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TODA PRISÃO É POLÍTICA - RUTH WILSON GILMORE

Prólogo de "Califórnia Gulag: Prisões, Crise do Capitalismo e Abolicionismo Penal" publicado em 2024 pela IK




O ônibus


À meia-noite, em meados de abril, no fim do século XX, um ônibus partiu do estacionamento da Igreja Metodista Holman. Depois de percorrer um curto trajeto pela fronteira norte do centro-sul de Los Angeles, o ônibus subiu em uma rampa para entrar na rede de ferrovias federais e estaduais que conecta as diversas paisagens industriais, agrícolas e recreacionais da Califórnia à quinta maior economia do mundo. No ônibus, quarenta mulheres, homens e crianças se acomodaram para a jornada de sete horas rumo ao norte até a capital Sacramento e o Capitólio do estado.


Uma multidão de sonhos viajava pela liberdade: vermelhos, negros, marrons, amarelos e brancos; mães, pais, avôs, irmãs, irmãos, crianças, namorados e amigos; gays e lésbicas; famílias interraciais; pessoas que falavam inglês, espanhol, filipino, árabe, polonês e hebraico; católicos, protestantes, judeus, muçulmanos, cristãos ortodoxos e quacres. A diversidade deles encarnava cerca de 150 anos da história da Califórnia e mais de 300 anos de ansiedades e antagonismos nacionais.


Mas os viajantes não se preocuparam com isso; eles embarcaram no ônibus por causa de suas semelhanças: trabalhadores empregados, portadores de deficiências ou aposentados, com pouca ou nenhuma renda, cujo objetivo era a liberdade para seus parentes que cumpriam longas penas atrás das grades.


Os viajantes sonhadores foram convocados por um pesadelo que se tornou palpável pelo número assustador de presidiários e prisões produzidas durante a geração anterior, enquanto estávamos todos, em tese, acordados. Tão real quanto foi o crescente ativismo de movimentos sociais de base contra a expansão do uso da criminalização e das celas como soluções genéricas para problemas sociais.


Com o objetivo de concretizar os sonhos de justiça para seus casos individuais, os viajantes decidiram – por meio da luta, do debate, do fracasso e da renovação – que deveriam buscar a liberdade geral, para todos, de um sistema no qual a punição se tornou tão industrializada quanto a produção de carros, roupas, mísseis ou o cultivo de algodão. Contrariando todas as estatísticas, eles chegaram ao ativismo – atuando, nos detalhes das práticas modestas, com a crença de que “we shall overcome” [“nós devemos superar”] as cisões profundas tão enraizadas no apartheid estadunidense. Em outras palavras, eles compartilhavam mais do que um interesse: um propósito os uniu nesta jornada.


Alguns cochilavam. Outros jogavam cartas. Outros falavam sobre quem se juntaria a eles nas escadas da Câmara estadual, quem se sentaria com eles na sala de audiência do Comitê de Segurança Pública do Senado e qual seria a melhor estratégia para persuadir o comitê legislativo, bastante hostil aos presos, a alterar a lei da Califórnia “three strikes and you’re out” [1].





Alguns olhavam pela janela com uma intensidade que sugeria que a noite revelaria uma resposta. Mas, em vez disso, viram paisagens de trabalho, moradia e lazer que se estendiam para além do horizonte. Ao deixar Los Angeles, o ônibus subiu a grande artéria central do antigo corredor industrial.


Embora a cidade ainda seja a capital industrial dos Estados Unidos, a composição e a remuneração dos empregos no setor da população mudou drasticamente nos últimos vinte anos. A produção primária de aço e de automóveis praticamente acabou, sendo substituída pela de vestuário e ferragens para a construção.


Na Interestadual 5, a grande rodovia atravessa as Montanhas Tehachapi, o ônibus passou por inúmeros empreendimentos residenciais e placas anunciando regiões “amigáveis aos negócios” no limite norte do Condado de Los Angeles, antes de entrar na escuridão da Floresta Nacional de Angeles. As rodovias federais interestaduais permitiram a suburbanização das moradias e da indústria e ajudaram a assegurar o domínio histórico da Califórnia no complexo militar - industrial. De fato, para a maioria das famílias no ônibus, as guerras declaradas – a Segunda Guerra Mundial, a da Coreía e do Vietnam – e as lutas não declaradas – o Jim Crow [2] no Mississippi e na Louisiana – foram as forças que as levaram ao sul da Califórnia para que refizessem suas vidas, tal como devem fazer os imigrantes que vêm de longe.


Descendo a longa encosta até o Grande Vale Central, alguns dos viajantes especularam sobre o gigantesco sistema de bombeamento que impulsiona a água coletada das regiões norte e leste do estado por cima das montanhas para matar a sede da Grande Los Angeles [3]. E embora a água siga para fora do vale, ainda sobra muito para irrigar a imensidão agrícola do estado. Na verdade, mesmo que a agricultura represente apenas 3% do produto interno bruto (PIB) do estado, a Califórnia ocupa o primeiro lugar na produção agrícola dos Estados Unidos.


Eles pararam em Bakersfield para embarcar mais gente: um trabalhador rural, um jornalista desempregado, algumas mães de presidiários que haviam tirado um dia de folga não remunerada do trabalho e que contribuíram com seus salários magros para o custo de US$1.000,00 do aluguel do ônibus.


Fora de Bakersfield, a escuridão envolveu novamente o ônibus escolar amarelo. Um pequeno grupo de viajantes sentados no fundo começou a contar pontos de intensas luzes douradas que penetravam assustadoramente na escuridão profunda. Essas concentrações de luz em terras agrícolas são as tantas novas prisões da Califórnia: cidades de homens, e às vezes de mulheres, que ficam próximas aos municípios que as hospedam. Alguns passageiros sussurravam, e suas palavras ficavam gravadas nos vidros com o vapor da respiração: “O Donny tá ali”. “Olá, Richard”. “Será que o Angel está dormindo? Eu disse para ele que a gente passaria na frente”. As gotículas no vidro se dissipavam à medida que o ônibus avançava.


Outros ônibus fazem essa mesma jornada todos os dias partindo do centro de Los Angeles, não de igrejas, mas de tribunais e cadeias. Seus destinos são a s antigas ou as novas prisões – aquelas que se apinham ao longo da Rodovia 99, transformando - a num corredor de prisões, e outras mais distantes, que vão desde os sólidos perímetros fortificados ao longo da fronteira sul entre Califórnia e México até o território indígena, mais ao norte, em Susanville e Crescent City, no caminho para Oregon. Mais de 1.400 quilómetros de prisões: um arquipélago de celas de concreto e aço, 33 grandes prisões (veja o mapa na página 10), mais 57 prisões e centros de detenção de menor porte, dos quais 43 foram construídos a partir de 1984.


Chegando na capital do estado, Sacramento, os viajantes se juntaram a seus aliados de outras partes do estado para uma oração matinal e um comício nos degraus do Capitólio. Começou, então, a ativ idade principal do dia: a longa sessão do comitê. E les tentariam, mais uma vez, persuadir pessoas sedentas por reeleição, responsáveis por revisar e aprovar novas leis penais, três horas por semana, toda semana, a revogar parte de uma lei, muito embora o sindicato de guardas prisionais, importante colaborador da campanha, tivesse convocado uma linha de frente de lobistas para se opor a qualquer reforma. Por um instante, pouco antes de o grupo entrar, os sempre pálidos edifícios do estado ganharam um tom amarelado que refletia o caloroso nascer do sol – uma sensação bem recebida por alguns dos passageiros mais velhos, sempre alertas aos sinais de esperança. Talvez nessa viagem eles consigam derrubar um tijolo dos quilômetros e quilômetros das paredes prisionais do gulag californiano.





Notas:


[1] Nota da Tradução (N.T.): A expressão, que em tradução literal para o português é “três faltas e você está fora”, vem da regra do basebol que estabelece que o rebatedor tem três tentativas para atingir a bola, sob pena de ser eliminado do jogo após a última. Cada uma das chances perdidas é chamada de strike. A lei da Califórnia apelidada “three strikes and you’re out” (e que foi aplicada também em diversos outros estados dos Estados Unidos) surgiu na década de 1990 e tem o pressuposto de que os indivíduos condenados pela terceira vez não são passíveis de reabilitação e, por isso, devem ser excluídos do convívio social por longo período de tempo. As “three - strikes laws ” (“leis dos três strikes ” ou “leis das três infrações”), portanto, estabelecem prisão perpétua para o indivíduo que receber a terceira condenação, cumprindo ao menos vinte e cinco anos da pena em regime fechado.


[2] N.T.: As leis Jim Crow são o resultado do conflito político que seguiu existindo após o fim da escravidão e da Guerra Civil dos Estado s Unidos (1861–1865). Depois de perder o direito de escravizar a população negra com o final da guerra, e depois também da retirada das forças militares federais pró - unificação, os Estados Confederados do Sul instituíram uma série de leis locais que tinham por objetivo restringir os direitos dessa população. O impedimento do direito ao voto, a restrição da mobilidade entre cidades e estados e a separação de negros e brancos em estabelecimentos públicos são parte do processo de segregação racial que as leis Jim Crow tornaram legais. Essas leis só caíram com a conquista da Lei dos Direitos Civis e a Lei dos Direitos de Voto, em 1964 e 1965, respectivamente.


[3] N.T.: Grande Los Angeles, ou Southland, refere - se à extensa região urbanizada ao redor do Condado de Los Angeles. Além deste, e tendo este como referência, estão também incluídos na denominação o Condado de Ventura (a oeste), os Condados de San Bernardino e Riverside (a leste) e o Condado de Orange (a sudoeste).

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