top of page

Prisão, pandemia e feminismos

Entrevista com Moira Pérez, doutora em filosofia e especialista em violência e identidade

Por Augustina Paz Frontera



 

Entrevista realizada em 3 de maio de 2020

Traduzido do espanhol por Gabriel Matos


“O feminismo morreu” foi o slogan que virou tendência nas redes sociais e incitou uma série de discussões e opiniões [na Argentina]. A suposta liberação massiva de presos por crimes sexuais e feminicídios trouxe novamente a discussão acerca do vínculo entre punitivismo e feminismo, demonstrando a existência de um “feminismo carcerário”. Para Moira Pérez, especialista nesses temas, o problema reside no fato de que grande parte do movimento feminista tende a pensar a justiça como punição e a punição como cárcere.


— Nestes dias, no contexto da campanha contra as medidas de flexibilização do confinamento dos presos na Argentina, também surgiram críticas ao feminismo por não reagir diante da suposta liberação massiva de condenados por abuso sexual e feminicídio. Assim, as críticas às medidas para enfrentar a superlotação do sistema penitenciário vieram também de alguns espaços feministas. Entretanto, nem todos os feminismos buscam o cárcere como solução exclusiva ao problema da violência de gênero. Poderia me contar qual o vínculo — do seu ponto de vista — entre feminismo e punição ou entre feminismo e cárcere? Ao que você acredita que a associação entre feminismos e demanda por punição responde?


Diante de tudo, me parece importante afirmar que essas reações se deveram em grande parte a notícias falsas e informações produzidas e difundidas com a intenção de estigmatizar e difamar as pessoas privadas de liberdade, seus familiares e aqueles que defendem seus direitos. Uma checagem rápida das informações em instituições confiáveis e sérias como o CELS, a Procuración Penitenciaria Nacional (PNN) ou a Comisión Provincial por la Memoria (CPM) e organizações que vem trabalhando com a questão carcerária há tempos, como a Associación Civil de Familiares de Detenidos (ACIFaD), Atrapamuros ou a Cooperativa Esquina Libertad, serve para desmentir a maioria das coisas que se têm dito. Assim, estabelecemos os termos reais do debate e podemos falar seriamente sobre a questão carcerárias diante da emergência sanitária.


E sobre o que me pergunta, isso depende de qual feminismo está em questão ou mesmo do que entendemos por feminismo. Em princípio, não creio que haja um vínculo necessário ou essencial entre feminismo e punição ou feminismo e cárcere, mas também creio que, em grande parte do feminismo, há a tendência de pensar a justiça como punição e a punição como cárcere. Isto é, a partir de um diagnóstico da sociedade como desigual (desigualdade que muitas vezes é interpretada estritamente como uma iniquidade entre homens e mulheres, sem incluir outros fatores) o feminismo impulsiona uma busca pela equidade (de novo, frequentemente entendida como alcançar uma relação horizontal entre homens e mulheres, sem maiores esclarecimentos) que inclui, entre outras coisas, a justiça diante da violência sofrida pelas mulheres. Porém, essa justiça poderia ser entendida de muitas maneiras, mas com frequência há a tendência de entendê-la, em nossa sociedade, como punição aos perpetradores diretos. Muitas vezes, o feminismo, em vez de repensar ou ampliar esta compreensão da justiça, a reproduz e busca a punição dos indivíduos (homens) que realizaram os eventos pontuais que caracterizamos como violência de gênero” (às mulheres). Por outro lado, inclusive para essa concepção de justiça como punição (com a qual pessoalmente não estou de acordo), poderíamos pensar a punição de muitas maneiras, mas há a tendência de reduzi-la ao cárcere. Isto é o que Elizabeth Bernstein e outras feministas têm chamado “feminismo carcerário”, ergue-se principalmente da busca por justiça (leia-se: prisão) diante da violência de gênero (leia-se: violência de homens individuais contra mulheres individuais). São dois movimentos distintos (de justiça a punição e de punição a cárcere) que partem de decisões e manobras políticas do movimento e tem implicâncias, por exemplo, em quem fica debaixo da ala protetora do feminismo, que tipo de reivindicações terão prioridade na agenda do movimento e com quem se pode ou não estabelecer alianças.


— O macho violento é construído como um monstro e patologizado, um sujeito que merece o pior dos castigos: a prisão (pelo menos). A que outros discursos sociais se vincula a deriva punitivista do feminismo? Estou pensando também em como o discurso do punho de ferro permeia os espaços feministas ou da diversidade (algo que você menciona em um artigo na Soy).


— Essa construção do “macho violento” monstruoso é uma parte fundamental da cultura punitivista: tenho que construir um mal monstruoso, incontrolável, perturbado, para poder justificar o fervor com que peço a punição, para justificar esse pedido que circulou esses dias de “que não saiam nunca mais”. Isso, como você diz, vai além do feminismo, é um discurso que atravessa toda a nossa sociedade. Mas tem sido apropriado, intencionalmente ou não, por movimentos vinculados ao gênero, tal como os movimentos LGBT ou os feminismos. E isso é paradoxal porque esse discurso social do “macho monstruoso” nos mostra claramente como o punitivismo (e a prisão como sua expressão mais tangível) funciona como tecnologia de gênero. Através do quadro punitivista, construo certos modos de entender o gênero, e cada um dos gêneros: o homem (ou a pessoa heterossexual, a partir do movimento gay-lésbico) é mal, tosco, violento, impulsivo; a mulher (ou a pessoa não heterossexual) é boa, passiva, frágil e vítima. Laura Macaya-Andrés, uma anarcofeminista espanhola, mostra claramente como isso termina prejudicando até mesmo as mulheres, produzindo modelos que as pessoas reais têm que cumprir se querem ter acesso à proteção do movimento feminista ou LGBT e do Estado. É paradoxal porque estamos reproduzindo os mesmos estereótipos que o feminismo se propõe a desmontar: a tendência punitivista do feminismo se compromete com certas representações sociais do que é “a mulher” que, ditas em qualquer outro contexto, causariam horror a qualquer feminista.


Mas há outra coisa sobre este ponto que gostaria de destacar: o fato de que pedimos “que não saiam nunca mais” é a demonstração mais evidente de que, na realidade, não acreditamos no sistema penal. Se acreditássemos que o sistema penal funciona, ficaríamos tranquilxs com o fato de que a pessoa possa ser libertada uma vez que cumpra sua pena, porque saberíamos que essa pessoa passou por um “tratamento” (é o termo que o sistema penal argentino utiliza) e um processo de reintegração com o meio livre (não digo “reinserção social” porque o presídio também faz parte da sociedade, é claro). Mas não acreditamos na prisão, sabemos que a prisão em si mesma não funciona, não ajuda as pessoas que cometeram um dano comprovado (que são uma minoria nas penitenciárias) a repensar e construir outros planos de vida. Obviamente, há muita gente no sistema penitenciário que leva a frente esse projeto, mas não porque o sistema penitenciário o tenha facilitado, senão, muitas vezes, na direção contrária dessa instituição.


 — Muito se falou dos acusados ou condenados por crimes violentos relacionados ao gênero, mas pouco se disse sobre as condições das mulheres e pessoas trans nas penitenciárias, inclusive nesses mesmos meios feministas. O que acontece com essas identidades na prisão?


— Se entendemos o feminismo como um movimento (ou um conjunto de movimentos) que busca transformar as condições de vida das mulheres e o lugar social que elas ocupam, então a questão carcerária tem que ser um eixo fundamental de seu trabalho. Não só pelas mulheres (cis [1] e trans) presas, mas também pelas famílias que são quem muitas vezes sustentam a sobrevivência de seus companheiros, filhos e irmãos detidos e que, como tem mostrado, por exemplo, Vania Ferreccio na Argentina, são alcançadas pelo sistema penitenciário mesmo estando “fora” (neste ponto a distinção explícita entre “dentro” e “fora” se torna mais difícil de sustentar).


Nos últimos anos, a taxa de encarceramento de mulheres e feminilidades trans tem subido de maneira desproporcional em toda a América Latina, em grande parte, por conta da “guerra às drogas” que, desde os anos ‘90, tem servido para punir a pobreza, a precariedade e a sobrevivência. Na Argentina, cerca de 80% das mulheres cis e 70% das feminilidades trans presas no sistema federal estão detidas pela Lei 23.737 de narcóticos, basicamente acusadas – a maioria sem sentença – de tráfico de drogas (para informações atualizadas e confiáveis sobre isso, recomento buscar os relatórios da PPN). No caso dos homens trans, não há números precisos, em geral porque, para uma pessoa atribuída ao sexo feminino ao nascer, pode ser muito perigoso se identificar abertamente como homem dentro do sistema prisional (neste sentido, é incorreto dizer que a prisão afeta mais as feminidades trans que as masculinidades trans justamente porque não temos uma maneira de saber realmente, pelo menos por agora).


Anteriormente, eu me referi ao sistema penal como “tecnologia de gênero”, acrescento que o abolicionismo queer e feminista tem demonstrado há décadas que essa “tecnologia de gênero” também funciona na prisão como forma de disciplinar o gênero: mesmo que, do ponto de vista legal e burocrático se esteja encarcerando uma mulher cis ou uma mulher trans por tráfico de drogas, o que está sendo punido é, em grande parte, sua forma de viver o seu gênero, o seu desrespeito em relação ao lugar social atribuído a esse grupo social. O tráfico de drogas é a forma que temos agora de rotular esse disciplinamento penal; no passado, era o trabalho sexual, a vadiagem ou qualquer outra figura que se possa imaginar na nossa triste história penal.


— Muitas vezes os feminismos, como outros movimentos sociais, levantaram a bandeira “não em nosso nome”, denunciando uma utilização instrumental de seus princípios ou reivindicações. Que leitura você faz de como essas reivindicações feministas são formuladas hoje para reforçar a discriminação contra pessoas presas e, ao mesmo tempo, criticar o governo?


— Toda iniciativa de transformação social se expõe a ser reapropriada e instrumentalizada para fins que lhe são alheios. Em outras palavras, tudo o que fazemos (inclusive na academia, nossa produção intelectual) pode ser tomado como instrumento para conquistar terrenos para agendas que não são as nossas, até mesmo agendas das quais discordamos profundamente. Por isso, é importante que aquelxs que se identificam como feministas reflitam criticamente sobre as diferentes implicações que suas estratégias possam vir a ter, mesmo que seja numa direção que não se desejava inicialmente. É claro que não podemos nem imaginar algumas dessas direções, mas outras são previsíveis. Nesse ponto, acredito que devemos seguir o sábio conselho de Ruth Gilmore Wilson, pensadora e ativista abolicionista, quando disse: “Não façamos concessões que vamos ter que desmontar no futuro”. Digo isso me referindo àquelas que se entendem como feministas, mas não querem alimentar o sistema penal (o que certamente não são todas).


Por outro lado, da minha perspectiva, não seria um problema em si se “por causa do feminismo, os presos forem libertados”, se o que estivesse em questão fosse que “graças às reivindicações do movimento feminista, as garantias constitucionais que protegem as pessoas privadas de sua liberdade seriam cumpridas”. Em todo caso, o problema dessa frase é que não é correta por muitos motivos: entre outros, porque não é “por causa do feminismo”. Há linhas do feminismo que são abertamente a favor do sistema penal e carcerário (inclusive o sistema prisional tal como é hoje em dia), e isso também deve ser considerado. Não estou de acordo com o que dizem “se é isso ou aquilo, não é feminismo”: sim, é feminismo; o feminismo é plural, contraditório e dinâmico como qualquer movimento social e inclui projetos nos quais algumas podem não estar de acordo. A questão carcerária é um ótimo exemplo. É importante entender que o aumento da população carcerária não se deve necessariamente ao aumento da criminalidade, mas sim à criação de novas infrações penais, à extensão das penas e à limitação das medidas de mitigação. E o “feminismo carcerário” tem contribuído para esses três fatores, entendendo, como eu dizia antes, que a forma de obter justiça é criar uma infração penal, que as pessoas (homens, nesse caso) sejam presas por essa infração e que fiquem ali a maior quantidade de tempo possível. Mas aquelas feministas que buscam melhorar as condições de vida das mulheres precisam entender que essas três medidas não serão aplicadas somente aos homens, e que, inclusive, quando se aplicam aos homens, afetam profundamente a vida de muitas mulheres. E, sobretudo, que ao serem exigidas alimentam uma rede social mais ampla, a cultura da punição, que nos aprisiona a todxs de uma forma ou outra.


— Por fim, uma pergunta sobre o futuro. Você acredita que os feminismos podem almejar um projeto mais abrangente de justiça social ou estão condenados a seguir girando em torno das vítimas, em especial das mulheres vítimas de violência de gênero, sem se importar com qualquer outra particularidade?


— De novo, há muitos feminismos e cada um deles tomará rumos distintos, em parte marcados pelas decisões de quem os forma, em parte redirecionado por circunstâncias históricas que estão além de nós. Porém, acredito que qualquer movimento que se pensa como parte de uma transformação perante um mundo justo e equitativo deve dar um espaço central e permanente à autocrítica, à escuta e ao intercâmbio com outros movimentos. É muito difícil fazer um espaço de autocrítica dentro de movimentos sociais progressistas porque temos a tendência a nos polarizar em uma dinâmica de “nós contra elxs” que não ajuda a ninguém. Essa autocrítica inclui, por exemplo, pensar seriamente em por que nos espaços de deliberação da minha organização não há pessoas racializadas, pessoas trans, mulheres rurais, familiares de detentxs, o que quer que seja que possa contribuir para o tema sobre o qual me interessa intervir.


Ainda, em questões tão sensíveis como estas, onde está em jogo como responder à violência, não podemos nos limitar a julgar, do lado oposto da rua, aqueles que pedem mais penas e prisão. A grandiosidade do panelaço que vimos há alguns dias contra as medidas de mitigatória numa emergência sanitária me causou uma dor perfurante, mas também me levou a refletir (no meu caso, juntamente a Blas Radi e outrxs colegas do grupo PolQueer em que trabalho) sobre as causas dessa reação social e se, a partir desse antipunitivismo local, estamos oferecendo alternativas concretas e viáveis a essas demandas de punição. Digo isso para além das notícias falsas que têm alimentado esse fenômeno, que mencionei a princípio (nós, que nos interessamos pela questão carcerária, já estamos acostumadxs às mentiras que são ditas impunemente sobre o sistema penal e quem nele transita). Devemos entender que, em alguns casos (não em todos, claro), esse pedido nasce de um dano real que foi causado às vítimas e sobreviventes cujos direitos têm sido sistematicamente violados ao longo de suas vidas, o sistema penal é a única via que os foi oferecida, tanto institucionalmente como no imaginário social, para interpretar o que seria a “justiça” e como obtê-la. Dizer “ são todos fascistas” não vai desfazer o dano nem curar as profundas feridas que muitas dessas pessoas carregam. Pessoalmente, não me interessa um movimento que se limite a julgar e descartar pessoas rotulando-as de “fascistas”, “patriarcais”, “machirulo” [2] ou o que quer que seja, a partir de um lugar externo e imaculado. Devemos oferecer alternativas concretas, retomar e colaborar com experiências existentes de resolução de conflitos, justiça restaurativa, afirmação de direitos e apoio comunitário para que essa pessoa que hoje pede prisão veja outros caminhos possíveis e, em todo caso, possa escolher qual é a sua demanda – se segue acreditando que “apodrecer na prisão” é o caminho, então não tenho muito mais a dizer –. Esse futuro, tal como ensina o abolicionismo penal, é construído com elementos do presente: só precisamos buscá-los, difundi-los, e colaborar para que sigam crescendo.


Notas do tradutor


  1. Uma pessoa cis é aquela cuja identidade de gênero coincide com o sexo que lhe foi atribuído ao nascer. O oposto de cisgênero é denominado transgênero.


  2. Machirulo é termo para definir um homem com poder e que não tem problemas em ser sexista. Aglutinação das palavras machista e chulo.


Versão original em:

Comentarios


bottom of page