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KRENAK E O SONHO CURTO DOS NAPËPË

"Eu queria contrapor à acusação antiga de que nós, os povos originários, somos povos preguiçosos outra perspectiva sobre a preguiça. Eu queria fazê-lo dizendo que nós não temos preguiça de ser, nós temos preguiça de fazer. Isso não é um defeito ou uma defasagem civilizacional, mas o exercício de outra modalidade de implicação relacional com o mundo. Nossa preguiça é o exercício da possibilidade de nos afetarmos por outros seres. A nossa disposição é para ser, não para fazer. Nossa disposição é para ser e ser-com, não para fazer e abarrotar o mundo de mercadorias, sonhando curto, sonhando apenas consigo mesmo".

O filósofo e liderança indígena Aílton Krenak destaca a importância de fazer parentes - materiais e simbólicos - em texto escrito em especial para o prefácio de O sonho curto dos napëpë e a pandemia de Rafael Afonso da Silva publicado pela Igrá Kniga.


 



O sonho curto dos napëpë invoca o pensamento yanomami, a partir da obra A queda do céu, de Davi Kopenawa (2015). Ele dialoga com a cosmovisão yanomami para dar conta de produzir uma crítica ao caminho errado que o Ocidente tomou há muito tempo e do qual parece estar tão convencido de ser o único possível que vem eliminando as formas de vida não humanas e humanas que não se engajaram nessa rota.


Existe uma lógica do Ocidente que estrutura toda essa violência em relação aos não humanos e também aos humanos que “não são tão iguais”. Essa ideia de que há humanos que “não são tão iguais” remete a Millôr Fernandes, que, comentando a ideia de que os humanos têm direitos iguais e somos todos iguais, subjacente à Declaração Universal dos Direitos Humanos, teria dito: “Sim, somos todos iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”. Esses caras que “são mais iguais do que os outros” constituem um clube, um clube seleto de vocalizadores da verdade, da ciência, do melhor relato sobre o mundo. Do mesmo modo que eles produzem uma narrativa de si mesmos que nega a existência de qualquer outra humanidade além daquele clube e nega a legitimidade de outros relatos sobre o mundo além do seu, eles são capazes de plasmar o mundo inteiro a partir dessa narrativa que podemos chamar de negacionismo.


O negacionismo tem uma capacidade viral de contagiar as mentalidades, inclusive dessa constelação de seres que chamamos de “povo”. Esse “povo” que Mao Tsé-Tung convocou, esse “povo” que Hitler convocou, esse “povo” que o fascismo convoca, esse “povo” é uma ideia política instituída, mas também toda essa gente que se aglomera em torno dela. Pois bem. Esse “povo” adora uma narrativa simples e imbecil como essa do negacionismo. As pessoas estão morrendo aos milhares, mas não percebem que nós estamos vivendo uma situação global de doença.


Eu estou usando a palavra “doença” para evitar a palavra “pandemia”. Na obra O sonho curto dos napëpë, Rafael problematiza essa questão de uma narrativa que decidiu que nós estamos vivendo uma pandemia. É importante, de fato, atentar para o significado político e a potência política dessa apropriação narrativa de uma tragédia humanitária que envolve pessoas em diferentes lugares do mundo, não somente em diferentes lugares geográficos, mas em diferentes lugares sociais no mundo. Afinal de contas, a COVID-19 não afeta somente as pessoas que estão nos grandes centros urbanos, mas também, e principalmente, os corpos que já vêm sendo flagelados pela indiferença, pela pobreza material e por uma desestruturação cultural que muitas comunidades vivem hoje no mundo. A COVID-19 atinge, sobretudo, os corpos submetidos a essas formas de violência, que são o produto desse tipo de comunidade humana equívoca a que temos aderido quase involuntariamente, sob a premissa de que não temos outra escolha.

Ilustração de João da Silva para 'O sonho curto...'

Na verdade, essa aparência de que nós não temos outra escolha faz parte da narrativa de uma história única vocalizada pelo clube dos que “são mais iguais dos que os outros”. Essa narrativa converte as outras histórias, de outros povos, não pertencentes ao clube, em mitos, em lendas, em fabulações. Nesse sentido, acho muito importante dialogar com O sonho curto dos napëpë, em sua tentativa de tirar desse lugar de invisibilidade um pensamento potente, como o yanomami, um pensamento que teria sido capaz de nos guiar em uma opção de trilhas e caminhos para além desse emaranhado de dias, ideias e escolhas em que o pensamento ocidental nos enredou nos últimos duzentos, trezentos anos, para não voltar muito atrás.


Há duzentos, trezentos anos atrás, o Ocidente configurou isso que é chamado de Modernidade e que inclui a Revolução Industrial e toda a produção artificial de mundo que moldou este em que habitamos agora. Vivemos em um mundo artificial. Digo “artificial” do ponto de vista da produção de vida. Isso é claro quando pensamos, por exemplo, nos alimentos que nós consumimos e cuja origem desconhecemos. Nós não sabemos o quanto a maioria dos alimentos distribuídos no mundo pode estar contaminada, drogada. Não sabemos o quanto, nem desde quando: se foi a partir da Revolução Verde ou se foi desde que o agronegócio se instituiu como uma coisa lucrativa, a ponto de muita gente decidir que, ao invés de botar seu dinheiro para caçar petróleo, é melhor botar seu dinheiro para continuar produzindo essa pasteurização do alimento, esse envenenamento da comida. A comida é um dos grandes desafios que a gente tem pela frente. Se, no passado, nas décadas de 1940 e 1950, sob a legenda da segurança alimentar, a preocupação era dar comida para a humanidade e isso parecia um sonho edificante, o que descobrimos agora, ao revés, é que estamos entupindo o mundo de comida podre e drogada. As pessoas comem não mais para viver, as pessoas estão comendo para morrer. A produção de vida é, simultaneamente, produção de morte.


Nós estamos vivendo o sonho curto dos napëpë. Para além de entendermos que se trata do sonho de quem sonha apenas consigo mesmo, devemos perceber que ele também produz efeitos. Um dos efeitos que ele produz é a comida fácil, é o remédio fácil, é a vida fácil. É muito curioso, porque uma das críticas que os racistas brancos têm sustentado contra os povos indígenas é que os índios são preguiçosos, não trabalham. Ora, se você olhar a qualidade do trabalho que essa gente preguiçosa que são os índios realiza, você verá que ele produz o alimento que a terra dá com a qualidade com que a terra quer que ele devolva. Isso não tem nada a ver com a narrativa do reciclável ou com a narrativa do sustentável. A gente não acredita nessas narrativas, porque são mentiras produzidas nesse mundo da comida fácil. A qualidade do trabalho que se realiza a partir do sonho curto dos napëpë não tem a restituição, o respeito e a negociação como princípios. Aliás, eles, os napëpë, forjaram um termo muito interessante que é fast-food. Essa palavra revela muito do cretinismo que está por trás desse comportamento que não respeita o que a terra nos dá. A terra nos dá tudo de que nós precisamos, mas nós queremos dar um nó e inventar uma coisa mais fácil e mais rápida (fast) do que negociar com os outros seres, não humanos, a nossa saúde, a nossa vitalidade e a nossa permanência no mundo. Nós não queremos negociar com os outros seres a nossa existência.


A ideia de negociar com os outros seres a nossa existência é uma ideia presente no texto do Rafael, quando ele aponta para aquela estratégia de “fazer parentes”. O que é “fazer parentes” nesse caso? “Fazer parentes” nesse caso é lembrar que você precisa negociar com outras entidades a sua passagem aqui na Terra. A Terra não é um elevador privativo, panorâmico, para os imbecis curtirem a paisagem. A Terra é esse organismo vivo maravilhoso e, como organismo vivo, ele tem humor, ele reage, ele nos trata como nós o tratamos.

Tem uma montanha aqui, na margem esquerda do rio, ao lado da nossa aldeia, que é a montanha Takukrak. Nós negociamos com essa montanha o humor que o dia vai nos proporcionar. Quando nós olhamos essa montanha e a vemos com a face resplandecendo e com pequenas nuvens brancas sobre a cabeça, isso é um sinal de que o dia vai ser bom. Nós estamos negociando com essa montanha o nosso bom dia. Quando eu vou ao quintal mexer na terra, eu estou negociando, com a terra, o tomate, a batata, a banana, o inhame, a comida que eu poderei compartilhar com a minha casa, a minha família. E, mesmo se eu fosse no mato caçar, eu iria negociar, eu teria que negociar com aquele corpo, com aquele bicho, com aquele animal que vou caçar, eu teria que negociar com a constelação de parentes dele, que são meus parentes também, trocando, trocando favores, trocando afetos, para que a gente possa ter trânsito livre no mundo. Isso se a gente quiser pensar um mundo e continuar a viver em um.


A situação da pandemia ressalta de uma maneira escandalosa que nós não sabemos andar no mundo. A gente não pede licença. A gente anda atropelando todo mundo. Nós fazemos uma crítica ao colonialismo, dizendo que o pensamento ocidental ou a fúria eurocêntrica saiu comendo o mundo, tanto a Ásia, quanto a África, e veio parar aqui na América, destruindo as nossas vidas. Mas, quando nós saímos dessa observação localizada, restrita ao colonialismo europeu, nós nos damos conta de que devemos estender essa crítica ao comportamento do Homo sapiens, não apenas do europeu, mas de todos nós.


Ilustração de João da Silva para 'O sonho curto...'

O Homo sapiens tem se transformado em uma peste incontida: espalhando-se pelo planeta e devorando o planeta, devorando o planeta e os outros seres que ele ignora que existam. Na crítica decolonial, nós denunciamos aqueles comportamentos de rotina que encarnam a reprodução do colonialismo. Mas, quando olhamos a partir de uma perspectiva mais ampla – o pensamento do Kopenawa yanomami, o pensamento de outros autores que estão reunidos como chave crítica para o Rafael compor O sonho curto dos napëpë –, nós percebemos que existe outro colonialismo para além desse que se constitui como objeto dessa crítica, um colonialismo que se articula a partir da afirmação de que “o homem é a medida de todas as coisas”.


Essa ideia de que “o homem é a medida de todas as coisas” é uma grande roubada, mas captura até mesmo quem está alinhado com a crítica ao fascismo, à recolonização do mundo, ao neocolonialismo. Trata-se de uma captura ontológica, não apenas ideológica. Com efeito, essa ideia participa da constituição disso que chamamos de sujeito contemporâneo, seja esse sujeito negro, índio ou branco, porque estamos todos profundamente implicados na reprodução desse mundo que nós chamamos facilmente de capitalista, quando nos esquecemos de que, durante o século XX, uma parte de toda essa tecnologia, desse aparato material que a gente move no mundo, foi construída pelo sistema socialista na União Soviética e pelo sistema comunista na China. Quando fazemos uma crítica ao Ocidente, a gente deveria exercitar um olhar um pouco mais abrangente e considerar que o Ocidente não é exatamente a Europa. O Ocidente é o mundo.


Eu fui ao Japão, no final da década de 1990, e fiquei de cara quando vi que os japoneses são tão ocidentais quanto um francês. Eu estava visitando um povo que tem uma cultura milenar, que é reverenciado como uma tradição milenar, que se distingue do pensamento oportunista, veloz e descartável (fast) do Ocidente. Mas eu estava, de repente, no meio de uma comunidade que aderiu, em menos de cem anos, a todo o jogo do Ocidente e brinca com as mesmas cartas do baralho capitalista com que o Ocidente joga.


Parece que aquilo que Davi Kopenawa sintetiza com a expressão “povo da mercadoria” absorveu todas essas mentalidades, todas essas perspectivas de mundo. Aquilo que Davi Kopenawa registra sob essa expressão é algo muito simples. Ela descreve a situação de diferentes povos que foram sendo capturados por uma fúria consumista, para a qual a mercadoria é algo como um paraíso. Não importa se essa mercadoria é uma garrafa térmica, uma cadeira ou uma frigideira. Essa palhaçada toda se constitui como se tudo isso fossem totens, coisas mágicas, atrás das quais corremos desesperadamente e diante das quais nos ajoelhamos miseravelmente.


Alguns exemplos que o Davi Kopenawa dá em A queda do céu são realmente definitivos para explicar essa fixação do pensamento moderno na mercadoria. Ele diz, por exemplo, que o napë, o branco, ou melhor, o homem moderno, tem mais amor à mercadoria, aos seus objetos, do que afeto pelas pessoas com quem se relaciona. É esse o tipo de gente que nós todos corremos o risco de nos tornar, constituindo uma massa de oito bilhões de imbecis pulando de alegria diante de uma nova porcaria que a indústria vai produzir para nos alimentar, para nos iludir, assim como agora estamos sendo iludidos por cinco vacinas que estão chegando ali, no mercado da esquina, e que a gente não sabe qual vai comer primeiro.


É uma coisa absurda que, mesmo em um momento trágico como o da pandemia, em que se esperava que as pessoas ficassem um pouco mais lúcidas, a gente assista a um espetáculo que nenhum circo conseguiria dar de graça para a gente. Neste momento, estamos disputando qual vacina iremos comprar. Milhões de pessoas deliram e festejam a ideia de receber uma vacina na bunda, como se isso fosse um presente de natal. Não tem outro jeito de descrever essa loucura.


Essa loucura é apenas mais uma variação da dancinha moderna, isso que eu chamo de “a dança da técnica” no livrinho Ideias para adiar o fim do mundo (Krenak, 2019). Existe uma coreografia que todos somos chamados a ensaiar e que eu chamei de “a dança da técnica”. Essa dancinha moderna pega todo mundo. São muito poucas as comunidades que conseguiram ficar de fora dessa coreografia. Elas pagam com a vida pelo fato de não terem aprendido a dançar. Se você não aprender essa coreografia, meu chapa, marque o dia de você morrer. Você vai morrer invadido por garimpeiros, por madeireiras, pelo agronegócio ou por alguma outra fúria, nem que seja a fúria do desenvolvimento sustentável.


Ora, uma das propostas mais inteligentes e espertinhas que apareceu até agora para lidar com os povos que vivem dentro da floresta na Amazônia é a ideia de que a biotecnologia vai fazer a gestão do ecossistema da Amazônia. A ideia que se contrapõe ao desastre, à destruição da floresta, é outra ideia extrema: a ideia de que a tecnologia vai dar conta de reproduzir aquilo que a natureza nos deu de graça há muito tempo e com que não soubemos nos relacionar, porque não aprendemos a “fazer parentes”. Para isso chama a atenção o trabalho do Rafael, esse mergulho que ele fez nas bibliografias de diferentes autores, sempre com o olhar muito focado na crítica dessa rota equivocada em que nos engajamos. Não aprendemos a fazer parentes com os rios, com as florestas, não aprendemos a fazer parentes com aqueles seres que só podem ser percebidos em outro campo de relações, como se você tivesse mesmo que parar a sua mente, parar a aceleração, e experimentar aquele exercício de ouvir a montanha. Ouvir. Parar.


Então, eu saúdo O sonho curto dos napëpë como uma obra que, não seria exagero dizer, é um panfleto convocando as redes que são capazes de pensar a se posicionar diante desse momento que é o primeiro capítulo de uma novela que ainda se estenderá em muitos capítulos. O que estamos vivendo é apenas o hall de entrada de um amplo corredor pelo qual vamos seguir por décadas, acumulando perdas em um mundo em erosão. Se não formos capazes de pensar outros mundos e produzir efetivamente esses outros mundos, nós estamos todos ferrados. Não adianta mirabolar panaceias, nem dar tapinha nas costas ou distribuir pílulas de placebo do tipo “vai ficar tudo bem”. E, me desculpem, eu preciso dizer: essa vacina, que vai custar bilhões e que vai criar um novo negócio capitalista, que vai bombar o capitalismo, ela não é mais que isto, um placebo.


É muito interessante esse tempo de discurso sanitarista que estamos vivendo, porque todo mundo virou sanitarista. É claro que nós achamos muito importante que exista uma prática, uma ciência, um conhecimento sobre a questão sanitária local, regional, global. Sabemos da importância disso. Mas, isso não pode ser a panaceia para um mundo que está escoando pelo ralo, enquanto cai pelas tabelas. Se você achar que vai resolver isso com uma vacina, é uma grande mentira. Nós vamos ter segunda, a terceira e a quarta jornadas de produção de vacinas. Talvez nós estejamos mesmo inaugurando um fantástico mundo de produção de doenças e vacinas para revitalizar o capitalismo. É a fase necropolítica do capitalismo. Parece um filme de ficção, mas a verdade é que o necrocapitalismo conseguiu criar um hospital geral e encerrou todo mundo e todo o mundo dentro dele. Então, no lugar da promessa da civilização ocidental, nós podemos ter o hospital geral.


O hospital geral é como a antessala do inferno,um espaço em que o mundo é experimentado como um purgatório. Mas a mediocridade e a falta de imaginação levam a assumir essa antessala como se fosse mesmo o mundo, o único mundo possível. Nesse mundo, o que experimentamos é um tipo de “fim do mundo”. Com efeito, o fim do mundo não implica uma catástrofe que vai arrasar os continentes. O fim do mundo pode ser uma catástrofe que vai acabar com a nossa imaginação. Basta paralisar nossa imaginação que o mundo acaba. Pois vejam: se a gente não for capaz de exercitar a imaginação, a gente pode viver dentro de um necrotério, dentro do necrocapitalismo, e achar que tudo vai bem, como no filme do Godard (1972).


Nós vivemos uma situação que evidencia a necessidade de sair do módulo humano. O módulo humano é pequeno, curto. Ele não é capaz de ser afetado pelas outras vidas, pelos outros seres. Ser afetado pelos outros seres é o movimento necessário para produzir outro mundo. Assim, para produzir outro mundo, temos de sair dessa caixa fechada que reconhecemos como o humano. Independentemente de ser o humano ocidental ou qualquer outro humano, há a necessidade urgente de sair do casulo, de explodir o casulo, e permitir a emergência de outra configuração além do Antropoceno.


O Antropoceno é nossa vitória em sentido negativo. É como subirmos em um pódio erguido sobre desastres, desgraças e genocídios e gritar: “Viva o humano!”. O Antropoceno é a vitória da nossa burrice, é a vitória de nosso isolamento em relação a todos os outros seres, àqueles que são os nossos únicos aliados para sairmos dessa entropia que nos engoliu por causa de nossa preguiça de ser. Preguiça de ser, não de fazer.


Eu queria contrapor à acusação antiga de que nós, os povos originários, somos povos preguiçosos outra perspectiva sobre a preguiça. Eu queria fazê-lo dizendo que nós não temos preguiça de ser, nós temos preguiça de fazer. Isso não é um defeito ou uma defasagem civilizacional, mas o exercício de outra modalidade de implicação relacional com o mundo. Nossa preguiça é o exercício da possibilidade de nos afetarmos por outros seres. A nossa disposição é para ser, não para fazer. Nossa disposição é para ser e ser-com, não para fazer e abarrotar o mundo de mercadorias, sonhando curto, sonhando apenas consigo mesmo. É a preguiça de ser que está nos deixando a todos doentes. Por isso, viva a preguiça daqueles que têm preguiça de fazer! Viva a coragem daqueles que têm disposição de ser, e ser em sentido plural, escapulindo do módulo humano!

Precisamos escapulir do módulo humano, inclusive, do discurso dos direitos humanos. Todo mundo quer direitos humanos. Os humanos estão chapados de direito, ainda que esses direitos sirvam, sobretudo, ou, às vezes, exclusivamente, ao clube dos que “são mais iguais do que os outros”. Mas, quando falamos em direitos, parece que o substantivo já vem colado ao adjetivo “humanos”, como se os seres a que o adjetivo se refere pudessem viver em uma abstração civilizatória, em um mundo fundado apenas em relações entre humanos. Os humanos tinham de parar e pensar na possibilidade de distribuir um pouquinho de direito para outros seres. Sem isso, anulam os seus próprios direitos e, em primeiro lugar, o direito à vida, que não pode ser confirmado sem os outros seres.


Eduardo Gudynas (2019), que é um pensador e um ativista do campo político-filosófico na América Latina, reuniu artigos em uma obra intitulada Direitos da Natureza. Essa obra abrange textos que abordam o novo constitucionalismo latino-americano, discutindo o direito da Terra, a Pachamama, e dialogando com a política do bem-viver. Esses movimentos por direitos da Natureza são estratégias engajadas na tentativa de sair do casulo humano a partir da compreensão de que, se nós, os humanos, queremos escapar dessa roubada em que nos metemos, teremos de nos associar com rios, florestas, montanhas, oceanos e bilhares de outros seres invisíveis, inclusive, os xapiripë.


Sim, os xapiripë, os espíritos que protegem a floresta e seus habitantes, como são chamados pelos Yanomami. Xapiri é o nome de uma relação. Xapiri é a comunicação dos antepassados e da floresta com o xamã.Xapiri é a comunicação com essa potência humana que chamamos de transcendência, é a comunicação com o sentido de transcender, essa potência que está oculta e silenciada dentro do humano contemporâneo. Eu não estou falando para ninguém virar místico, nem virar xamã. Eu estou dizendo que as pessoas precisam sair da estupidez do módulo humano para conectar-se com outros sentidos da vida.


O sonho curto dos napëpë traz uma discussão muito importante. Eu gostaria que ele fosse lido por muito mais gente. Mas eu sei que ele exige um tipo de dis posição para entrar naquela floresta e andar por aquelas trilhas, guiado por suas pistas e sinais. Ele exige disposição para entrar nele, ler e chegar até aquelas indicações ao final do livro, as quais eu considero um manifesto que convoca a quem pensa, a quem faz ciência, a quem está pensando ou produzindo crítica, a pensar para além da necropolítica, a pensar para além dessa ideia de produzirmos defesa contra a vida em nome da vida. Nós estamos querendo produzir vacina contra o vírus em nome da vida humana, enquanto ignoramos o fato de que faz tempo que estamos produzindo dispositivos contra a vida.


Recentemente nós tivemos o anúncio do governo precário e criminoso de Bolsonaro de que teremos o marco regulatório para o saneamento ambiental. Nós somos loucos por um saneamento. Nós estamos saneando o planeta inteiro. E parece que iremos passar o resto do século XXI, enquanto ainda houver gente andando por aí, produzindo vacina depois de vacina, esterilizando o planeta. Esse será o grande negócio do século. Mais um negócio do sonho curto dos napëpë.


O sonho curto dos napëpë tem uma clareza exemplar, mas ele exige coragem e disposição para atravessar as trilhas de suas críticas. Ele tem muitos caminhos que podem ser explorados em diferentes contextos. Mas, no momento político crítico que vivemos, seu mérito é, sobretudo, jogar uma pá de cal sobre as saídas curtas e fast propostas para a crise, mostrando que o presente modo de governança pensado para o planeta é um erro grave e que nós temos de produzir outros modos de governança do mundo – uma governança construída não somente pelos e para os humanos, mas instituída em uma negociação constante com outras potências, com outros seres, que são tão importantes quanto os humanos, embora submetidos atualmente a um regime de aniquilação.


A verdade é que temos aniquilado camadas e camadas desses outros seres, mesmo aquela camada superficial do planeta, que é a terra que chamamos de agriculturável e que produz todo o alimento que oito bilhões de pessoas esperam, a cada dia, receber para comer. Nós esperamos a comida, mas não queremos fazer nenhum esforço para pensar em como essa comida é produzida.


Pensando na carne, por exemplo, preferimos ignorar que ela é produzida em grandes matadouros de bois, frangos e porcos, nesses campos de concentração em que os animais são exterminados, apesar de todos os eufemismos que a indústria de alimentos inventa para dizer que os animais são tratados com todos os cuidados. A FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) é uma grande fábrica de eufemismos. Mas, em suma, é tudo conversa fiada, porque o que temos são campos de concentração de seres cultivados para morrer e que, depois, vêm para a sua mesa. Estamos todos associados a essa produção constante de um volume escandaloso de comida, embora, paradoxalmente, isso não torne obsoletas, mas ainda mais necessárias as campanhas contra a fome. É esse um bom retrato do hospital geral, desse manicômio necrocapitalista. Nós produzimos comida até abarrotar o mundo de comida, mas ainda temos de fazer campanha contra a fome.


Nós precisamos olhar o nosso rastro, nesse percurso que veio a desembocar no Antropoceno, e identificar quantos desvios errados tomamos até aqui. O desvio mais equivocado parece ser este que nos fez esquecer de sonhar. Para escapar ao sonho curto, você precisa se soltar, você precisa ficar à toa e você precisa permitir que esse sonho chegue a você como um presente, não uma mercadoria, um outro artefato, um objeto para você consumir, mas como uma experiência de ser. Nós podemos afetar uns aos outros com o desejo de ser, de pertencer a um cosmos co-habitado por incontáveis outros seres.


Mas esse desejo tem de deslocar essa monocultura que se apodera de nossos sentidos e nos expõe a todo tipo de tragédia, seja ela uma pandemia, seja ela um golpe político ou a miséria que assola os povos em vários lugares do mundo. O que fundamenta essa monocultura é o fato de os humanos se acharem o sal da terra. Parece que os poetas e os profetas que andaram perdidos pelo deserto não se cansaram dessa ladainha do “sal da terra”. Mas eu estou aqui, na beira do Rio Doce, chapado de lama da mineração, tomando água de caminhão pipa e esperando que as pessoas aprendam a sonhar de novo. Para a gente sonhar junto com rios, sonhar junto com montanhas, para a gente ser, para a gente continuar existindo, a gente precisa parar de comer a Terra.


Erehé!


Ailton Krenak


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