na linguagem das artes cênicas. Em 2023, orientados pela própria Walidah Imarisha, o grupo estreia o espetáculo “Anjos de Cara Suja – o Sol é, ou deveria ser, para todas”. O espetáculo traz para a cena três pessoas trans sobreviventes do sistema prisional que, a partir de suas vivências com o cárcere, compartilham suas tecnologias de cuidado e permanência desenvolvidas em comunidade. No espetáculo, as atrizes constroem uma sociedade alternativa, onde existem outras possibilidades de lidar com os erros e dores cometidos uns aos outros. O trabalho é uma reação coletiva ao livro “Angels with Dirty Faces – three stories of crime, prison and redemption”, escrito por Walidah em 2016. O livro original foi traduzido e publicado com a dramaturgia do espetáculo, distribuído para projetos de remição de pena por leitura [1] de diversos complexos prisionais do Brasil.

Essa foi a primeira experiência de encenação a partir da metodologia de ficções visionárias no Brasil.
Por se tratar de um processo de criação comunitária, que necessita da presença e protagonismo de corpos subalternizados para se fazer acontecer, o processo de pesquisa do trabalho se deu diretamente atrelado com a prática artística (e não artística também).
Como hackear um processo de criação elaborado para produção literária, focado em mudança radical, para uma metodologia de criação em artes cênicas?
O trabalho perpassou por uma série de experimentações que passavam exercícios de justiça transformativa [2], práticas de produção de narrativa em primeira pessoa e a construção de linguagem estética/discursiva a partir da vivência cotidiana das três atrizes.
Se a ficção visionária visa trazer a visão de corpos interseccionalmente afetados pelos mecanismos de opressão para criar narrativas ficcionais, o que resultaria se esses corpos fossem questionados acerca da linguagem de encenação que dá forma ao espetáculo?
Esse processo de pesquisa, atualmente em processo de registro pela companhia, funciona de forma completamente anticolonial, colocando a hierarquia dos saberes acadêmicos e epistemologias hegemônicas para escanteio, diante a potência presente de uma forma de pesquisa que só pode acontecer por meio da prática e da vivência dos agentes envolvidos, construindo linguagem e literatura autorais que dialogam com os contextos contemporâneos de um Brasil fraturados pela colonização.

O espetáculo estreou na Galeria Olido, na cidade de São Paulo, no dia 31 de março de 2023, e contou com a presença de Walidah Imarisha na plateia. Ao fim do espetáculo, pudemos realizar uma entrevista com a autora, que pode ser acompanhada a seguir.
Vicente Concílio – Walidah, você pode nos dizer o que é ficção visionária?
WALIDAH - Ficção visionária é um termo que comecei a usar há alguns anos para falar sobre as conexões entre mudança social e ficção científica. Ela existe nas intersecções, reconhecendo que precisamos de espaços imaginativos, como a ficção científica, que nos permitam imaginar além do que somos. Nos disseram que toda mudança social real fosse considerada uma impossibilidade antes que as pessoas pudessem torná-las real. Então precisamos ser capazes de sonhar o impossível para construir o futuro que queremos. Tudo nesta sociedade nos diz que temos que ser realistas. Só temos que tentar reformar, porque isso é tudo o que conseguimos. Isso é um método de controle social que existe além do sistema. Nos dizem que nossa luta é ficção científica e, ainda assim, as pessoas estão fazendo isso todos os dias, estão puxando esses futuros livres para o presente. Creio que temos que criar mais espaços. Temos que criar mais oportunidades para que todos possam praticar isso. E deixar crescer até que aquilo que imaginamos seja tudo que existe.
Vicente Concílio - Walidah você está aqui em São Paulo para ver a peça “Anjos de Cara Suja – O Sol é, ou deveria ser para todas” e queremos muito saber o que você acha da peça, como você se sente com o seu trabalho se tornando essa peça de teatro que você assistiu.
WALIDAH - É uma honra além das palavras. A peça é incrível. É linda. É comovente. É dinâmica. É honesta. É engraçada. É comovente. E acima de tudo, é esperançosa. Ainda não consigo acreditar que meu trabalho ajudou a inspirar uma peça tão incrível e sou muito grata a todos que investiram tanto tempo e energia nela. Acho que esse espetáculo é muito poderoso, obviamente, aqui no Brasil, mas acho que é algo que deveria ser visto em todo o mundo. Espero que se torne um exemplo para que outros possam contar suas próprias histórias de uma forma que mudará o mundo.
Vicente Concílio - Para produzir a peça foi preciso traduzir o seu livro “Angels with Dirty Faces – three stories of crime, prison and redemption” para o português. A tradução foi lançada como um livro que vai ser distribuído gratuitamente em vários lugares. O que você acha disso?
WALIDAH - Estou tão animada com a tradução do livro para o português. Nunca imaginei que isso aconteceria quando lancei o livro. É um livro muito enraizado no sistema jurídico dos Estados Unidos e suas dinâmicas raciais e políticas, mas depois de passar um tempo aqui no Brasil, vejo semelhanças e conexões muito fortes entre o sistema prisional, a sociedade e a forma como vocês entendem a organização e a resistência também. Sou muito grata ao Victor (Siqueira Serra) por traduzir o livro inteiro e por ser algo que as pessoas daqui (do Brasil) estão interessadas em interagir. É a primeira vez que meu livro é traduzido para outro idioma.
Vicente Concílio - Você fala sobre a sua percepção dos sistemas penitenciários dos EUA e do Brasil. Você poderia falar um pouco mais sobre como você sente essas conexões?
WALIDAH - Acho que a história da escravidão, a história da resistência nos Estados Unidos e no Brasil têm muitas semelhanças. Acredito que as respostas do estado também têm muitas semelhanças justamente por isso. Você sabe. O enquadramento neoliberal em torno das prisões e a ideia de reforma, que, na verdade só fortalece os sistemas e os torna mais brutais, mas de uma forma muito mais sutil - às vezes nem um pouco sutil – Enfim. Eu percebo essas semelhanças.
Vicente Concílio - E pensando na peça “Anjos de Cara Suja”, você consegue pensar em um
momento que realmente chama sua atenção na peça? Onde você acha que as ideias do seu livro e sua adaptação no espetáculo dialogam?
WALIDAH - Acho que o meu livro “Angels with Dirty Faces” é sobre contar a dura realidade da prisão. Falar sobre as formas como a prisão em si é violenta, tal qual ela existe todos os dias, e mostrar as formas como as pessoas dentro desses sistemas mantêm a sua humanidade intacta e aumentam a sua humanidade para cuidar uns dos outros. Esse é o nexo, que é a base para os novos futuros mais justos que precisamos construir. Acho que a liderança e a visão virão de pessoas que foram encarceradas, porque elas, mais do que ninguém, sabem o que é e como construir novos futuros amorosos e carinhosos nas piores circunstâncias possíveis. Para mim, cada minuto da peça resume isso. Acho que as atrizes fazem tudo o que eu esperava e um milhão de coisas mais, trazendo sua experiência, trazendo suas vozes poéticas, trazendo seus lindos corações para contar essas histórias de uma forma que mostre que elas não apenas resistiram, mas também venceram por estarem aqui, por estarem em comunidade e por se manterem tão lindamente humanas.
Murilo Gaulês – Na peça “Anjos de Cara Suja”, a solução criada para resolver os conflitos é materializada na persona de Maria. Na peça, Maria tem o dever de narrar a sua própria história, suas dores e conquistas, como forma de reparar a dor que causou. Ao fazer isso ela ensina e aprende com sua comunidade quais os caminhos que a levaram a fazer o que fez e como ela pode reparar os danos causados sem a necessidade de punição. O que você pensa sobre essa proposta?
WALIDAH - Acho que, novamente, para mim, a ficção visionária está enraizada na experiência das pessoas oprimidas e, especificamente para mim, das pessoas negras. E por isso a ficção visionária trata de criar novos futuros, mas não olha apenas para frente, também olha para trás, reconhecendo que as histórias de resistência e as histórias de libertação que nossos ancestrais têm são algo que precisamos. Estamos sonhando ativamente com eles e então acho que na peça o exemplo mais claro de ficção visionária é a paz em torno de Maria e sonhar o que acontece quando as pessoas fazem mal umas às outras. Como cuidamos das pessoas para que nunca cheguem ao lugar onde causem mal. E isso é lindo e poderoso. As maneiras como as atrizes abraçam essas histórias de resistência e libertação dos ancestrais, bem como da linhagem de outras mulheres trans e outras pessoas que foram encarceradas, isso também é ficção visionária.
Vicente Concílio – O abolicionismo é um assunto muito importante em todas as suas ideias. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre como você se tornou uma abolicionista.
WALIDAH - Na verdade, entrei na política radical através dos movimentos de luta contra o encarceramento de prisioneiros políticos negros dos anos 60 e 70, muitos panteras negras como Mumia Abu Jamal, Sundiata Akoli, Jalil Muntaqim. E esse foi um lugar muito importante para mim. Eu acho que muitas pessoas que vêm trabalhar contra as prisões estão propondo formas de melhorar, mas aprendendo desde o início com os revolucionários, com os revolucionários negros que foram encarcerados por causa de sua organização, por causa do que fizeram pela comunidade. Isso me mostrou que o sistema não está quebrado, o sistema está funcionando como foi planejado. O objetivo das prisões, e de todo o sistema carcerário, é o controle e a contenção de comunidades potencialmente rebeldes, especificamente a comunidade negra.
![We shall survive, without a doubt, (1971). Emory Douglas [artista responsável por boa parte da iconografia dos Panteras Negras]](https://static.wixstatic.com/media/3b2d04_2af667f0e04641b8b8e4967fe9e57289~mv2.png/v1/fill/w_683,h_1024,al_c,q_90,enc_avif,quality_auto/3b2d04_2af667f0e04641b8b8e4967fe9e57289~mv2.png)
Então eu fiz trabalhos na prisão antes de me entender como uma abolicionista, mas aquela fundação proveniente da sabedoria, desses revolucionários negros, sempre me permitiu entender que isso não era algo que poderíamos simplesmente consertar. Não é algo que pudéssemos apenas arrumar um pouco aqui e ali. Quando eu me encontrei com os conceitos do abolicionismo foi por meio de pessoas que estavam encarceradas. Eu também encontrei essas ideias por organizações como a Resistência Crítica fundada por Angela Davis (2012) e Ruth Gilmore (2024) e muitas outras mulheres feministas revolucionárias negras e pardas. Eu sabia que esse sistema estava errado e não poderia ser consertado, mas não tinha exemplos do que poderia ser ou o que poderia existir. Acho que muitas pessoas sabem que isso está causando mais mal do que qualquer bem e, no entanto, todos nós somos informados de que a sociedade não pode existir sem prisões, que não podemos existir sem prisões. Eles fazem parecer que as prisões sempre estiveram aqui, embora sejam muito novas. E por isso acho importante oferecer às pessoas visões alternativas de como poderia ser a verdadeira justiça em nossas comunidades, o que significaria garantir que todos tivessem o que precisam e como isso reduziria significativamente os danos que causamos uns aos outros. Repito, eu acho que é por isso que é tão poderoso que a peça termine com uma visão de como assumimos a responsabilidade coletiva uns pelos outros e nutrimos uns aos outros. Sabemos que quando fazemos isso, nós somos capazes de curar uns aos outros e impedir que mais danos aconteçam.

Murilo Gaulês - Queria saber como está sendo visto o abolicionismo nos EUA.
WALIDAH - É realmente interessante nos EUA. Acho que a abolição não é uma ideia nova, embora eu acredite que muitas pessoas pensam que é. Essa noção de abolir as prisões já existe por décadas. Se você entender as prisões como a extensão da escravidão que elas realmente são, então elas já existem há séculos. Nos Estados Unidos, nas décadas de 60 e 70, grupos como o Partido dos Panteras Negras eram abolicionistas. Foram lançados livros dizendo que em 10 anos poderíamos acabar com todo o sistema prisional e com todos os passos para isso (CR10, 1991). Então esta não é uma ideia nova, embora as pessoas enquadrem isso assim para tentar deslegitimá-lo, para dizer que isso é apenas algo que você acabou de inventar. Mas as pessoas passaram décadas pensando nisso, criando planos de como isso poderia funcionar. Sou abolicionista há quase 30 anos e acho que nesse tempo você sabe muito das pessoas. Mesmo em movimentos radicais, não achavam que a abolição era viável, mesmo que concordassem com a proposta. Diziam: “É um sonho bom, mas não podemos viver em sonhos, temos que viver na realidade!” Eu me lembro de uma pessoa que disse: “você também acredita em unicórnios?” Acho que até mesmo para as pessoas em nossos movimentos entenderem isso ou sentirem que é possível, é difícil. Mas eu acho que houve uma grande mudança nos Estados Unidos nos últimos anos por causa da onda mais recente de protestos do Black Lives Matter, e especialmente o Verão da Liberdade Negra em 2020 em resposta ao assassinato de George Floyd. O apelo não foi só parar de matar negros, foi despojar e abolir a polícia. E acho que foi uma grande mudança nos Estados Unidos e para mim. Lembro-me de ter pensado, apenas alguns meses antes de isso acontecer, que levaria anos, talvez décadas, antes de estarmos falando sobre a abolição como um curso de ação potencial real no futuro. E parecia que acordei durante a noite e todo mundo estava falando sobre a abolição e eu pensei: “Espere por mim, prepare-se, entre aqui!”. Minneapolis instituiu todas as reformas que recebemos para a polícia, eles tinham câmeras corporais, eles tinham conselhos de responsabilidade comunitária, eles tinham todas as coisas que nos foram oferecidas. E isso mudou o número e a brutalidade para com pessoas negras assassinadas? De forma alguma. O mesmo é verdade para onde eu moro - Portland, Oregon.
Instituímos todas essas reformas e mais pessoas negras foram mortas pela polícia no ano passado do que nunca. Acho que esta geração jovem viveu essas reformas e viu que elas não funcionam. Eles mudaram para apelos mais radicais e por isso houve uma grande mudança nos Estados Unidos no sentido de ver a abolição como um futuro potencial. Muitos meios de comunicação difamam o movimento. Mas eu nunca imaginei que chegaria o dia em que veria a CNN ou a Fox News falando sobre abolição e tendo que dizer que é uma coisa ruim porque as pessoas acreditaram que é possível. Eu acho que mudança cultural é realmente importante. Que nos concentremos em termos de mudanças nas políticas e nas leis, mas a mudança cultural é o que torna todas essas outras mudanças não apenas possíveis, mas também as faz durar. Embora muitas das coisas que foram propostas durante aquele verão de 2020 não aconteceram, essa mudança cultural aconteceu e nunca poderá ser revertida e então acho que estamos em uma nova fase nos Estados Unidos.
Murilo Gaulês - Você falou sobre experiências de ficção visionária que você presenciou em outras linguagens artísticas. Você poderia nos contar sobre outras experiências de ficção visionária que você conhece para podermos entender mais profundamente como o seu trabalho inspirou outras pessoas?
WALIDAH - Uma experiência de ficção visionária que tive e que foi muito significativa para mim foi trabalhar com um grupo nos Estados Unidos chamado Black and Pink, é uma Organização Nacional para Prisioneiros LGBTQ e é uma organização abolicionista. Fiz um workshop com seus líderes que voltaram para casa e criamos juntos um mundo, outro planeta, que lhes permitiu falar sobre abolição. Neste mundo que eles criaram se alguém fizesse algo errado seria engolido por um monstro e essa criatura iria segurá-los em suas barrigas por quanto tempo eles foram condenados (pelo sistema judiciário penal). Então quando terminassem eles seriam literalmente vomitados, mas teriam marcas de estarem lá para que todos pudessem saber quem foi devorado pela criatura para ser punido. As pessoas da organização criaram essa história especificamente, porque a enviaram para as prisões e queriam ter certeza de que ela passaria pelos censores, para que não fosse rejeitada pela censura dos funcionários da prisão. Os guardas liam a história e ficavam: “Ah! É uma história sobre um monstro que come pessoas, com certeza isso entra!”, mas todos lá dentro obviamente sabiam exatamente do que se tratava. As pessoas de fora começaram a história e depois a enviaram para a prisão e convidaram as pessoas presas a escreverem respostas. Eles escolhiam duas respostas e imprimiam em seu boletim informativo e então convidavam as pessoas a responderem novamente a isso. Isso se tornou uma história coletiva que estava sendo construída com pessoas presas e livres, que conversavam umas com as outras abertamente sobre o abolicionismo penal. Isso foi uma experiência muito poderosa e comovente, tanto a história que foi criada, que era uma história fundamentalmente abolicionista, quanto o processo. A forma como o Black and Pink garantiu que o debate centralize aqueles que estão dentro e como fazemos isso sabendo que o sistema não quer que façamos, e fará qualquer coisa para nos impedir. Acho que esse espírito é absolutamente o que vejo na peça Anjos de Cara Suja também. Vem de pessoas que conhecem intimamente esse sistema e como ele funciona e sabem como mover-se estrategicamente para que você possa se conectar com as pessoas de dentro e não apenas trazer algo a elas. É fazer com que elas tragam sua experiência, sua genialidade, sua criação, sua criatividade para o centro.

Vicente Concílio - Suas experiências estão mais ligadas à escrita criativa literária, mas o que você acha dessa ideia de misturar as artes performativas? Como você sente isso?
WALIDAH - Eu sou uma escritora e é assim que minha mente funciona. Eu sou uma poeta e artista de spoken word, mas isso também é uma relação entre você e como você diz a palavra. Foi incrível ver a criação da peça ao longo deste ano, ver a experiência de pessoas que sabem disso, que são tão talentosas no teatro, reunindo todos esses elementos. Elas me diziam: “Nós vamos trazer isso e aquilo” e eu pensei: “Tudo bem, parece bom!”, mas ver tudo junto é ainda mais poderoso do que eu imaginava. O aspecto multimídia com as projeções e você percebe a luz, a música, o vídeo, as mudanças de figurino e apenas o uso da voz e do movimento com tudo isso. Acho muito bem pensado a ideia de como fazer o público sentir o que as pessoas na prisão sentem todos os dias, e como implicar o público nisso. Como fazer com que eles se sintam responsáveis, porque eles são. Todos nós somos. Não em termos de você ser o culpado, mas nós temos uma responsabilidade. Então agora você sabe o que vai fazer sobre isso. Eu estava envolta de centenas de espelhos pendurados e o panóptico no meio onde o público pode sentar. É algo que eu nunca teria pensado e é tão poderoso, no contexto do teatro, porque você está atraindo o público de uma maneira que você sabe que os deixa um pouco desconfortáveis, mas isso também os emociona. Ensina-lhes que o desconforto não é apenas para você saber que deve fazer isso por fazer o bem, é para fazê-los sentir um pouquinho do que as pessoas têm que conviver por anos ou décadas. Pude ver a peça duas vezes e na segunda vez eu pude não apenas observar as atrizes, mas observar o público e apenas ver o impacto do trabalho sobre eles. Eu acho que todo mundo saiu mudado e que isso é algo que carregarão consigo. É algo que o público manterá por perto e compartilharão com os outros também.
Vicente Concílio - Você acha que essa experiência coletiva promovida pelo teatro tem uma ligação muito forte com a ideia da ficção visionária? Tenho te ouvido falar muitas vezes sobre a ideia de se movimentar coletivamente e em comunidade. Acho que isso, de certa forma, se constrói com as pessoas que compartilham esse tempo e espaço durante o momento da performance.
WALIDAH - Quero dizer, novamente, que eu sou uma escritora, então é para onde vou e é daqui que eu parto. Mas honestamente acho que o teatro é provavelmente um espaço mais natural para a ficção visionária, porque é inerentemente coletivo. Faz parte da criação dele. Mesmo que seja uma peça de uma pessoa, você não pode fazer isso sozinho, você não pode atuar e acender as luzes e controlar o som, isso é criado coletivamente e então é experimentado coletivamente. Eu sou uma escritora, então é para lá que vou, mas você sabe que a experiência do escritor é fundamentalmente solitária.
Vicente Concílio - A ideia desta peça e do livro fazem parte dos programas de remição de
literatura aqui no Brasil: o que você acha disso?
WALIDAH - Estou sem palavras sobre o livro fazer parte do processo de remição. Nunca tinha ouvido falar disso, isso não é algo que temos nos Estados Unidos. Quando o Murilo (diretor da CiA dXs TeRrOrIsTaS) me contou sobre, não pude acreditar que alguém pudesse ler as palavras que eu escrevi e isso literalmente os levaria um passo mais perto da liberdade. Estou muito honrada que todos vocês pensem que o livro é digno de fazer parte desse processo e espero que as pessoas lá dentro também. Eu contei a Kakamia, meu irmão adotivo e um dos protagonistas do livro, sobre isso e ele disse: “Não posso acreditar nisso” e eu disse “Você sabe, são apenas alguns dias” e ele disse “acredite em mim, alguns dias significam tudo naquele lugar”.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
As ficções visionárias, assim como a justiça transformativa, são uma forma de responder à violência dentro de nossas comunidades de maneiras que não criem mais danos e violência. É uma forma de trabalhar ativamente para cultivar exatamente as coisas que sabemos que irão prevenir violência, como responsabilidade, cura, confiança, conexão, segurança.

Tais práticas nos mostram novas formas de criar e pesquisar linguagens nas artes, inclusive nas artes cênicas, trazendo luz a saberes marginalizados pelos modos ocidentais universalizantes de compreender o mundo.
O que se espera com esse texto não é a criação de um novo manual, ou compreender qualquer prática aqui como totalizante, mas sim compreender que o manejo desses recursos de investigação e criação nos possibilitam relacionar o fazer da produção artística e acadêmica na área de pesquisa em artes com a vida cotidiana dos demais setores da sociedade, principalmente aqueles marginalizados.
Essas cosmovisões nos ajudam a ampliar repertórios que viabilizam liberações culturais importantes para a pesquisa em artes cênicas, descolonizando nossos saberes e tornando nossas investigações e seus produtos conectados com a vida e seus fluxos.
Notas
[1] O Brasil é o único país que promove remição de pena por leitura em seu sistema carcerário. Por lei, cada livro lido por uma pessoa presa inscrita na remição reduz até quatro dias de pena, desde que a pessoa presa envie uma resenha, devidamente corrigida por profissionais aprovados pelo judiciário, ao juiz de sua vara de execução. O projeto distribuiu mais de 700 exemplares, o que computa um total de 2800 dias de pena remido por sessões de leitura.
[2] Justiça transformativa é um termo relativamente novo que busca compreender a resolução de conflitos sem a presença da polícia ou do aparato judiciário. Diferente da justiça restaurativa, essa prática procura mudanças radicais para as proposições em justiça, sem tentar restaurar ou reformar o sistema vigente
Referências
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IMARISHA, Walidah, SOUZA, Lígia. Anjos de Cara Suja | Três histórias de crime, prisão e redenção | O Sol é, ou deveria, ser para todas – 2023 – La Lettre – São Paulo.
IMARISHA, Walidah. 2º FPCR - O USO DA FICÇÃO CIENTÍFICA COMO EXERCÍCIO PARA O IMAGINÁRIO
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Original em: Pitágoras 500 V.14 (2024). Disponível em:
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