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REFLEXÃO EM MEMÓRIA AOS DOIS ANOS DO DESASTRE DE BRUMADINHO

SÔNIA MARIA AMÂNCIO

Especial para IK



"A viagem parecia-lhe sem jeito, nem acreditava nela. Preparara-a lentamente, adiara-a, tornara a prepará-la, e só se resolvera a partir quando estava definitivamente perdido. Podia continuar a viver num cemitério?" Vidas Secas, Graciliano Ramos.
 

O texto a seguir, da pesquisadora Sônia Maria Amâncio, é um desenvolvimento da leitura de

NÃO EXISTE DESASTRE NATURAL - NEIL SMITH

traduzido e publicado pela IK na série KATRINA.

 

No dia 30 de abril de 2019, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais aprovou por unanimidade uma reforma administrativa do Estado de Minas Gerais, apresentada pelo governador recém-eleito Romeu Zema. A proposição contou com o apoio de uma consultoria financiada por um grupo organizado de empresários que procura incidir sobre a pauta fiscal junto ao Governo Federal de Jair Bolsonaro, em parceria com governadores eleitos em 2018.


As estratégias de classe que resultaram no Projeto de Lei 367/19, que versa sobre a reforma, foram pactuadas logo depois do segundo turno das eleições. Dois eventos realizados na cidade de São Paulo marcaram o compromisso entre os pares e contaram com a participação de figuras que integrariam o governo Bolsonaro na área fiscal, além de cinco governadores eleitos, Ronaldo Caiado (GO), Helder Barbalho (PA), Eduardo Leite (RS), João Doria Jr (SP) e, nosso personagem, Romeu Zema (MG) [1]. Na ocasião, entre os principais consensos, a certeza de que uma saída para o Brasil dependia do fortalecimento de uma política de “equilíbrio fiscal”, com reforço e adequação de seus parâmetros atuais. Para isso, os presentes do ramo empresarial, e seus representantes na política, definiram uma agenda com prioridades, sendo imprescindível a atuação institucional dos governadores para reduzir as despesas com pessoal - ou seja, ajuste fiscal mediante cortes no funcionalismo público -, enquanto o governo federal teria como missão histórica efetivar uma reforma previdenciária - ou seja, ajuste fiscal a partir de um recuo de direitos trabalhistas.


Voltando para a reforma administrativa de Romeu Zema, destaca-se seu ímpeto por reduzir cerca de 40% da máquina pública [2], justificado por uma maior eficiência na execução da política. Ademais, se a proposta foi aprovada em abril, sua construção começou antes, com a boa intenção e o dinheiro privado injetado no Governo mediante “doação”, e foi selada de modo oficial durante a primeira reunião entre o Governo de Minas e os principais empresários que compõem o grupo. Entre eles estavam José Roberto Marinho (Grupo Globo), Ildefonso Simões Lopes (Brookfield), Cloves Otavio Nunes de Carvalho (Votorantim) e Aod Cunha (Gerdau) [3]. Na reunião, que também contava com empresários mais modestos do estado mineiro - os chamados “locais”, eufóricos pela possibilidade de se sentar ao lado dos nomes citados -, uma cadeira em especial teve que ser retirada, pois o representante executivo da presidência da Vale se viu diante de um percalço ocorrido dias antes: o rompimento da barragem de rejeitos da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho/MG.


Hoje, 25/01/2021, completam-se dois anos do rompimento de uma barragem de rejeitos mantida em funcionamento mesmo com a ciência sobre seu alto risco geotécnico e que instaurou um verdadeiro desastre sobre a vida de milhares de pessoas atingidas de pelo menos 19 municípios mineiros. No escorrer da lama tóxica que desabou sobre o rio Paraopeba, foram levadas 272 vidas, em sua maioria de trabalhadores da Vale, e restou na bacia que alcança o rio São Francisco aproximadamente 14 milhões de toneladas de resíduos da indústria de minérios. Além das irreparáveis perdas humanas, homens e mulheres que sequer tinham contato com a empresa tiveram seus modos de vida profundamente alterados, dada a magnitude de destruição e contaminação implicados no ocorrido. Além da destruição física, da colisão com a onda de rejeito liberada, os desdobramentos do rompimento interferiram na oxigenação do leito do rio e depositaram um grande volume de contaminantes e metais pesados no curso d’água.


Dois anos depois e a situação segue sem resolução. Além de constantes embates pelo Auxílio Emergencial, as pessoas atingidas seguem lutando pela reparação integral dos danos socioeconômicos e ambientais causados em suas vidas, tanto em sua dimensão material como imaterial. Incompatíveis com o sofrimento vivido e com o reestabelecimento de modos de vida historicamente territorializados ao longo da bacia do rio Paraopeba, as propostas de acordo apresentadas até o momento operam como um segundo desastre para quem perdeu os principais meios de sua sobrevivência, tais como água, peixes, animais de criação, e/ou a possibilidade de criá-los, e terrenos sem contaminantes para produzir. Por isso, pessoas organizadas de diferentes maneiras e apoiadas por movimentos variados seguem na luta por um plano de reparação emergencial, pela devida indenização individual e coletiva, entre outras ações gestadas em âmbito popular. No entanto, o olhar sobre as negociações com a Vale faz retornar nosso personagem inicial, Romeu Zema.


Em novembro de 2020, a Vale e o governador do Estado de Minas Gerais confirmaram uma negociação a portas fechadas sobre um plano de reparação, sem que houvesse a participação de atingidos ou instituições que realizam sua defesa legal, técnica e política. Se Romeu Zema garantiu em seu twitter que o objetivo era não deixar “os mineiros a ver navios”, advogados e organizações que atuam ao lado das famílias atingidas destacam o risco de uma perda no valor global destinado às medidas reparatórias que pode chegar a R$ 24 bilhões de reais, caso o pacto em debate seja efetivado [4].


Até o presente momento, as articulações do governador serviram apenas para que a Vale apresentasse uma proposta de reparação em audiência aberta muito abaixo dos valores sugeridos pelo próprio Governo, alegando que a empresa “considera fundamental reparar os danos causados de maneira justa e ágil” e já “destinou cerca de R$10 bilhões para estes fins” [5]. Do ponto de vista prático, a maior consequência desse ato poderá ser o retorno do processo para o âmbito judicial [6] após apresentação de uma contraproposta até o dia 29 de janeiro, o que não parece ser algo indesejado pela empresa e nem por seus advogados de defesa.



Nas palavras de Neil Smith (2020) “os contornos do desastre e a diferença entre quem vive e quem morre é, em maior ou menor medida, um cálculo social”, fato que também se aplica às estratégias de reconstrução. Não bastassem as falsas declarações sobre a estabilidade da barragem e as suspeitas de interesse minerário nas áreas atingidas [7], após o desastre, as negociações tripudiam sobre as vítimas, a fim de obter a menor precificação sobre suas vidas e por toda a destruição causada.


A consideração de Smith introduz o artigo intitulado Não Existe Desastre Natural, de 2006, que foi traduzido pela Igrá Kniga, em memória ao aniversário de 15 anos do desastre disparado pelo furacão Katrina, que atingiu a cidade de Nova Orleans, nos EUA. Suas análises contribuem para uma discussão ampla sobre desastres e podem ser relacionadas com o rompimento da barragem de rejeitos em Brumadinho ao menos em dois aspectos. O primeiro diz respeito à crítica radical de uma razão natural envolvida nas causas de um desastre, bem como de seu desenvolvimento. O segundo, por sua vez, reitera que as dimensões de um desastre não respondem apenas às ações desta ou daquela administração local ou federal, mas estão conectadas ao funcionamento do modo de produção capitalista de uma forma mais ampla.


Muito embora nosso personagem Romeu Zema tenha demonstrado intimidade com um grupo empresarial organizado e próximo aos postos executivos da Vale, o que parece situar sua posição sobre as propostas de reparação diante de um impasse criminal entre acusada - Vale - e atingidos, não se pode deixar de relacionar os dois anos do rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho/MG, com os mais de cinco anos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana/MG, de propriedade da Samarco, empresa controlada pela Vale em parceria com a BHP Billiton. Ao fazer isso, constata-se que, a despeito das distinções individuais de quem personifica as sujeições implicadas na política, ambos efetivaram um intenso processo de expropriação por onde passou a lama de rejeitos e suas medidas reparatórias têm servido antes de tudo para perpetuar circuitos de acumulação às custas da vida de milhares de pessoas atingidas.


 

ILUSTRAÇÕES

Pedro Matallo

Destroços do desastre de Mariana, 2015. Prenúncio para Brumadinho, 25/01/2019.

Correnteza de casas sobre o rio Gualaxo do Norte. Desastre de Mariana, 2015.


NOTAS


[1] Encontro reúne ministro da fazenda, secretário do tesouro e governadores e promove coalizão em prol do ajuste fiscal. Comunitas, 13/12/2018.

[2] Brumadinho (MG) e Vale iniciam acordo sem ouvir vítimas. Estadão, 13/11/2020.

[3] Proposta criada em parceria da comunitas prevê economia de 1 bilhão no governo de Minas Gerais. Comunitas, 21/02/2019.

[4] Em Minas Gerais, Comunitas e governo estadual realizam primeira reunião de governança. Comunitas, 04/02/2019.

[5] Brumadinho: Minas Gerais rejeita valor de reparação proposto pela Vale. Agência Brasil, 21/02/2021.

[6] Acordo

[7] Terrenos atingidos pela lama da Vale tem potencial de mineração. O Globo, 27/05/2019.

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