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O FANTASMA E OS MORTOS: Kafka e as assombrações na pandemia

Allan C.

Käthe Kollwitz, O chamado dos mortos (1939)


Morrer não é sempre igual.


Nos Os Cadernos de Malte Laurids Brigge o poeta alemão Rainer Maria Rilke relata sua experiência ainda criança diante da morte do avô em seu castelo. Os gritos do avô agonizando atravessam noites inteiras, levando medo e terror para toda a aldeia.


Alguns anos mais tarde, quando jovem, Rilke observa um hospital de Paris, o Hotêl-Dieu:


Esse distinto hotel é muito antigo; já na época do rei Clóvis se morria nele em algumas camas. Agora se morre em 559 camas. De um modo industrial, obviamente. [...] O que conta é a quantidade. Quem hoje ainda dá alguma coisa por uma morte bem acabada? Ninguém. Mesmo os ricos, que poderiam se permitir uma morte minuciosa, começam a se tornar descuidados e indiferentes; o desejo de ter uma morte própria se torna cada vez mais raro. Mais um pouco, e será tão raro quanto uma vida própria. Deus, tudo está aí. A pessoa chega, encontra uma vida, pronta, e é só vesti-la. A pessoa quer ir embora ou é obrigada a tanto: bem, nenhum esforço: Voilà votre mort, monsieur. As pessoas morrem do jeito que der; morrem a morte que cabe à doença que têm (pois, desde que todas as doenças são conhecidas, também se sabe que os diferentes epílogos letais cabem às doenças e não às pessoas; e o doente, por assim dizer, não tem nada a fazer). Nos sanatórios, onde as pessoas morrem com tanto gosto e com tanta gratidão aos médicos e enfermeiras, morre-se uma das mortes empregadas pelo estabelecimento; isso é visto com bons olhos. Mas quando se morre em casa, é natural escolher aquela morte polida das altas rodas, com a qual, por assim dizer, o sepultamento já começa como algo de primeira classe e é acompanhado de todos os seus magníficos rituais. Então os pobres ficam parados diante da casa e olham até se fartar. A morte deles, obviamente, será banal, sem quaisquer cerimônias. Eles ficam contentes quando encontram uma que lhes sirva mais ou menos. Ela deve ser folgada: a gente sempre cresce mais um pouquinho. As coisas só se complicam quando não se consegue abotoá-la sobre o peito ou quando ela sufoca. Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, 1910.

Hoje somos confrontados com um novo estágio para a dessensibilização e para a abstração da morte, tornada curva epidemiológica, cifra impessoal e casuística ao mesmo tempo "previsível" e "inevitável". A banalização da morte por sufocamento por COVID-19 a torna a cada dia mais aceitável e borra mais uma vez a fronteira diante do totalmente terrível.


A propósito do aniversário de Franz Kafka neste 3 de Julho de 2020, republicamos aqui sua única peça para teatro, O guardião da cripta, em tradução de Marcelo Backes.


Quem é esse servo que luta com a força da respiração contra hordas do reino dos mortos? Kafka nos apresenta ao terrível, mas queima as pontes. E, como de costume, sobram portas. Seguimos atravessando-as, sem saber onde, quando. Contudo, quase sem forças, o servo se mantém firme no diante do portão da cripta.


Em meio à pandemia de COVID-19, a peça de Kafka nos ensina a fazer novas perguntas. Porque os mortos odeiam as camas? Os que jazem no mundo dos vivos ainda se erguerão? Quem afinal é esse Guarda da Cripta? Como ele sobrevive aos cuspes? Pode afinal manter a multidão de mortos para fora dos muros cidade?


Bom drama!

IK

 

Escritório pequeno, janela alta, diante dela uma copa de árvore desnuda. Príncipe (à escrivaninha, recostado à cadeira, olhando pela janela), camareiro (barba branca e cheia, jovialmente enfiado em um casaco justo, na janela ao lado da porta central).


(Pausa.)


PRÍNCIPE (Voltando-se da janela.): E então? CAMAREIRO: Não posso recomendá-lo, alteza. PRÍNCIPE: Por quê? CAMAREIRO: No momento, não consigo formular minhas reservas com precisão. Nem de longe seria tudo o que eu pretendo dizer se eu mencionasse apenas a sentença humana que declara: deve-se deixar os mortos descansando. PRÍNCIPE: É o que eu também penso. CAMAREIRO: Nesse caso, não entendi direito. PRÍNCIPE: É o que parece.


(Pausa.)


PRÍNCIPE: A única coisa que vos perturba na questão talvez seja apenas a estranheza de eu não ter dado a ordem sem mais nem menos, e sim vos tê-la anunciado antes. CAMAREIRO: O anúncio, de qualquer modo, me dá uma responsabilidade maior, à qual preciso me esforçar em corresponder. PRÍNCIPE: Nada de responsabilidade!


(Pausa.)


PRÍNCIPE: Mais uma vez, então. Até agora a cripta no Parque Frederico era vigiada por um guarda que tem uma casinha na qual mora, à entrada do parque. Havia alguma coisa a reparar nisso tudo? CAMAREIRO: Com certeza não. A cripta tem mais de quatrocentos anos, e durante esse tempo todo também foi vigiada desse mesmo modo. PRÍNCIPE: Poderia se tratar de um abuso. Por acaso não é um abuso? CAMAREIRO: É uma instituição necessária. PRÍNCIPE: Quer dizer então que é uma instituição necessária. Agora já estou há tanto tempo aqui no castelo de campo, consigo vislumbrar detalhes que até o momento eram confiados a estranhos – eles se mostram eficazes só aos trancos e barrancos – e descobri: o guarda lá em cima no parque não basta, é necessário que um guarda vigie também na parte de baixo, junto à cripta. Talvez não se trate de um encargo agradável. Mas a experiência ensina que para qualquer posto se encontram pessoas dispostas e adequadas. CAMAREIRO: É claro que tudo que Vossa Alteza ordenar será executado, ainda que a necessidade da ordem não seja compreendida. PRÍNCIPE (Enfurecido.): Necessidade! Por acaso a guarda no portão do parque é necessária? O Parque Frederico é uma parte do parque do castelo, é completamente envolvido por ele, e o parque do castelo é vigiado à farta, inclusive militarmente. Por que, então, vigiar de modo especial o Parque Frederico? Isso não é uma simples formalidade? Um leito de morte amigável para o pobre ancião responsável pela guarda por lá? CAMAREIRO: É uma formalidade, mas uma formalidade necessária. Testemunha do respeito ante os grandes mortos. PRÍNCIPE: E uma guarda na própria cripta? CAMAREIRO: Ela teria, segundo a minha opinião, um ressaibo policialesco, ela seria uma guarda real de coisas irreais e distantes do humano. PRÍNCIPE: Essa cripta é, na minha família, a fronteira entre o humano e o resto, e eu quero estabelecer uma guarda nessa fronteira. Acerca da – conforme vós vos expressais – necessidade policialesca da mesma podemos interrogar o próprio guarda. Eu mandei que ele viesse. (Faz soar a campainha.) CAMAREIRO: Trata-se, se é que posso me permitir a observação, de um ancião confuso, já completamente fora de si. Príncipe: Se é assim, isso seria apenas mais uma prova da necessidade de um reforço da guarda em meu favor e no sentido que imagino.


(Criado.)


PRÍNCIPE: O guarda da cripta! (O criado conduz o guarda para dentro, segura-o por baixo do braço, do contrário, ele desabaria. Uma libré solene e antiga, vermelha, balançando larga em torno dele, botões de prata lustrados, diferentes honrarias. Quepe na mão. Ele treme sob o olhar dos senhores.) PRÍNCIPE: Para o leito de repouso!


(O criado o deita e sai. Pausa. Apenas o estertorar baixinho do guarda.)


PRÍNCIPE (Mais uma vez na cadeira de braços.): Estás ouvindo? GUARDA (Se esforça em responder, mas não consegue, está esgotado demais, volta a desabar na cama.): …


PRÍNCIPE: Tenta buscar forças. Nós esperaremos. CAMAREIRO (Curvado para o príncipe.): A respeito de que assunto este homem poderia dar informações, e de fato informações importantes ou dignas de crença? Seria melhor levá-lo o mais rápido possível para a cama. GUARDA: Para a cama não… ainda tenho forças… relativamente… ainda sou um homem em plena forma. PRÍNCIPE: Assim é que deveria ser. Tu tens apenas 60 anos. Mas, de qualquer modo, pareces estar bastante fraco. GUARDA: Logo terei me restabelecido… logo. PRÍNCIPE: Isso não foi uma censura. Apenas lamento que estejas tão mal. Tens algo do que te queixar? GUARDA: Trabalho pesado… trabalho pesado… não me queixo… mas esgota muito… lutas no ringue todas as noites. PRÍNCIPE: O que estás dizendo? GUARDA: Trabalho pesado. PRÍNCIPE: Mas disseste mais uma coisa. GUARDA: Lutas no ringue. PRÍNCIPE: Lutas no ringue? Que lutas são essas? GUARDA: Com os antepassados saudosos. PRÍNCIPE: Isso eu não entendo. Tens sonhos pesados? GUARDA: Nada de sonhos… não durmo em noite alguma. PRÍNCIPE: Mas então conte dessas… dessas lutas no ringue. GUARDA (Fica calado.): … PRÍNCIPE (Ao camareiro.): Por que ele se cala? CAMAREIRO (Corre até o guarda.): Tudo pode chegar ao fim para ele a qualquer momento. PRÍNCIPE (Parado junto à mesa.):… GUARDA (Quando o camareiro o toca.): Fora, fora, fora! (Luta com os dedos do camareiro, depois se joga na cama chorando.) PRÍNCIPE: Nós o estamos torturando. CAMAREIRO: Com o quê? PRÍNCIPE: Não sei. CAMAREIRO: O caminho para o castelo, a apresentação, a vista de Vossa Alteza, as perguntas… a tudo isso ele não tem mais juízo suficiente para contrapor o que quer que seja. PRÍNCIPE (Não cessa de olhar para o guarda.): Não é isso. (Vai para o leito de repouso, curva-se para o guarda, toma seu pequeno crânio entre as mãos.) Não precisa chorar. Por que estás chorando? Nós queremos o teu bem. Eu mesmo não considero fácil o teu encargo. Com certeza alcançaste merecimentos servindo a minha casa. Portanto, não chora mais e conta. GUARDA: Mas se eu temo tanto aquele senhor ali… (Olha para o camareiro de modo ameaçador, não amedrontado.) PRÍNCIPE (Ao camareiro.): Vós precisais ir, caso ele deva contar. CAMAREIRO: Mas vede, alteza, ele tem espuma na boca, está gravemente enfermo. PRÍNCIPE (Distraído.): Sim, ide, não demorará muito.


(O camareiro sai. O príncipe senta-se à beira do leito de repouso. Pausa.)


PRÍNCIPE: Por que tu sentiste medo dele? GUARDA (Chamativamente contido.): Eu não senti medo. Sentir medo de um criado? PRÍNCIPE: Ele não é criado. É um conde, livre e rico. GUARDA: De qualquer modo, apenas um criado. Tu és o senhor. PRÍNCIPE: Se fazes questão de que seja assim… Mas tu mesmo disseste que sentes medo dele. GUARDA: Tenho coisas a contar dele que apenas tu deves saber. Será que eu já não falei demais na frente dele? PRÍNCIPE: Quer dizer que somos íntimos, mesmo que eu tenha te visto hoje pela primeira vez. GUARDA: Visto pela primeira vez, mas sabes desde sempre que eu (Erguendo o indicador.) tenho o mais importante dos cargos da corte. Tu mesmo o reconheceste publicamente ao me conceder a medalha Vermelho-Fogo. Aqui! (Ergue a medalha presa à casaca.) PRÍNCIPE: Não, esta é uma medalha dada quando alguém atinge 25 anos de trabalho na corte. Foi meu avô que a concedeu a ti. Mas também eu vou te distinguir. GUARDA: Faz o que achares bom e corresponda à importância dos meus serviços. Já sirvo há trinta anos como guarda da cripta. PRÍNCIPE: Não a mim, meu governo mal dura um ano. GUARDA (Perdido em pensamentos.): Trinta anos.


(Pausa.)


GUARDA (Voltando mais ou menos à observação do príncipe.): As noites lá demoram anos. PRÍNCIPE: Ainda não recebi nenhum relatório da tua repartição. Como é o trabalho? GUARDA: Igual todas as noites. Todas as noites se chega perto de estourar a veia do pescoço. PRÍNCIPE: E o trabalho é apenas noturno? Um trabalho noturno para ti, ancião? GUARDA: Justamente isso, alteza. O trabalho é diurno. Um posto para preguiçosos. Fica-se sentado diante da porta de casa, a boca aberta ao clarão do sol. Às vezes, o cão de guarda bota as patas dianteiras sobre teus joelhos e depois volta a se deitar. Isso é tudo o que acontece. PRÍNCIPE: Pois então.


GUARDA (Assentindo.): Mas ele foi transformado em trabalho noturno.


PRÍNCIPE: E por quem? GUARDA: Pelos senhores da cripta. PRÍNCIPE: E tu os conheces? GUARDA: Sim. PRÍNCIPE: Eles se apresentam diante de ti? GUARDA: Sim. PRÍNCIPE: Inclusive ontem à noite. GUARDA: Inclusive. PRÍNCIPE: E como foi?


GUARDA (Sentando ereto.): Como sempre.


PRÍNCIPE (Levanta-se.): … GUARDA: Como sempre. Até a meia-noite fica tudo em paz. Fico deitado – peço perdão por isso – na cama, e fumo meu cachimbo. Na cama ao lado, dorme minha filha. À meia-noite, ouço a primeira batida na janela. Olho para o relógio. Sempre pontualmente. A batida se repete ainda duas vezes, mistura-se às batidas do relógio da torre e não é mais fraca. Não são os nós de dedos humanos. Mas conheço tudo isso e não me mexo. Então ouço um pigarrear lá fora, parece que se estranha o fato de eu não abrir a janela apesar dessas batidas. Que sua Alteza Real também se admire! O velho guarda continua a postos! (Mostra o punho.) PRÍNCIPE: Estás me ameaçando? GUARDA (Não entende imediatamente.): Não a ti. A quem está diante da janela! PRÍNCIPE: E quem é? GUARDA: Logo ficará claro. De um só golpe, se abrem a janela e a persiana. Mal chego a ter tempo de jogar o cobertor sobre o rosto de minha filha. A tempestade sopra para dentro, e num instante apaga a luz. Duque Frederico! Seu rosto barbudo e seus cabelos tapam completamente minha pobre janela. Como ele mudou ao longo dos séculos. Quando abre a boca para falar, o vento lhe sopra a barba antiga entre os dentes e ele a morde. PRÍNCIPE: Só um momento, dizes duque Frederico. Que Frederico? GUARDA: O duque Frederico, apenas duque Frederico. PRÍNCIPE: É assim que ele diz que é seu nome? GUARDA (Amedrontado.): Não, ele não diz seu nome. PRÍNCIPE: E mesmo assim sabes… (Interrompendo-se.) Continue contando! GUARDA: Devo continuar contando? PRÍNCIPE: Mas é claro. Isso me interessa muito, há aqui um erro na distribuição do trabalho. Tu estavas sobrecarregado. GUARDA (Ajoelhando-se.): Não tome o posto de mim, alteza. Se vivi tanto tempo por ti, permite também que eu morra por ti! Não mande emparedar o túmulo que busco com tanto empenho. Gosto de servir e ainda tenho capacidade de fazê-lo. Uma audiência como a de hoje, um descanso junto ao senhor, me dá forças para dez anos. PRÍNCIPE (Volta a sentá-lo no leito de repouso.): Ninguém vai tomar teu posto. Como eu poderia abrir mão de tua experiência por lá? Mas vou determinar que um guarda te auxilie e tu te tornarás chefe da guarda. GUARDA: Não sou mais suficiente? Por acaso deixei passar alguém, algum dia? PRÍNCIPE: Para dentro do Parque Frederico? GUARDA: Não, para fora do parque. Por acaso alguém quer entrar? Se alguma vez alguém fica parado diante das grades, eu aceno com a mão da janela e ele sai correndo. Mas sair, todos querem sair. Depois da meia-noite, podes encontrar reunidas em torno da minha casa todas as vozes dos túmulos. Acredito que apenas por se acotovelarem tanto é que elas não entram todas, com tudo aquilo que são, pelo buraco estreito da minha janela. Mas quando as coisas ficam complicadas demais, pego o lampião debaixo da cama, agito-o bem alto e eles se separam, seres incompreensíveis, afastando-se uns dos outros com gargalhadas e lamentos; no entanto, até mesmo na última moita, na extremidade do parque, eu ainda os ouço farfalhando. Mas logo eles voltam a se juntar. PRÍNCIPE: E eles fazem pedidos? GUARDA: Primeiro dão ordens. O duque Frederico antes de todos os outros. Nenhum ser vivo é tão confiante. Há trinta anos, todas as noites, ele espera me encontrar combalido uma única vez. PRÍNCIPE: Se ele aparece há trinta anos, não pode ser o duque Frederico, que morreu há apenas 15 anos. Mas ele também é o único com esse nome na cripta. GUARDA (Tocado demais pelo que foi contado.): Não sei nada disso, alteza, não estudei. Sei apenas como ele começa. “Cachorro velho”, ele começa dizendo junto à janela, “os senhores batem e tu ficas deitado em tua cama suja”. Eles, aliás, sempre têm ódio às camas. E então falamos todas as noites quase a mesma coisa. Ele lá fora, eu diante dele com as costas voltadas para a porta. Eu digo: “Trabalho apenas de dia.” Ele, o senhor, volta-se e grita para o parque: “Ele trabalha apenas de dia.” A resposta é uma gargalhada geral de toda a nobreza reunida. Então o duque volta a dizer, dirigindo-se a mim: “Mas é dia.” Eu, logo depois: “O senhor se engana.” O duque: “Dia ou noite, abre o portão!” Eu: “Isso é contra as regras do meu trabalho.” E eu aponto o bastão do cachimbo para uma folha na parede. O duque: “Mas tu és o nosso guarda.” Eu: “Vosso guarda, mas empregado pelo príncipe regente.” Ele: “Nosso guarda, e é isso que importa. Portanto abre, e imediatamente.” Eu: “Não.” Ele: “Estúpido, vais perder teu emprego. O duque Leo nos convidou hoje.” PRÍNCIPE (Imediatamente.): Eu? GUARDA: Tu.


(Pausa.)


GUARDA: Quando ouço teu nome, perco minha segurança. Por isso logo me recosto com cautela à porta, que então passa a ser a responsável quase única por me deixar ereto. Lá fora todos cantam teu nome. “Onde está o convite?”, eu pergunto baixinho. “Animal de cama”, grita ele, “tu duvidas de minha palavra de duque?”. Eu digo: “Não tenho nenhuma ordem nesse sentido, e por isso não vou abrir, não vou abrir e não vou abrir.” “Ele não vai abrir”, grita o duque para fora, “avante, portanto, todos, a dinastia inteira, contra o portão, vamos abrir nós mesmos”. E no momento está tudo vazio diante da minha janela.


(Pausa.)


PRÍNCIPE: Isso é tudo? GUARDA: Como assim? Só agora é que começa meu verdadeiro serviço. Saio porta afora, ando em torno da casa e logo me choco com o duque e já balançamos em meio à luta. Ele, tão alto, eu, tão baixo, ele, tão largo, eu, tão magro, eu luto apenas com seus pés, mas às vezes ele me ergue e então eu luto também com a parte de cima do corpo. Em torno de nós estão todos os seus camaradas, reunidos em círculo, e riem de mim. Um, por exemplo, corta minhas calças na parte de trás, e então todos também brincam com a ponta da minha camisa, enquanto eu luto. Incompreensível por que eles riem, se até agora sempre acabei vencendo. PRÍNCIPE: Mas como é possível que venças? Tens armas? GUARDA: Só nos primeiros anos levei armas comigo. Mas em que elas poderiam me ajudar contra ele? Apenas eram um peso a mais. Nós lutamos somente com os punhos, ou, na verdade, apenas com a força da respiração. E tu sempre estás em meus pensamentos.


(Pausa.)


GUARDA: Mas jamais duvido da minha vitória. Só às vezes temo que o duque possa me perder entre seus dedos e não mais saber que está lutando. PRÍNCIPE: E quando vences, enfim? GUARDA: Quando amanhece. Então ele me joga ao chão e cospe em mim, e assim confessa sua derrota. Mas eu preciso ficar deitado ainda uma hora antes de conseguir respirar bem de novo.


(Pausa.)


PRÍNCIPE (Levantando-se.): Mas me dize uma coisa, não sabes realmente o que eles querem? GUARDA: Sair do parque. PRÍNCIPE: Mas por quê? GUARDA: Isso eu não sei. PRÍNCIPE: Jamais perguntaste a eles? GUARDA: Nunca. PRÍNCIPE: Por quê? GUARDA: Tenho vergonha. Mas, se quiseres, vou perguntar hoje. PRÍNCIPE (Assustando-se, em voz alta.): Hoje? GUARDA (Como um perito.): Sim, hoje. PRÍNCIPE: E não tens a menor ideia do que eles querem? GUARDA (Pensativo.): Não.


(Pausa.)


GUARDA: Às vezes, talvez eu ainda deva dizer isso, vem até mim, bem cedo, quando ainda estou caído no chão, sem fôlego – me sinto tão fraco nesses momentos até para abrir os olhos –, um ser suave, úmido e peludo, uma retardatária, a condessa Isabella. Ela me apalpa em vários lugares, segura minha barba, passa todo o seu comprimento pelo meu pescoço, por baixo do queixo, e costuma dizer: “Podes não deixar os outros passar, mas a mim, a mim, sim, deixa sair.” Eu sacudo negativamente a cabeça tanto quanto posso. “Para ir até o príncipe Leo e lhe estender a mão.” Eu não paro de sacudir a cabeça. “Só a mim, só a mim”, eu ainda ouço, e então ela já se foi. E minha filha chega com cobertores, me envolve e espera perto de mim até que eu consiga caminhar sozinho. Uma menina extraordinariamente boa. PRÍNCIPE: Um nome desconhecido, Isabella.


(Pausa.)


PRÍNCIPE: Estender-me a mão. (Vai até a janela, olha para fora.)


(O criado entra pela porta central.)


CRIADO: Vossa Alteza, a honorável senhora princesa pede para chamá-lo. PRÍNCIPE (Olha distraído para o criado – depois para o guarda.): Espere até que eu venha. (Sai pela esquerda.)


(Imediatamente chega o camareiro pela porta central, depois o preceptor-chefe – um homem jovem, uniforme de oficial.)


GUARDA (Abaixa-se, escondendo-se atrás do leito de repouso como se visse fantasmas, e meneia as mãos como se lutasse.) PRECEPTOR-CHEFE: O príncipe saiu? CAMAREIRO: Seguindo seu conselho, a senhora princesa mandou chamá-lo agora. PRECEPTOR-CHEFE: Muito bem. (Volta-se de repente, curva-se por trás do leito de repouso.) E tu, fantasma miserável, ousas realmente vir até o castelo do príncipe? Não temes o pontapé formidável que te botará portão afora? GUARDA: Eu estou, eu estou… PRECEPTOR-CHEFE: Silêncio, primeiro fique em silêncio, em completo silêncio… E sente-se aqui, no cantinho! (Ao camareiro:) Agradeço ao senhor as notícias acerca dos novos humores principescos. CAMAREIRO: O senhor mandou me perguntar. PRECEPTOR-CHEFE: Pelo menos isso. E agora uma palavra de confiança. Intencionalmente diante dessa coisa aí. O senhor, senhor conde, está flertando com o partido inimigo. CAMAREIRO: Isso é uma acusação? PRECEPTOR-CHEFE: Por enquanto, é uma acusação. CAMAREIRO: Então posso responder. Eu não flerto com o partido inimigo, pois não o reconheço. Sinto as correntes políticas, mas não mergulho nelas. Ainda sou um produto da política aberta que valia sob o reinado do duque Frederico. À época, a única política no serviço da corte era servir ao príncipe. Uma vez que ele era um solteirão, isso ficou mais fácil, mas não deveria jamais ser difícil. PRECEPTOR-CHEFE: Bem razoável. Só que o próprio nariz – por mais fiel que seja – jamais mostra o caminho certo de modo duradouro; este é apontado apenas pelo juízo. O juízo, no entanto, precisa se decidir. Dado o caso de que o príncipe esteja se desviando do caminho: servimo-lo se o acompanhamos para baixo ou se – com toda a obediência – o instamos a voltar? Sem dúvida, se o instamos a voltar. CAMAREIRO: O senhor veio de uma corte estranha com a princesa, está há meio ano aqui e já quer logo conduzir os padrões que definem o que é bom e o que é mau nas complicadas relações da corte? PRECEPTOR-CHEFE: Quem pisca vê apenas complicações. Quem mantém os olhos abertos vê, tanto na primeira hora como depois de cem anos, o que é eternamente claro. Aqui, contudo, vê o tristemente claro, mas que já nos próximos dias se aproximará de uma decisão que esperamos seja boa. CAMAREIRO: Não posso acreditar que a decisão que o senhor quer encaminhar, da qual, aliás, conheço apenas o anúncio, será uma boa decisão. Temo que o senhor compreenda mal os nossos príncipes, a corte e tudo por aqui. PRECEPTOR-CHEFE: Se compreendo ou não compreendo, a situação atual é insustentável. CAMAREIRO: Ela pode até ser insustentável, mas surge da essência das coisas por aqui, e nós teremos de sustentá-la até o fim. PRECEPTOR-CHEFE: Mas não a princesa, nem eu, nem os que estão conosco. CAMAREIRO: Onde, então, o senhor vê o aspecto insustentável? PRECEPTOR-CHEFE: Justamente em face da decisão, quero falar com toda a clareza. O príncipe tem uma feição dupla. Uma delas se ocupa do governo e oscila distraída diante do povo, não observa os próprios direitos. A outra procura, é preciso reconhecer, de modo bem preciso, o reforço de seu fundamento. Procura-o no passado, e lá mergulha cada vez mais fundo. Que desconhecimento da situação! Um desconhecimento, que não é sem grandeza, que, no entanto, é maior em sua deficiência do que em sua visão. Como o senhor é capaz de não ver isso? CAMAREIRO: Não me volto contra a descrição do problema, apenas contra o veredicto. PRECEPTOR-CHEFE: Contra o veredicto? Mas, na esperança de contar com sua concordância, o veredicto ainda foi bem mais suave do que de fato deveria ser, segundo eu penso. E se ainda não mandei executar o mesmo veredicto, é apenas para poupar o senhor. Mas só uma coisa: o príncipe, na realidade, não necessita de nenhum reforço de seu fundamento. Que ele faça uso de todos os meios de poder de que dispõe no momento, e haverá de chegar à conclusão de que eles são suficientes para conseguir tudo o que a responsabilidade mais atilada pode exigir dele diante de Deus e dos homens. Mas ele se esquiva do equilíbrio da vida, e está a caminho de se tornar um tirano. CAMAREIRO: E seu comportamento humilde! PRECEPTOR-CHEFE: Humildade apenas de uma das feições, porque ele precisa de todas as forças para a segunda, que junta o fundamento que, por exemplo, deve ser suficiente para a Torre de Babel. Esse trabalho precisa ser impedido, e essa deveria ser a única política daqueles que se preocupam com sua existência pessoal, com o principado, com a princesa e quem sabe até mesmo com o príncipe. CAMAREIRO: “Quem sabe até mesmo”… O senhor está realmente sendo muito sincero. Sua sinceridade, para dizer a verdade, me faz tremer ante a decisão anunciada. E lamento, conforme, aliás, lamentei diversas vezes nos últimos tempos, ser fiel ao príncipe, mesmo que para tanto seja obrigado a deixar de defender a mim mesmo. PRECEPTOR-CHEFE: Tudo está claro. O senhor não flerta com o partido inimigo, mas inclusive lhe estende uma mão. Apenas uma, no entanto, e isso é digno de louvor para um antigo funcionário da corte. Mas sua única esperança permanecerá sendo a de que nosso grande exemplo leve o senhor conosco. CAMAREIRO: O que eu puder fazer contra isso farei. PRECEPTOR-CHEFE: Não tenho mais medo disso. (Apontando para o guarda.) E tu, que só sabes ficar sentado aí, tão quietinho, entendeste tudo o que foi dito agora? CAMAREIRO: O guarda da cripta? PRECEPTOR-CHEFE: O guarda da cripta. É provável que se tenha de vir do estrangeiro para reconhecê-lo. Não é verdade, meu jovem, seu velho corujinha? O senhor deveria vê-lo voando uma vez à noite pela floresta, nenhum atirador consegue acertá-lo. Mas de dia se encolhe e se esconde em um canto qualquer. CAMAREIRO: Não estou entendendo. GUARDA (Quase chorando.): O senhor briga comigo e eu não sei por quê. Permita que eu vá para casa. Não sou nada de ruim, apenas o guarda da cripta. CAMAREIRO: O senhor desconfia dele. PRECEPTOR-CHEFE: Desconfiar dele? Não, para isso ele é insignificante demais. Mas quero deitar minha mão sobre ele mesmo assim. Penso – e o senhor pode chamar a isso de capricho ou de crendice – que ele não é apenas um instrumento do mal, mas sim um trabalhador autônomo, aliás, muito honrado, em favor do mal. CAMAREIRO: Ele já serve a corte há talvez trinta anos com toda a tranquilidade, sem provavelmente jamais ter estado no castelo. PRECEPTOR-CHEFE: Ah, toupeiras assim constroem longas tocas antes de aparecer. (Voltando-se para o guarda de repente.) Primeiro, fora com esse daí! (Para o criado.) Tu vais levá-lo ao Parque Frederico, ficarás com ele e não o deixarás sair mais até ordem em contrário. GUARDA (Com muito medo.): Mas eu devo esperar por Sua Alteza o príncipe. PRECEPTOR-CHEFE: Engana-te… Vá embora daqui. CAMAREIRO: Ele precisa ser poupado. É um homem velho e doente, e o príncipe de algum modo gosta dele. GUARDA (Curvando-se profundamente diante do camareiro.) PRECEPTOR-CHEFE: Como? (Ao criado.) Trate-o com cuidado, poupando-o, mas leve-o embora daqui de uma vez por todas! E rápido! CRIADO (Quer agarrar o guarda.): … CAMAREIRO (Colocando-se no meio deles.): Não, é preciso trazer um carro. PRECEPTOR-CHEFE: Esse é o ar da corte. Não consigo distinguir o gosto de um só grão de sal. Um carro, pois. Vais conduzir essa preciosidade em um carro. Mas saiam já do recinto, os dois. (Ao camareiro.) O comportamento do senhor me diz que…


(O guarda desaba com um pequeno grito no caminho até a porta.)


PRECEPTOR-CHEFE (Golpeando o chão com os pés.): É impossível se livrar dele. Carregue-o nos braços, então, caso não haja outro jeito. Entende de uma vez por todas o que se quer de ti. CAMAREIRO: O príncipe! CRIADO (Abre a porta à esquerda.): … PRECEPTOR-CHEFE: Ah! (Olha para o guarda.) Eu deveria saber, fantasmas não podem ser transportados.


(Entra o príncipe e, em passo rápido, atrás dele, a princesa, mulher jovem e morena, dentes cerrados, fica parada à porta.)


PRÍNCIPE: O que foi que aconteceu? PRECEPTOR-CHEFE: O guarda se sentiu mal, eu queria mandar levá-lo embora daqui. PRÍNCIPE: Deveriam ter me informado. Já buscaram um médico? CAMAREIRO: Vou mandar chamá-lo. (Sai às pressas pela porta central, volta logo depois.) PRÍNCIPE (Enquanto se ajoelha junto ao guarda.): Preparem uma cama para ele. Busquem a maca! O médico já está vindo? Quanto tempo ainda ele vai demorar? O pulso está tão fraco. O coração não pode mais ser sentido. As miseráveis costelas à vista. Como tudo isso está gasto. (Levanta-se de repente, pega um copo d’água, enquanto olha à sua volta.) Todo mundo tão imóvel. (Logo volta a se ajoelhar, umedece o rosto do guarda.) Eis que já está respirando melhor. Não haverá de ser tão ruim, um tronco saudável, mesmo na pior das misérias, ele não falha. Mas o médico, onde está o médico? (Enquanto o príncipe olha para a porta, o guarda ergue a mão e acaricia a face do soberano.)


(A princesa desvia os olhos para a janela. O criado entra com a maca, o príncipe ajuda a botar o guarda sobre ela.)


PRÍNCIPE: Agarrem-no com suavidade. Ah, com vossas patas! Ergam um pouco a cabeça. Mais perto da maca. O travesseiro mais fundo, debaixo das costas. O braço! O braço! Vós sois péssimos enfermeiros, péssimos. Tomara que um dia vos sintais tão cansados como este sobre a maca… Assim… E agora, em passo bem lento. E, sobretudo, regular. Vou ficar atrás de vós. (À porta, para a princesa.) Este é, pois, o guarda da cripta.


(A princesa assente.)


PRÍNCIPE: Pensei em mostrá-lo a ti de modo diferente. (Depois de mais um passo.) Não queres vir junto? PRINCESA: Estou tão cansada. PRÍNCIPE: Assim que tiver falado com o médico, eu volto. E os senhores me darão notícias, esperem por mim. (Sai.) PRECEPTOR-CHEFE (À princesa.): Sua Alteza precisa de meus serviços? PRINCESA: Sempre. Agradeço ao senhor sua vigilância. Não a abandone, ainda que ela hoje tenha sido em vão. Vale tudo. O senhor vê mais do que eu. Eu estou em meu quarto. Mas sei que tudo vai ficar cada vez mais sombrio. Dessa vez, o outono está mais triste do que nunca.


 

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