No dia 24 de junho, após 1901 dias preso, Julian Assange foi libertado da prisão de segurança máxima Belmarsh no Reino Unido. Para celebrar a sua luta, compartilhamos hoje o texto Wikileaks dos alimentos e fármacos de Rob Wallace, publicado originalmente no livro Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. Boa leitura!
Àqueles autocratas provinciais, diante dos
quais a população pacífica de todas as classes
havia se acostumado a tremer, a reserva do
engenheiro de aparência inglesa causava um
mal-estar que oscilava entre a adulação e a
truculência. Gradualmente, todos eles descobri-
ram que, qualquer que fosse o partido no poder,
aquele homem mantinha o mais efetivo contato
com as autoridades superiores de Santa Marta.
— Joseph Conrad (1904)
Cada uma das impetuosas revoltas no Oriente Médio, agora cada vez mais sangrentas e cooptadas, que reverberaram até o estado de Wisconsin, nos Estados Unidos, ou a China, foi uma reação, preparada em fogo baixo, contra a ditadura. Ao elogiar o Facebook e o Twitter, preguiçosos comentaristas estadunidenses confundiam meios superficiais com causas fundamentais, uma versão moderninha da mentira que declara que os pobres e os oprimidos não têm história e nunca são agentes de sua própria transformação. Ou seja, justamente a violência arrogante, agora derrubada um regime após o outro.
Não devemos, no entanto, subestimar o papel da internet, essa rede cuja neutralidade faz dela um Velho Oeste, que permite que seja tanto Ilha Tortuga como Rio Tâmisa, tanto Praça Tahrir como Praça da Paz Celestial — um lugar onde o neoliberalismo global pode ser subvertido, mesmo sendo simultaneamente reforçado por outros meios. A rebelião da Tunísia, que detonou o dominó, parece ter sido, ao menos em parte, precipitada pelo vazamento e mensagens diplomáticas dos Estados Unidos, que revelaram a extensão da corrupção do regime de Ben Ali. De alguma maneira, em algum local, o império deve se haver consigo, por mais que seu próprio aparato deva ser mantido no escuro.
Para os segredos, contudo, o excesso de luz e oxigênio acaba sendo venenoso. Assim, as relações de segurança dos Estados Unidos, com suas iniciativas imperiais temporariamente fora do radar, manobram para a extradição de Julian Assange, mesmo não havendo certeza de que o WikiLeaks cause danos.[90]
Os impulsos conflitantes surgem em parte porque as revelações são, em primeiro lugar, tão destrutivas para outros países quanto para os Estados Unidos e, depois, porque são logo silenciadas. Os editores dos jornais The Guardian e The New York Times, antes irritados com a vergonhosa atitude bipartidária — um toque amargo demais em seus coquetéis —, os mesmos que publicaram matérias explosivas com base nos vazamentos, arrumaram a bagunça, suavizaram suas próprias reportagens e sua própria fonte, desferindo perversos ataques ad hominem a Assange. [91] De fato, The Guardian já publicou mais textos sobre Assange e seus problemas legais que sobre os conteúdos das mensagens diplomáticas vazadas.
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Em relação às mensagens vazadas pelo WikiLeaks, muitos analistas consideram menos relevante o conteúdo em si que a exposição do imenso aparato de sigilo (Žižek, 2011). Contudo, os detalhes importam, já que dão concretude à extensão da movimentação do governo dos Estados Unidos para garantir os interesses comerciais do país no exterior e, por vezes, à vacuidade e à falta de lógica desse trabalho.
As mensagens diplomáticas revelam embaixadas dos Estados Unidos se envolvendo com todo tipo de eventos e situações. Ao mesmo tempo, muitas embaixadas parecem se concentrar individualmente em tópicos específicos. Energia no Azerbaijão. Terrorismo apoiado pela Síria. Guerra e terrorismo na intensa comunicação diplomática de alto escalão no Paquistão. Ou mesmo determinadas empresas: a bp no Azerbaijão, a Blackwater no Djibuti, Visa e Mastercard na Rússia.
Alguns temas, como Cuba e Venezuela, são uma obsessão para diferentes embaixadas, incluindo, como verifiquei, na Espanha, no Chile e, entre todos os lugares possíveis, na Islândia. Algumas embaixadas são muito mais ideológicas que outras, em reação ao que entendem como “regimes não cooperativos”. Se as mensagens podem servir de indicativo, os regimes esquerdistas da Bolívia e da Venezuela, por exemplo, abrigam corpos diplomáticos particularmente truculentos.
Algumas mensagens fazem referência a uma lista de inimigos domésticos. Durante a era George W. Bush, um ministro [92] da Nova Zelândia quase financiou a exibição de um filme de Michael Moore. [93] A crise foi evitada, porém, com Jack Bauer 94 quebrando os dedos daquele neozelandês sujo, um para cada filme lançado por Moore.
À primeira vista, as mensagens dão a impressão de que, embora o Departamento de Estado se preocupe com questões diplomáticas e de segurança, as embaixadas são encarregadas de interesses comerciais imediatos. Fica claro que o departamento se organiza sobretudo em torno das especificidades do comércio, das tarifas e até mesmo de resultados contratuais, mas é fascinante a maneira como ambas as agendas caminham juntas, convergindo e divergindo em tom e conteúdo, dentro de uma mesma mensagem diplomática. A retórica de alto nível é rotineiramente interrompida pela conveniência que ela própria condena, um tipo de duplo-falar típico dos estadunidenses que, até onde eu vi, o resto do mundo despreza. Em uma das mensagens vazadas, funcionários da embaixada estadunidense em Abuja95 informam de forma prosaica uma manobra suja que a Pfizer aplicou em uma autoridade nigeriana, a partir do relato de Enrico Liggeri, gerente da Pfizer no país. [96]
Em uma tentativa de pressionar o procurador-geral Michael Aondoakaa a desistir de dois processos multimilionários referentes a testes com antibióticos orais em crianças, conduzidos de forma imprópria pela Pfizer durante um surto de meningite, incluindo a ausência de consentimento dos pais, a companhia passava informações sobre a corrupção da Procuradoria-Geral em outras áreas para jornais locais.
Como justificativa, Liggeri caracterizou os processos nigerianos como um abalo que desencorajaria empresas farmacêuticas a ajudarem caso outro surto daquele tipo voltasse a ocorrer. Com isso, ele queria dizer que, em primeiro lugar, a Nigéria punha a sua juventude em risco ao tentar evitar danos causados por testes impróprios realizados pela Pfizer em crianças. Em segundo lugar, que buscar evidências de corrupção em governos locais que você tenta corromper é uma boa prática comercial.
A nota final da embaixada dos Estados Unidos não comenta nem os processos nem a manobra suja, e, sem manifestar qualquer minúsculo sinal de autoconsciência, aponta a Nigéria como um mercado em crescimento para a Pfizer e oferece apoio aos esforços da empresa para garantir “transparência” em um acordo de 75 milhões de dólares. É de tirar o fôlego.
Em escala global, a pressão por alimentos geneticamente modificados segue um roteiro parecido. Uma busca pela expressão “geneticamente modificado” no WikiLeaks retorna 472 mensagens diplomáticas em 96 países. Embora algumas delas descrevam iniciativas de outros governos, uma após a outra, demonstram que as premissas de um modelo de negócios agressivo em favor do agronegócio estadunidense são assimiladas pela política diplomática, disfarçadas em questões de direito internacional ou mesmo como direito humano inalienável.
Uma pequena nota da embaixada dos Estados Unidos em Varsóvia relata uma reunião com um funcionário do Ministério do Meio Ambiente da Polônia sobre a improbabilidade de que os poloneses votassem, na União Europeia, a favor do licenciamento de híbridos de milho geneticamente modificados [97] da Pioneer e da Syngenta. A mensagem termina com esta cabeça de cavalo deixada ao pé da cama:
O posto fará um acompanhamento para obter informações sobre a decisão da Polônia e mais detalhes sobre a elaboração de um projeto de lei sobre o cultivo agrícola de organismos geneticamente modificados [ogms]. Contudo, a política estabelecida pela Polônia de votar contra a aprovação de todas as variedades de ogms permanece em vigor, e é esperado que ela siga essa política e se posicione contra as aprovações também durante essa votação. No entanto, o comentário do diretor Dalbiak, de que a Polônia talvez se abstenha, mostra que pelo menos está havendo um debate interno na Polônia sobre biotecnologia.
Os tomadores de decisão entendem melhor que as suas ações têm consequências, depois de terem sofrido como retaliação uma rande sanção da omc [Organização Mundial do Comércio] no caso do hormônio da carne bovina.
São essas “ofertas que não se pode recusar” o trabalho que funcionários da embaixada devem realizar, retribuindo um financiador de campanha eleitoral por vez? Ou, como faz a China na África, são parte de um plano maior para a consolidação de uma infraestrutura imperialista?
Muita atenção tem sido dada aos custos sanitários, ecológicos e sociais dos ogms. O agronegócio externaliza esses custos para governos, trabalhadores, vida silvestre e consumidores. São os outros que pagam a conta. Mas pode haver um jogo escondido aqui. Os OGMs parecem ser o foco de um programa colossal:
privatizar a própria biologia, transformando solos soberanos e o próprio ato do cultivo, assim como a produção, em mercadorias. “A Cargill está envolvida na comercialização da fotossíntese”, disse o CEO Gregory Page em 2008, durante um discurso.[98] “Essa é a raiz do que fazemos.”
Considere o poder que um país teria caso setores agropecuários inteiros ao redor do mundo — cada produto, cada insumo — fossem atrelados a cadeias produtivas cujos direitos pertenceriam a suas corporações monopolistas. Se esse projeto fosse totalmente implementado, poderia submeter as populações do mundo uma a uma às determinações daquele país, nem que fosse por questão de sobrevivência. Dominação suave mundial. Ocupação por engravatados, não por milicos.
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Em meio a essas apostas, a operação de transgênicos dos EstadosUnidos se revela colossal, tanto em extensão quanto em maquinação: da Armênia ao Zimbábue, da prisão de ativistas locais ao desenvolvimento de confabulações internacionais, dos entrepostos mais marginais aos mercados mais ricos.
A França oferece um exemplo ilustrativo. Em 2006, a embaixada dos Estados Unidos em Paris manifestou aprovação em relação a duas decisões judiciais francesas. [99] A primeira confirmou as condenações dos Faucheurs Volontaires [Ceifadores voluntários], um grupo de ativistas anti-ogms que destruiu lotes de teste da Monsanto da única semente de milho geneticamente modificado aprovada na França, a MON810, nas proximidades e Orleans. A segunda decisão determinou que o Greenpeace retirasse do ar mapas on-line de milho transgênico e listagens de seus produtores em toda a França.
A mensagem em questão descreve protestos anti-OGM e paralisações no campo, que até aquele momento desencorajavam tanto agricultores como pesquisadores de OGM:
Em 13 de abril, cinquenta membros dos Faucheurs Volontaires e do Greenpeace invadiram uma instalação da Monsanto no sudoeste da França (na região de Aude), manifestaram-se contra os ogms e penduraram uma faixa dizendo “do campo ao prato, sem ogm”. Alguns manifestantes foram presos no local.
Em junho, outro grupo de Faucheurs Volontaires, associado ao sindicato de agricultores ativistas, a Confédération Paysanne, enviou aproximadamente quarenta ativistas anti-biotecnologia para semear sementes orgânicas de milho em um campo de testes de ogm no sul de Paris (na região de Loiret). O grupo reivindicou a autoria da ação e declarou estar “semeando a vida”, em contraste as empresas de biotecnologia, que “semeiam a morte”.
Em julho, a Monsanto anunciou que três de seus lotes de teste haviam sido danificados, e a Limagrain, principal empresa francesa de sementes, e sua subsidiária de genética, a Biogemma, também anunciaram que tiveram lotes de testes destruídos por um grupo de “ceifadores voluntários”. Também em julho, os Faucheurs Volontaires anunciaram que expandiriam sua destruição de lotes experimentais para campos de produção comercial pela primeira vez neste verão.
Por outro lado, a mensagem aprovava os esforços empreendidos por funcionários de relações públicas do setor ligado aos OGMs em favor de seus cultivos de milho, a maior parte dos quais exportados para a Espanha como ração animal:
[Na] reunião anual de produtores franceses de milho, em junho, um agricultor apresentou suas justificativas para o plantio de milho bt. Ele listou como vantagens o uso reduzido de pesticidas, a maior produção de milho de alta qualidade, pouco vulnerável aos ataques da broca do milho, e os benefícios de uma colheita de milho impressionante… Além disso, a revista Cultivar, uma ublicação técnica francesa, publicou uma entrevista em sua edição de julho com um agricultor que cultivava milho biotecnológico para venda comercial, na qual ele descrevia as diferentes etapas de manejo que havia adotado, do plantio à coexistência com milho não biotecnológico e à colheita.
A mensagem não faz menção à crescente resistência das pragas aos pesticidas, ao aumento concomitante no uso de pesticidas e à contaminação de culturas que não são ogms, resultados rotineiros. A mensagem também manifesta instinto maniqueísta na caracterização dos esforços legislativos franceses. Ao passo que os projetos de lei para aprovação do cultivo de ogms são “razoáveis”, aqueles destinados a impedi-los são “políticos”.
Em uma atualização divulgada em 2007, a embaixada estadunidense em Paris manifestava-se preocupada que a campanha pudesse estar vacilante.100 Ainda que a área plantada com OGM em 2007 fosse quatro vezes maior que a de 2006, as culturas de OGM de modo geral ainda representavam apenas 0,75% do milho francês, seguindo previsões de colheita, conforme as decisões de plantio dos agricultores na primavera eram influenciadas negativamente pelas posições antibiotecnologia de vários dos principais candidatos à presidência e pela nova regra [saída diretamente do manual do Greenpeace] determinando que a localização de campos biotecnológicos, que deve ser registrada no Ministério da Agricultura, fosse tornada pública.
Aqui, a frustração da embaixada é palpável, e é difícil não concluir que os Estados Unidos estejam preparando nada menos que uma invasão da França por meios diplomáticos e econômicos. São descritas diversas frentes de derrota:
Na França, a falta de aceitação da biotecnologia agropecuária em produtos para consumo humano por parte dos consumidores continua muito forte. Produtos alimentares rotulados como contendo biotecnologia ou como derivados dela geralmente não estão disponíveis no mercado francês…
Os ativistas antibiotecnologia (principalmente Greenpeace, Faucheurs Volontaires, Attac, Amigos da Terra, cri-gen e o sindicato dos agricultores Confédération Paysanne) são bem organizados, possuem grande visibilidade e trabalham de maneira consistente para desencorajar o avanço da aceitação da biotecnologia. Durante o verão de 2006, ativistas destruíram dois terços das parcelas de teste em campo aberto. Os grupos agropecuários ficaram furiosos com a imunidade oferecida aos grupos antibiotecnologia nesses atos de destruição. […]
A fnsea, o maior sindicato de agricultores da França, geralmente discreta em relação à questão da biotecnologia, criticou publicamente o fato de que os agricultores estejam cultivando suas lavouras em circunstâncias quase clandestinas para evitar se tornarem alvos. […]
Agricultores biotecnológicos também enfrentam ataques de agricultores tradicionais. Um apicultor alega que o pólen de um campo de milho biotecnológico arruinou sua produção de mel, e está processando o agricultor biotecnológico pelos prejuízos causados. […]
Menos visível ao público, contudo bastante eficaz, é a pressão imposta pelos grupos antibiotecnológicos sobre as indústrias de ração animal. Por exemplo, o site do Greenpeace apresenta uma “lista negra” que apresenta o nome de todos os produtos biotecnológicos comercializados na França. A experiência demonstra que a publicidade negativa gerada pela oferta de um produto biotecnológico em supermercados franceses é geralmente tão prejudicial que o comerciante ou o distribuidor acaba por remover o produto da prateleira […].
Os agricultores biotecnológicos franceses encontraram pouco apoio governamental em suas empreitadas. Nathalie Kosciusco-Morizet, a nova ministra de Ecologia, defende uma abordagem de forte precaução e apoia apenas a pesquisa biotecnológica […].
Os agricultores também estão frustrados com o fato de que a polícia, em geral, tolera a destruição das colheitas, e o sistema judicial aplica punição moderada aos ativistas processados. Em um dos casos, os ativistas foram considerados inocentes por estado de necessidade, basicamente acolhendo-se o argumento da defesa, segundo o qual o desenvolvimento da biotecnologia poderia ser prejudicial à saúde pública. A legislação francesa também não aprovou medidas substantivas em favor dos agricultores biotecnológicos.
A França — governo, trabalhadores, fazendeiros, ambientalistas, consumidores, comerciantes, polícia, juízes — aparece aqui como um “Exército das Sombras”, atuando em múltiplas frentes, tal como no filme de Jean-Pierre Melville, contra a ocupação de OGM.
No ano seguinte, a França passou a pegar pesado com os OGMs e suspendeu o cultivo do mon810.101 A Monsanto afirma que o Greenpeace, a Amigos da Terra e o governo francês chegaram a um acordo tácito. Em troca da oposição de Paris aos OGMs — unindo-se a Áustria, Hungria, Grécia, Luxemburgo e, mais tarde, Alemanha —, os ambientalistas, segundo a Monsanto, fechariam os olhos às iniciativas de energia nuclear do presidente Nicolas Sarkozy.
A França passou a causar problemas também em outros lugares, instando os Estados-membros da União Europeia a rever a renovação do MON810. Em razão dessa pressão externa e também da resistência interna, um retrocesso parecia iminente logo ao lado, na vizinha Espanha, até então um reduto do MON810. A Catalunha, o País Basco e as Ilhas Canárias estabeleceram legislações banindo os OGMs ou impondo rigorosas cláusulas para a coexistência biotecnológica. O caso da Catalunha era especialmente problemático, por se tratar de um centro de produção de milho geneticamente modificado. Assim como na França, o governo central está sob crescente pressão para proibir a produção e as importações de MON810:
As facções contra a agropecuária biotecnológica incluem o lado ambiental do marm [Ministério do Meio Ambiente e Assuntos Rurais e Marinhos] e agricultores orgânicos. Cada vez mais, consumidores também expressam atitudes negativas em relação aos cultivos geneticamente modificados. Em 18 de abril, o jornal El País conduziu uma pesquisa interrogando se os alimentos geneticamente modificados deveriam ou não ser proibidos. Os seguintes resultados foram obtidos após um período de um mês: 85% votaram “Sim, eles podem ser perigosos” e 15% votaram “Não, eles são absolutamente seguros”.
Dadas essas complicações, a embaixada dos Estados Unidos em Madri, agindo em nome dos defensores dos OGMs, solicitou que Washington agisse, e procurou aconselhamento em outros postos diplomáticos, consolidando a extensão continental da campanha de ogms dos Estados Unidos e sua demanda por validação científica:
Em resposta a recentes solicitações urgentes do secretário de estado do marm, Josep Puxeu, e da Monsanto, solicitações posteriores renovaram o apoio do governo dos Estados Unidos à posição da Espanha referente à agropecuária biotecnológica baseada na ciência por meio de uma intervenção de alto nível do governo dos Estados Unidos em apoio às descobertas [da autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos]. O posto também solicita o apoio do governo dos Estados Unidos para que um cientista não governamental se encontre com interlocutores espanhóis influentes para discutir o assunto e ajudar a desenvolver um plano de ação para a agropecuária biotecnológica na Espanha. O posto também gostaria de receber comentários de outros postos sobre campanhas anti-OGM.
Como se não bastasse a existência de objeções científicas aos impactos dos OGMs na saúde, na ecologia e na economia (Breckling & Verhoeven, 2010).
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De fato, até o Papado — como o Senhor sabe, culpado por um ou outro crime global — se permitiu uma pitada de condescendência:
Ainda que líderes individuais da Igreja, por razões ideológicas ou por ignorância, se manifestem contra os ogms, o Vaticano não sente — pelo menos não neste momento — que é seu dever confrontá-los. O posto continuará pressionando o Vaticano a falar em favor dos ogms, na esperança de que uma voz do alto escalão de Roma incentive os líderes individuais da Igreja em outros lugares a reconsiderarem suas opiniões críticas.[102]
A União Europeia, no entanto, não é de forma alguma o único mercado sobre o qual marcham os ogms estadunidenses. O WikiLeaks detalha em que medida as embaixadas dos Estados Unidos atuam como subsidiárias para o agronegócio no Sul global. Em uma mensagem de 2009, para citar uma entre muitas, a embaixada em Nairóbi dá a impressão de estar introduzindo de maneira muito mais suave os ogms no Quênia. [103] O Quênia foi o primeiro país africano a assinar o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, mas levou até fevereiro de 2009 para estabelecer um marco legal para o uso e o comércio de organismos geneticamente modificados, juntando-se a África do Sul, Tanzânia, Uganda, Malawi, Mali, Zimbábue, Nigéria e Gana:
Após o desmonte da indústria de algodão no Quênia e diante de renovada apreensão com a perspectiva de fome generalizada, defensores da biotecnologia, apontando o sucesso do cultivo de OGMs na África do Sul, defenderam perante o Parlamento, no último outono, que a tecnologia poderia ajudar a reviver a indústria do algodão queniana e combater a crônica insegurança alimentar no país… Anteriormente, alguns se preocupavam excessivamente com os riscos potenciais da tecnologia. Seus receios impediam as importações potenciais de milho, ao exigir que o milho produzido por meio de biotecnologia não excedesse uma presença acidental de 2% no produto importado. Essa medida levou a restrições desnecessárias à oferta de milho, resultando em déficits alimentares e preços artificialmente altos para o milho.
A mensagem pressupõe uma causalidade conveniente sem fundamentação. A fome generalizada no Quênia surge, em parte, do tipo de esbulho legitimado pela biotecnologia. [104] Quaisquer que sejam seus méritos práticos, a tecnologia é frequentemente usada como um Cavalo de Troia para contrabandear novas relações sociais — nesse caso, enriquecendo a elite do Quênia e seus beneficiários multinacionais à custa dos pequenos agricultores. O milho, por outro lado, é uma commodity global, cujo preço é controlado em parte pelos mercados de commodities, assim como o dumping no setor de grãos é conduzido por multinacionais fortemente subsidiadas.[105]
O governo dos Estados Unidos ofereceu aos candidatos à produção de OGMs no Quênia mais que mero apoio com contatos via embaixada local:
O Programa para Sistemas de Biossegurança, financiado pela Usaid [Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional], criou vínculos com instituições nacionais chave [do Quênia], fortalecendo, desse modo, o apoio ao projeto de lei entre responsáveis pela elaboração de políticas públicas e agências reguladoras de biossegurança. O programa também ofereceu suporte técnico regulatório para facilitar testes de campo confinados para algodão e milho geneticamente modificados.
Os resultados mostraram-se transformadores, ajudando a comercialização de culturas biotecnológicas:
Os produtos geneticamente modificados aprovados para testes de campo confinados incluem milho e algodão resistentes a insetos, culturas de tecidos de bananas, batata-doce geneticamente modificada, mandioca resistente a vírus e vacinas contra peste bovina. Testes de campo confinados de algodão e milho geneticamente modificados resistentes a insetos já estão em andamento no Quênia. O Instituto de Pesquisa Agropecuária do Quênia pretende iniciar testes de campo abertos com algodão transgênico bt em outubro de 2009.
Contrariamente à mensagem, que caracteriza a oposição como educada e leal, os quenianos estão profundamente divididos em relação à introdução de OGMs no campo, no caso do cultivo do milho, prevista para 2017. De acordo com Paige Aarhus:
Os agricultores aqui estão céticos em arriscar tudo por algumas temporadas de rendimentos mais altos. Em Kangundo, o [posseiro Fred] Kiambaa disse que experimentaria a tecnologia de modificação genética se fosse uma questão de vida ou morte — mas ele é cauteloso.
Kiambaa usa a variedade de milho Katumani, amplamente disseminada, razoavelmente tolerante à seca e acessível. Os rendimentos mais altos são tentadores, é claro, mas Kiambaa disse que não quer apostar seu sustento em uma empresa estrangeira. Ainda que sua família esteja na terra há décadas, disse Kiambaa, não puderam cultivá-la até que ela fosse devolvida pelos colonos britânicos aos agricultores locais. Ele apontou árvores alinhadas na encosta íngreme, plantadas pelos britânicos.
“É por causa de Mzungus que temos carvão”, disse ele, sorrindo ironicamente.[106]
Nenhum estudo no Quênia abordou os custos socioeconômicos potenciais de ogms, tanto no país quanto no exterior, com destaque para a Índia: falhas na safra, resistência a pesticidas, superpragas, dívidas agropecuárias e suicídios, espirais de produção que obrigam os habitantes locais a comprar uma série crescente de insumos das empresas. De fato, esse fracasso é a própria recompensa do agronegócio, já que ele aproveita o colapso generalizado para comprar terras que os pequenos agricultores são forçados a abandonar.
A lacuna de pesquisa não é acidental, pois vários institutos do Quênia estão hoje nas mãos da Monsanto. Aarhus escreve:
Na Fundação Africana de Tecnologia Agrícola (aatf), uma ONG enorme que trabalha com pesquisa e desenvolvimento de ogms em parceria [com o Instituto de Pesquisa Agropecuária do Quênia], o gerente de Assuntos Regulatórios, dr. Francis Nang’ayo, diz que as culturas geneticamente modificadas são “substancialmente equivalentes” a alimentos não modificados geneticamente e devem ser adotadas como solução para a seca persistente e para a fome.
Em 2008, a AATF recebeu uma doação de 47 milhões de dólares da Fundação Bill e Melinda Gates. Essa parceria envolveu a Fundação Howard G. Buffett e a gigante estadunidense de sementes Monsanto [da qual a Fundação Gates detém 23,1 milhões de dólares em ações].
A lacuna reproduz aquela encontrada nas universidades estadunidenses que abandonaram as pesquisas mais amplamente voltadas à agropecuária e ao público em favor de uma agenda de pesquisa financiada pelo agronegócio. Muitos quenianos se opõem a esse abandono, incluindo Anne Maina, coordenadora de Incidência Política da African Biodiversity Network [Rede africana de biodiversidade], uma coalizão de 65 organizações agropecuárias quenianas:
“Nossas instituições públicas de pesquisa devem deslocar seu foco novamente para as necessidades dos agricultores”, disse ela ao The Indypendent, “em vez de apoiar a agenda do agronegócio, que almeja colonizar nossa cadeia alimentar e de sementes. Acreditamos que o patenteamento de sementes é profundamente antiético e perigoso.
O único cético reconhecido pela mensagem da embaixada é o dr.Willy Tonui, pesquisador do Kenya Medical Research Institute [Instituto de pesquisa médica do Quênia] e da African Biological Safety Association [Associação africana de segurança biológica], que pediu que a Lei de Biossegurança fosse alterada para “atender às preocupações com a biossegurança”. “Mas a maioria dos profissionais da área de biotecnologia carrega a promessa de melhorar a segurança alimentar no Quênia”.[107]
Mesmo Tonui, agora ceo da Autoridade Nacional de Biossegurança, já não é um oponente. Três anos depois, descobrimos que “Tonui afirma que a histeria da mídia e relatórios imprecisos são os culpados pela resistência à tecnologia de modificação genética, argumentando que a anb [Autoridade Nacional de Biossegurança] mantém diretrizes rigorosas sobre as sementes geneticamente modificadas no Quênia”.[108]
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A oficial Chelsea Manning, que supostamente divulgou as ensagens dos Estados Unidos para o WikiLeaks e para o mundo, sofreu humilhação sexual e confinamento solitário durante oito meses em uma brigada da Marinha em Quantico, Virgínia. [109] Ela encarna aquilo que deveríamos esperar que o resto do mundo aprenda do modus operandi estadunidense, mais que qualquer coisa escrita nos documentos.
Podemos honrar o ato de consciência de Manning investigando e divulgando (e financiando) as descobertas do WikiLeaks. O que eu cobri aqui representa apenas uma fração minúscula do conteúdo das mensagens a respeito de alimentos e fármacos. Algumas dessas informações foram difundidas nos primeiros dias após a divulgação das mensagens, incluindo o truque sujo da Pfizer e a rejeição do MON810 pela França, mas descobri que somente ao ler as mensagens na íntegra conseguia entender todos os pontos da trama e as sutilezas de tom e contexto que muitos dos artigos deixaram escapar.
Contudo, há muito ainda por relatar. Deparei-me com lotes inteiros dedicados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, ao desmatamento russo, a genéricos anti-HIV e à caça às baleias no Japão e na Islândia, além de mais de três mil mensagens só sobre a influenza. Agora tudo isso e muito mais está aberto a estudiosos, jornalistas, ativistas e qualquer pessoa interessada em procurar e compartilhar informações sobre a logística do império, tipicamente conduzida sob o véu do sigilo e, surpreendentemente, dada sua forte influência política, para muitos, um banquete amargo:
Diante do peixe borrachudo, em um evento da Fundação Konrad Adenauer, em 27 de abril, o comissário de Relações Exteriores Chris Patten falou brevemente sobre por que a União Europeia nunca será uma “potência real”, os antecedentes duvidosos de alguns dos líderes dos novos membros da União Europeia, os próximos passos em relação ao Chipre e à Turquia, as diferenças entre união e aliança, e os “olhos assassinos” do presidente russo, Putin…
Advertindo: “Não estou dizendo que os genes são determinantes”, Patten então revisou o histórico familiar de Putin: o avô era parte da equipe de proteção especial de Lênin; o pai, funcionário da burocracia do Partido Comunista; e o próprio Putin. ainda em tenra idade, decidiu que seguiria carreira na KGB. “Ele parece um homem completamente razoável quando está discutindo Oriente Médio ou política energética, mas, quando a conversa muda para a Chechênia ou o extremismo islâmico, os olhos de Putin se tornam os de um assassino. [110]
Notas:
90. “WikiLeaks has caused little lasting damage, says U.S. state department”,The Guardian, 19 jan. 2011. Disponível em: http://www.guardian.co.uk/media/2011/jan/19/wikileaks-white-house-state-department; “How the U.S. can now extradite Assange”, Salon. 7 dez. 2010. Disponível em: http://www.salon.com/2010/12/07/julian_assange_extradition/.
91. “Dealing with Assange and the WikiLeaks Secrets”, New York Times Magazine, 26 jan. 2011. Disponível em: https://www.nytimes.com/2011/01/30/magazine/30Wikileaks-t.html.
92. “New Zealand Minister Hosts Mike Moore’s ‘Fahrenheit 9/11’ Fundraiser (almost)”, The Cable Gate Search, 2004.
93. Diretor de cinema estadunidense crítico ao American Way of Life. Dirigiu os documentários Tiros em Columbine (2002), Fahrenheit 9/11 (2004) e Sicko (2007), entre outros. [n.e.]
94. Personagem principal da série de ação 24 Horas, lançada em 2001 pela Fox, interpretado pelo ator Kiefer Sutherland. [n.e.]
95. “Nigeria: Pfizer Reaches Preliminary Agreement for a $75 Million Settlement”, The Cable Gate Search, 2009. Disponível em: http://cablegatesearch.net/cable.php?id=09ABUJA671&q=pfizer.
96. “WikiLeaks cables: Pfizer ‘used dirty tricks to avoid clinical trial payout’”, The Guardian, 9 dez. 2010 Disponível em: https://www.theguardian.com/business/2010/dec/09/wikileaks-cables-pfizer-nigeria.
97. “Biotechnology Corn Event Demarche”, WikiLeaks, 23 fev. 2009. Disponível em: https://wikileaks.org/plusd/cables/09WARSAW199_a.html.
98. page, G. R. “Trusting Photosynthesis: Thoughts on the Future of Global Food Production”, Chautuaqua Institute, 12 ago. 2008. Disponível em: http://www.cargill.com/news/speechespresentations/trusting-photosynthesis/index.jsp.
99. “Judicial Decisions Favorable to Biotech Cultivation”, The Cable Gate Search, 31 jul. 2006. Disponível em: http://cablegatesearch.net/cable.php?id=06PARIS5154&q=france%20gmo%20greenpeace%20spain.
100. “French Biotech Farmers Face Multiple Problems and Challenges”, The Cable Gate Search, 13 ago. 2007. Disponível em: http://cablegatesearch.net/cable.php?id=07PARIS3399&q=france%20gmo%20greenpeace%20spain.
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Tradução para português: Allan Rodrigo de Campos Silva. In: Wallace, Rob. Pandemia e Agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. Elefante & Igrá Kniga, 2020. Versão original em inglês: Jacobin, 5 set. 2012.
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