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A guerra do antropoceno já começou

Atualizado: há 6 horas

combustão e securitização à brasileira

por Agnes de Oliveira Costa


Alguém se admira que, no presente, a mercantilização e a financeirização da natureza, ocorridas no momento do Antropoceno, em meio à capitalização do caos, sejam acompanhadas da “crescente imbricação entre a ecologia e a guerra”, promovendo os exércitos à condição de especialistas do caos? A pacificação securitária e o “novo humanismo militar” se propagam na velocidade das catástrofes naturais e da gestão dos riscos sociais amplificados por elas. - Éric Alliez e Maurizio Lazzarato, Guerras e Capital.

Colagem de Ion Fernandez de las Heras a partir de pintura de Friedrich Weitsch que retrata Humboldt & Bonpland
Colagem de Ion Fernandez de las Heras a partir de pintura de Friedrich Weitsch que retrata Humboldt & Bonpland

Dia 16 de outubro, o governo Lula instalou o Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM), responsável por mapear e planejar a exploração de “minerais críticos e estratégicos”, bem como das chamadas “terras raras”, que passaram a ganhar cada vez mais atenção diante da corrida global por minérios, num contexto de escalada bélica global, de “transição energética” e tecnológica para a “indústria 4.0”. Diante disso, a expressão “minerais críticos e estratégicos” passou a ser cada vez mais empregada no discurso oficial e nos meios de comunicação. 


Quando ouvimos a expressão “minerais críticos e estratégicos” seria o caso, assim como quando ouvimos “infraestrutura crítica”, de ligarmos o alerta a respeito da matriz militar do mundo moderno e de toda parafernalha pela qual a realidade é descrita com naturalidade insuspeita.


A matriz militar do nosso mundo, ao mesmo tempo naturalizada, é ocluída nas análises das dinâmicas jurídicas, econômicas, patriarcais e raciais do Capital Global em crise, bem como da maneira como o Capital administra o colapso ecológico que ele mesmo produziu. E, entretanto, tal matriz é fundamental para compreendermos não só a dinâmica de crise do Capital Global, mas como ela se processa no contexto brasileiro.

 

Por isso, retomarei brevemente a relação da guerra com o processo de constituição histórica da forma social moderna, para então tratar da constelação de mecanismos jurídicos e penais que perfazem a securitização brasileira da destruição socioecológica. 


I. No rastro do dinheiro, pólvora e cheiro da combustão forçada


Se re/de/compormos o processo de formação histórica da máquina mundial de combustão que é o cispatriarcado-racial produtor de mercadorias, encontraremos como uma componente fundamental o complexo militar proto-industrial, emergente no contexto da revolução das armas de fogo do século XV. Longe de uma mudança de natureza meramente tecnológica, a invenção das armas de fogo indexa uma ruptura qualitativa do ponto de vista da forma e conteúdo da vinculação social, indissociável do extrativismo mineral em larga escalada e do estabelecimento - algo até então inexistente - de uma matriz social energética baseada na combustão ilimitada de energia material humana e não-humana como condição da reprodução social [1]. Assim, estamos falando de uma transformação de ampla envergadura implicando diversos níveis e dimensões, que se deu em torno das armas de fogo.


A genealogia da metalurgia industrial, por exemplo, que vai do extrativismo de minerais à construção de grandes instalações siderúrgicas, remonta à formação de uma “economia de guerra” desvinculada dos demais momentos da vida social, voltada para a produção industrial de armas de fogo, como os mosquetes e canhões que não podiam ser produzidos de maneira artesanal, bem como para a construção de novas estruturas de defesa capazes de resistirem às novas forças destrutivas. Trata-se, então, de uma corrida armamentista e militarização social, vinculados ao extrativismo, que constitui o impulso inaugural da Modernidade,  que se repete até os dias de hoje e, cada vez mais, se mostra no coração de nossas democracias. [2]  Além disso, foi sob o solo bélico-econômico da guerra que os Estados modernos, inicialmente absolutistas, emergiram na condição de Estados territoriais, fiscais, administrativos, policiais, militares e coloniais. [3] Os Estados modernos se formam, sempre-já, numa relação de concorrência armamentista entre si, visando garantir a centralização, concentração e, como veremos, monetarização dos recursos necessários para a produção e logística do complexo militar proto-industrial e sua economia permanente de guerra, que além de quantidades em escala crescente de “recursos materiais”, demandava também a mobilização cada vez maior e permanente de soldados. [4]


Ao atentar para essa relação entre economia de guerra e Estado estamos falando, assim, do nascimento da própria economia política, tanto como realidade, isto é, do mercado e do Estado como domínios sociais “desvinculados” inicialmente centrados na produção e administração da guerra, quanto como teoria ou forma de pensamento. [5] É sob essas bases, aliás, que veremos também se formar, para usar uma expressão de Denise Ferreira da Silva, o Homo Modernus como Sujeito, que é ao mesmo tempo um  homo oeconomicus e um homo politicus.


Como vimos, entre outras coisas, a economia de guerra e a corrida armamentista entre os Estados modernos europeus foram responsáveis por desencadear uma fome insaciável por “minérios estratégicos” (como ferro, cobre, carvão e enxofre) para a produção de canhões, mosquetes, navios e pólvora. A fome da máquina de guerra por esses minérios implicou, por sua vez, a fome por um outro “minério estratégico”: o ouro. No interior da economia de guerra, o ouro passou a desempenhar uma função especial e distinta dos demais minérios: não como “matéria-prima” a ser extraída e processada na produção de armas de fogo, mas como mercadoria-dinheiro responsável, na condição de representante universal da riqueza, por financiar o complexo militar proto-industrial, que demandava compulsivamente a mobilização crescente e em grande escala de existências humanas e não-humanas, na forma de materiais de guerra e de soldados. Tais existência foram transformadas em puro in put de uma máquina de guerra mundial e monetarizada, abstratizadas no que se consolidaria como capital constante (fixo e circulante) e variável. [6] Como resultado desse processo, a economia de guerra conduziu a uma transformação da socialidade, por meio da imposição trabalho abstrato, da produção de mercadorias e do dinheiro em escala global. Nesse sentido, os empresários da guerra – como os condottiere e corsários - figuram a arché dos empresários capitalistas, enquanto os soldados figuram a arché do trabalho abstrato e assalariado, pois foram os primeiros recebedores de soldo, lutando não por valores e ideais, mas por dinheiro. [7] E a abstração monetária da violência armada a arché do Sujeito moderno: o sujeito cismasculino branco, que na realização de sua vontade abstrata e objetivos é indiferente aos seus efeitos destrutivos.


As relações bélicas-econômicas mediadas pelo dinheiro se impuseram, a partir da constituição de um mercado mundial, sobre toda reprodução social, modificando-a qualitativamente, tanto do ponto de vista da sua forma, quanto do conteúdo. Com efeito, a fome por dinheiro do complexo militar proto-industrial e seu empreedimento de morte desempenhou um papel fundamental na formação do Capital, enquanto uma forma social global baseada na acumulação de riqueza abstrata expressa na forma monetária, que no curso desse processo, se autonomizou como “um fim em si” ao qual a produção material se vê subordinada. Em outros termos: a racionalidade econômica abstrata, característica do capitalismo, emergiu da máquina de guerra e sua indústria da morte. Por sua vez, a autonomização da acumulação monetária, que deixa de ser um meio para se torna um fim-em-si, não implicou o desaparecimento ou mesmo a trégua da guerra. Pelo contrário, a economia de guerra se tornou um momento permanente e constitutivo da própria dinâmica interna de acumulação do Capital Global e de seu regime de violência aniquiladora baseado na forma-mercadoria, que é preciso compreendermos como uma forma, ao mesmo tempo, patriarcal e racial de socialidade. 


Embora seja algo que tenha recebido até então pouca atenção, a economia de guerra em formação na Europa, com sua correspondente fome por ouro, estava intimamente ligada a três outros processos globais constituintes do Capital como relação social: i) a constituição do cispatriarcado moderno e seu Sujeito, na medida em que a revolução das armas de fogo põe o domínio da economia política - o “espaço público” e “reino da liberdade e igualdade” - como desvinculado e estruturalmente masculino, pressupondo a dissociação e feminilização da reprodução social, bem como da natureza [8]; ii) o tráfico transatlântico de pessoas africanas escravizadas, na medida em que as armas de fogo não só foram um meio para estabelecer o comércio de pessoas escravizadas, mas porque as mercadorias produzidas com base na escravidão alimentavam uma economia de guerra mundial em formação [9]; iii) as práticas coloniais de conquista de territórios indígenas que, além da imposição do trabalho via escravização, tutela e extermínio de seus habitantes, transformaram os existentes não-humanos de tais territórios em componentes materiais da abstração do “capital circulante” da economia de guerra. [10] Sobre a conquista colonial, cabe lembrarmos que a catástrofe de 1492 foi inaugurada, na caracterização de Charles Tilly, por um condottiere, isto é, um empresária de guerra: Cristovão Colombo.  


Com efeito, a concorrência patriarcal entre os Estados europeus e dos empresários da guerra por acumulação de poder destrutivo, que demandou, por sua vez, a monetarização das relações sociais para acumulação de dinheiro, se desdobrou num processo global totalitário de engolfamento e espacialização econômico-militar, tanto por terra quanto por mar, do planeta.[11] Tal processo, por sua vez, dependeu da migração global, da transformação racializante de pessoas em mercadorias por meio do tráfico trans-atlântico e da tomada em larga escala de terras indígenas.


Diante disso, ao atentarmos para tal constituição histórica do capitalismo, se torna possível pensarmos outramente o nexo umbilical entre capitalismo, cispatriarcado, subjugação racial e combustão de energia fóssil, explicitando como o estabelecimento dessa relação infernal é posta não pelas forças produtivas da maquinaria industrial do século XIX movida à vapor pela queima de carvão, mas pelas forças destrutivas das armas de fogo movidas à queima de pólvora. [12] As primeiras são herdeiras da segunda. Além disso, as proporções cada vez maiores assumidas pela economia de guerra e, consequentemente, a insaciável demanda por recursos mobilizados sob a forma monetária, pressionaram uma transformação social que passou a abarcar, de maneira mais ampla, a própria relação com a matéria e sua produção. Em outros termos, o papel constituinte da economia de guerra nos primórdios da forma social capitalista se refere também à imposição de relacionamento entre forma social e matéria, no interior do qual o processamento material em larga escala, assim como o Sujeito masculino e branco enquanto autoridade executora de tal processo por meio de sua propriedade e trabalho, se torna dependente da abstração e combustão crescente de energia humana, na forma do trabalho abstrato produtor de valor, e não-humana, na forma de matérias-primas e maquinarias, para produção de mercadorias, que devem no final ser convertidas com sucesso em uma pura soma de dinheiro acrescida de si mesma. [13] Retomando o argumento de Carolyn Merchant,  Cara Dagget observou o caráter patriarcal de tal forma de relacionamento, ao tratar do paralelismo entre estupro e extrativismo, enformados por uma imagem feminilizada da natureza como “penetrável”, ao qual podemos acrescentar aquela da domesticidade (mecânica, passiva, reprodutiva). [14] Enquanto os aspectos coloniais e raciais de tal modo de relacionamento podem ser mapeados em torno das determinações da matéria não só como sem valor e improdutiva, mas, ao mesmo tempo, como ameaçadora, selvagem e fugitiva, justificando práticas de expropriação, extração e controle securitário sem que seja necessária qualquer “prestação de contas”. [15]


Tendo como pano de fundo a guerra como matriz originária do capitalismo e da sua matriz energética extrativista, quando nos voltamos para a atual “transição energética”, e transformação tecnológica para a indústria 4.0, podemos notar a presença de um vetor securitário pelo qual esse processo de desenrola, sendo inseparável de um complexo industrial-militar, no interior do qual é secretado uma série de mecanismos de saques e violências para garantir o controle do acesso dos Estados e das empresas transnacionais à minérios como grafite, nióbio, cobre, cobalto, lítio, urânio e as chamadas “terras raras”. São minérios importantes para a produção das turbinas eólicas, dos painéis solares, dos carros elétricos, de máquinas e infraestruturas cada vez mais digitalizadas e integradas, e para as novas tecnologias militares.


Inscrevendo-se no interior de uma dinâmica de escalada bélica e fragmentação global [16], os mais diversos Estados e seus governos, tomados na competição mundial pelo acesso, põem-se prontamente a falar sobre “soberania energética” e “segurança das reservas estratégicas de matérias-primas”, seja tal segurança “externa”, na relação dos Estados e blocos de poder em concorrência entre si, seja interna, travando uma “guerra doméstica” pelo controle dos minérios. [17] Com isso, os mecanismos de securitização dos territórios e seus “recursos”, tanto do ponto de vista militar e jurídico-penal, quanto do ponto de vista financeiro, são cada vez mais aprofundados.


II. Um veneno tão mortal quanto a bomba atômica


Omama enterrou o metal junto ao ser do caos Xiwãripo […] Se os brancos de hoje conseguirem arrancá-lo com suas bombas e grandes máquinas, do mesmo modo que abriram a estrada em nossa floresta, a terra se rasgará e todos os seus habitantes cairão no mundo de baixo […] Se os brancos um dia chegassem até o metal de Omama, a poderosa fumaça amarelada de seu sopro se espalharia por toda parte, como um veneno tão mortal quanto o que eles chamam de bomba atômica. Os minérios ficam guardados no frescor do solo, debaixo da terra, da floresta e de suas águas. Estão cobertos por grandes rochas duras, pedregulhos ocos, pedras brilhantes, cascalho e areia. Tudo isso contém seu calor, como uma geladeira de vacinas […] Se os brancos os arrancarem todos do solo, afugentarão o vento fresco da floresta e queimarão seus habitantes com sua fumaça de epidemia. Nem as árvores, nem os rios, nem mesmo os xapiri poderão conter seu calor. - Davi Kopenawa e Bruce Albert, A Queda do Céu
Nós estamos construindo uma parceria dentro do governo com a criação de uma comissão ultraespecial, primeiro para que a gente faça um levantamento de todo tipo de riqueza que o Brasil tem no seu solo e subsolo. Até agora me parece que nós só conhecemos o equivalente à 30%. Então nós temos 70% do nosso território e das nossas riquezas que não foram ainda pesquisada. Então nós temos autorizar a empresa pesquisar sobre o nosso controle. - Fala do presidente Lula (PT) no Rio de Janeiro, durante a cerimônia de inauguração de uma usina de gás natural

Colagem de Ion Fernandez de las Heras a partir de gravura de Henry Chamberlain "Ponta do Cababouço, vista da Glória", no Rio de Janeiro
Colagem de Ion Fernandez de las Heras a partir de gravura de Henry Chamberlain "Ponta do Cababouço, vista da Glória", no Rio de Janeiro

O enunciado de Lula sobre as riquezas ainda não pesquisadas expressa o desejo do mundo cispatriarcal dos brancos – o povo da mercadoria – por transparência e acesso total ao que existe. [18]  Descobrir sempre, para controlar sempre mais. Em outros termos, a mercadoria é indissociável de uma pulsão à absolutidade transparente e ao acesso total. É preciso que a matéria possa ser, como um todo, ser completamente determinada, conhecida, apropriada, processada e transformada em mercadoria convertível em dinheiro. Tal potência terrificante de uma total transparência se assenta nas exigências do vazio formal metafísico-real do valor, em guerra contínua com a matéria e a carne do mundo.  A medida que determinados conteúdos materiais vão se tornando, ao mesmo tempo, escassos e ainda mais demandados pelo atual nível de produtividade social,  a concorrência entre os sujeitos estruturalmente masculinos e brancos pelo acesso se intensifica e, nesse sentido, o recurso à força, em especial armada, se torna cada vez mais frequente. Nesse sentido, o aumento das formas armadas de regulação social, tanto formais quanto informais, públicas ou privadas, caracterizam modalidades de continuação da concorrência por outros meios, em especial num contexto no qual a “substância” de mediação social da metafísica real moderna se dissolve (ver a próxima seção).


No Brasil, após a lei do marco temporal, a PL da Devastação (PL 2159/2021) é um dos mecanismos jurídico-políticos pelos quais o Estado brasileiro, juntamente com as corporações transnacionais, busca se posicionar na corrida aos minérios e seu controle. A PL simplifica e acelera os processos de licenciamento para extração mineral e outros empreendimentos considerados “estratégicos”, muitos incluídos no o Programa de Aceleração do Crescimento  (PAC 3), como a Ferrogrão e a exploração de petróleo no Foz do Rio Amazonas. Além disso, grande parte de tais empreendimentos estão situados em terras indígenas e quilombolas ainda não demarcadas. Por fim, a PL é justificada como necessária para a transição energética e tecnológica. [19] Se soma a esse controle jurídico, o controle militar-penal do qual tratarei a seguir.


No dia 22/10, seis dias após a instalação do Conselho Nacional de Política Mineral, o Ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, enviou ao governo o Projeto de Lei Antifacção, que dentre outras coisas cria um novo tipo penal: organização criminosa qualificada, que ocorre quando o crime organizado envolve “controle de territórios ou atividades econômicas por meio de violências e ameaças”.[20] Há já algum tempo que as facções e milícias estão atuantes no mercado de minérios e conectadas, por uma série de atividades, ao grandes centros produtores do Capital, por meio da fronteira porosa e negociável entre o legal e o ilegal. [21] A expansão das formações armadas - ora formadas a partir do próprio aparelho do Estado, como nos casos das milícias e seus mercados de proteção, ora mantendo alianças variáveis com esse, como no caso das facções - se inscreve num contexto de crise da própria estatalidade e da soberania como forma de regulação do Capital em crise. Em outras palavras, a crise de acumulação do Capital implica uma crise do seu sistema político de regulação baseado na forma contrato.


A expressão mais acabada dessa tendência de decomposição social do Capital, em uma economia global de saque administrada de formas armadas, é a formação milícias ou “formações milicianas”, que realizam uma privatização dos impostos, do monopólio da violência e de outras atividades antes realizadas pelo Estado. [22] A privatização do aparelho de punição e violência do Estado não é uma novidade. Há cerca de quatro décadas podemos observar um outsourcing (terceirização) do Estado, que pode ocorrer de maneira informal por via de seu próprio aparelho ou alianças com outros grupos armados, mas também por meio de contratos oficiais e financiamento de grupos armados privados, que passam a regular os territórios e suas populações. [23] Em tal contexto, o Estado passa a ser, cada vez mais, uma dentre outras formações armadas cispatriarcais em concorrência pelo acesso e controle dos territórios e seus existentes transformados em “recursos estratégicos”. [24] Contudo, essa perda do monopólio da violência, ao invés de implicar em uma redução, conduz a um aumento da violência do Estado justificada como necessária para sua “autopreservação”, estabelecendo um círculo vicioso de acumulação da violência. No interior desta disputa, os territórios indígenas e os movimentos sociais de ocupação de terra se tornam cada vez mais um obstáculo: seja aos programas de desenvolvimento do Estado, como PAC 3, seja às empresas legais e ilegais do agronegócio e do extrativismo, equipadas cada vez mais com seu braço armado privado, como o Movimento Invasão Zero. [25]  


Subjacente às formações milicianas encontramos uma economia global de saque, cuja configuração contemporânea remete à crise da produção do valor, da “sociedade do trabalho” e do seu sujeito normativo concorrencial, cujo núcleo violento é cada vez mais exposto à luz do dia. [26]  Tais formações não são “externas” e “estranhas” ao Estado, mas expressões da sua decomposição enquanto momento da decomposição social levada à cabo pelo capitalismo de crise, marcado pelo desemprego estrutural. Em outras palavras: é o capitalismo em sua atual dinâmica de crise, cuja causa trataremos na próxima seção, que liquefaz suas formas de soberania numa multiplicidade de bandos armados, que passam a realizar, por intermédio das armas, a relação entre mercadorias e dinheiro. Desse modo, antes de uma “institucionalização” das milícias, o que há é uma conversão gradativa dos Estados em estruturas milicianas articuladas aos circuitos da economia global de saque. [27] As milícias se formam não apesar de ou por falta do Estado – por falta ou ineficiência da segurança pública, ou ainda de por mera “corrupção” moral de seus agentes por falta de controle -, mas como expressão de uma decomposição do Estado que se processa por intermédio de suas próprias políticas de administração de crise. Em outros termos, o Estado ao administrar a crise do Capital serra o próprio galho sobre o qual está sentado – e ele não pode, enquanto sistema político de regulação da mercadoria, fazer de outro modo. Trata-se das políticas de austeridade, privatização e desregulamentação (econômica, ambiental, trabalhista etc.) em favor da “economia de mercado”, acompanhadas de um aumento dos “custos de segurança” (economia de guerra). Tais políticas reduzem o Estado, gradativamente, ao seu núcleo militar-punitivo cada vez mais violento, cujos  agentes e instituições são movidos pela racionalidade econômico-empresarial generalizada pelo “ajuste” neoliberal, que vão se convertendo empresários da pilhagem.  Se a milicianização expressa a forma pela qual a economia “desregulada” se converte numa economia de saque militarizada, o miliciano, assim, é uma o arquétipo do empresário de si neoliberal. Sob tal condição de decomposição militariza do Estado, as relações econômicas e concorrenciais, se tornam, em larga medida, mediadas e reguladas não pelo contrato, mas pela força das armas como meio de inscrição no mercado, ao ponto de negócio e guerra irem se tornando empiricamente indistinguíveis.


Voltando para a constelação brasileira dos mecanismos jurídicos e securitários de extração de minérios, controle de seus territórios e aniquilação de tudo que obstruí o acesso, o racial não pode deixa de desempenhar seu papel de justificação do emprego da violência Estatal, legitimada como violência de “autopreservação” ou “autodefesa”. Cabe lembrarmos, como bem nos mostra Denise Ferreira da Silva, que o racial é um significante de exterioridade (corporal e territorial) e, portanto, uma ferramenta simbólica da violência produtiva e reguladora da espacialidade, operando dentro dos mecanismos jurídico-econômicos. Justificando o emprego da violência total, que está no núcleo do funcionamento do Direito e do Capital, o racial desempenha um papel constitutivo na dissolução da distinção entre “aplicação da lei” (administração da justiça) e “autopreservação” (defesa nacional), da distinção entre “inimigo interno” e “externo”. No Brasil, temos mais de quatro décadas de “guerra às drogas” e ao “crime” que mostram os efeitos do racial no interior dos mecanismos jurídico-econômicos de nossa democracia penal: quase 1 milhão de pessoas encarceradas, em sua maioria pobres e racializadas (negras e indígenas), bem como um sem número de operações policiais, que frequentemente resultam em chacinas. Também temos mais de 10 anos de UPP’s (Unidades de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro, cuja implementação foi justificada como “retomada de territórios”: não para proteger seus cidadãos e habitantes, mas para reafirmar o direito do Estado de recorrer à morte neles. [28] As UPP’s, assim, prefiguram o  sentido do Projeto de Lei Antifacção: não se trata da proteção das populações que habitam os territórios que o Estado objetiva administrar de maneira armada, mas da legitimação do uso da violência letal como “autopreservação” da soberania. 


Atualmente, podemos ver o sentido de tal projeto de se manifestar na chacina promovida pela Operação Contenção” no Complexo do Alemão e da Penha no Rio de Janeiro, governado por Cláudio Castro. Trata-se da maior chacina da história do Rio de Janeiro, com ao menos 121 mortos. Numa convergência infernal, três dias após a chacina, o presidente Lula sancionou o Projeto de Lei Antifacção, além de acelerar a aprovação de uma série de outras medidas de recrudescimento do Estado Penal, como a lei de nº15.245, proposta por Sérgio Moro [29], e a PEC da Segurança Pública. [30] O racial, assim, constitui o círculo vicioso da decomposição social militarizada do capitalismo de crise, que no seu momento político se expressa numa dinâmica pela qual o Estado, alimentando a economia de guerra, ao mesmo tempo “flexibiliza” suas regulamentações das atividades econômicas e precariza cada vez mais suas funções sociais, fortalece as formações de milícias e suas economias de saque. [31] O que, por sua vez, implica uma intensificação também da violência cispatriarcal, responsabilizando ainda mais as mulheres, e em especial as mulheres negras e indígenas, pelo cuidado e pela reprodução social. Elas são convocadas à varrer os escombros produzidos pelo Capital e o Estado, à realizar os lutos, quando não à salvar o planeta da crise ecológica. 


Posto isso, meu que argumento é que, em um contexto de concorrência dos sujeitos masculinos e estruturalmente brancos pelo acesso às “reservas estratégicas” de minérios, essa dinâmica exterminista tende a se expandir cada vez mais para além do contexto urbano, atualizando os efeitos do racial contra determinados corpos e territórios (di)ante da legitimidade do Estado, sobretudo quando seus habitantes se tornam descartáveis e um “fator de perturbação” ou “obstrução” para as cadeias de produção e logísticas do Capital Global. [32]


Assim, o Marco Temporal, a PL da Devastação, a criação do Conselho Nacional de Política de Política Mineral e o Projeto de Lei Antifacção perfazem uma constelação de mecanismos econômico-securitários, que atuam garantindo, por meio de uma violência reguladora, a extração e processamento de minérios para a transição energética e à “indústria 4.0”. Por meio delas, o próprio Estado, assim, se inscreve nos circuitos de uma economia global de saque. Tais mecanismos encontram legitimidade e apoio não só da direita, mas também na esquerda, sendo o  neonacionalismo como reação transversal de crise aos dois campos políticos. As fantasias de “reconstrução nacional”, bem como os sonhos de “restauração” da soberania e do desenvolvimento, ganham cada vez mais espaço na direita e na esquerda. Contudo, sem lograrem atingir sua meta ou objetivo, o neonacionalismo difuso racionaliza o emprego das violências de administração e autopreservação a todo custo em meio a um capitalismo de crise.


Se, como argumentamos, o capitalismo e sua matriz energética baseada na combustão emergem com a economia de guerra das armas de fogo, essas relações não são estáticas.  Por isso, é preciso atentarmos para o contexto e as condições sobre as quais se desdobra a queima patriarcal-racial e securitária do mundo.


III. Cassino verde num mundo em chamas


Colagem de Ion Fernandez de las Heras a partir de pintura de John Glover, "Monte Wellington e Hobart Town desde Kangaroo Point"
Colagem de Ion Fernandez de las Heras a partir de pintura de John Glover, "Monte Wellington e Hobart Town desde Kangaroo Point"

Com a terceira revolução industrial da microeletrônica, o capitalismo passou a dispensar mais trabalho vivo do que é capaz de absorver de maneira rentável. Como resultado, um número cada vez mais crescente de pessoas se tornam descartáveis do ponto de vista do Capital Global, sendo  administradas por mecanismos securitários diversos, em cuja ponta encontramos o cárcere e o extermínio. Por outro lado, o Capital passou a se refugiar nas estruturas financeiras sem a qual não consegue adiar os efeitos de sua crise estrutural, mantendo artificialmente a produção de mercadorias por meio da injeção de capital fictício que, sem conseguir reanimar um processo de acumulação real, tem conduzindo o mundo a um endividamento impagável e produzindo inúmeras bolhas, que em intervalos cada vez mais curto mostram sua ausência de conteúdo.


Curiosamente, é neste contexto de crise do Capital que emerge o chamado “desenvolvimento sustentável”. O que indica que “Desenvolvimento” já não tem qualquer vínculo com um processo de “integração social” por meio da absorção ampliada da força de trabalho, tal como sonha a esquerda nostálgica dos “anos de ouro” do capitalismo e para a quem a destruição do mundo parece ser um preço razoável a se pagar, caso ainda se possa gerar mais alguns postos de trabalho.  Desenvolvimento se tornou sinônimo de uma puro e simples racionalização do processo produtivo e logístico, aumentando e automatizando cada vez mais a “capacidade produtiva” da sociedade, ou seja, a ampliação do capital morto (máquinas e matérias-primas) em detrimento do capital vivo (trabalho). É o que se passa na articulação entre “transição energética” e “indústria 4.0”, que no Brasil tem sido financiada à crédito estatal por meio de programas como Nova Indústria e MOVER (Programa Mobilidade Verdade Inovação) [33]. Tais investimentos em capacidade produtiva, ao invés de resultarem num aumento da absorção da força de trabalho, preparam uma ampliação de sua descartabilidade, bem como das ruínas sociais “ociosas” do ponto de vista do Capital Global e suas “ilhas de produtividade”. [34] 


Mas enquanto a energia “humana” abstrata na forma do trabalho – a única capaz de produzir valor na metafísica-real do capital - é cada vez mais dispensada, o inverso se passa com a energia não-humana extraída por intermédio da economia de saque. Tal inversão ocorre, porque a redução do trabalho produtor de valor exige um aumento da produtividade material para cumprir o imperativo de acumulação ilimitada do capital e sua dominação baseada na normatividade do tempo abstrato: para uma mesma quantidade de valor, medida em unidade de tempo (anos, dias, horas, minutos etc.), é preciso uma quantidade cada vez maior de processamento material. O que, por sua vez, demanda um aumento do consumo global de energia não-humana, que pode coexistir com sua redução relativa por mercadoria produzida. [35] Este é o núcleo social do paradoxo de Jevons: o aumento da eficiência energética, prometida pela “indústria 4.0”, ao invés de promover uma redução do consumo de energia, resulta num crescimento de sua demanda. 


E é, sobretudo, num contexto de crise estrutural da capacidade de acumulação do Capital, que  seu núcleo miraculoso e delirante se expõe a luz do dia: diante da incapacidade do Capital de cumprir com seus próprios critérios, o consumo energético e o extrativismo são intensificados e acelerados como forma de manter o sistema social em funcionamento a todo custo, mesmo que isso resulte na extinção de múltiplas formas de vida e do próprio planeta.


Basta observarmos que, desde a emergência da fraseologia do desenvolvimento sustentável, o consumo de energia não diminuiu – a não ser em momentos de crises do capital que resultaram em paralisações das capacidades produtivas globais, como a crise de 2008 e a COVID-19. A “transição energética”, assim, se realiza não como a substituição de uma fonte de energia por outra, mas um acúmulo de fontes de energia e um aumento de sua produção: ao crescimento do consumo de combustíveis fósseis vem se somar o das “energias limpas”, cujos grandes empreendimentos deixam atrás de si terras devastadas. [36] Por sua vez, as mercadorias “verdes”, produzidas pela “transição energética”, inundam o mundo apoiadas num processo produtivo e concorrencial monstruoso. É o caso dos carros elétricos, cuja expansão da capacidade produtiva já tem dado sinais de uma superprodução, que pode ser apenas momentaneamente adiada por meio da exportação da sua capacidade excedente para o resto do mundo, como tem feito a China. [37]


Essa sinergia entre as diversas maneiras pelas quais a matéria e a terra, por intermédio de uma economia global de saques, são processadas e regurgitadas na grande fornalha miraculosa que é o Capital só pode se manter a partir da injeção abundante de capital fictício, seja por endividamento estatal, seja por meio de formações de bolhas especulativas as mais diversas. [38] Bolhas financeiras e economia de saque se pressupõe reciprocamente num contexto no qual a produção de valor está em crise. A “transição energética”, na qual se inscreve os processos de transição tecnológica das capacidades produtivas, é ela mesma transformada em uma série de ativos financeiros que se tornam um fim em si mesmo para o capital, independente da finalidade de tanta capacidade de produção de energia que tem sido construída e o potencial de se transformarem em ruínas. O que, por sua vez, alimenta a economia global de saque em torno dos “recursos estratégicos”, sobretudo em países da América Latina, África e Ásia. Em outros termos: o fim do mundo se tornou, ele próprio, um objeto de uma aposta no cassino global, no qual o capitalismo de crise se converteu. Nesse contexto, o setor financeiro começa a falar da necessidade de “precificar a crise climática”.

Diante disso, qualquer tentativa de parar a combustão do mundo sem desmontar e destruir a fornalha enfeitiçada que é o cispatriarcal-racial produtor de mercadorias acabará, cedo ou tarde, se mostrando apenas uma maneira, dentre outras, de participar desse grande jogo de aposta: a aposta na antecipação e queima, literalmente, do futuro por meio da especulação do limite ecológico do mundo.


Notas

  1. Essa intuição é de Robert Kurz, segundo o qual o capitalismo é a primeira forma de socialidade que dependen de uma base energética, e uma na qual a combustão é central. Ou seja, não se trata apenas de uma dependência restrita à determinadas atividades, mas uma sem a qual o próprio processo social guiado pelo valor não se manteria como um todo. Sobre isso, ver seu texto: O combustível da máquina mundial: vem aí uma nova crise do petróleo? (2004).

  2. A respeito disso, nos remetemos novamente à Kurz: “A moderna democracia do Ocidente é incapaz de ocultar o fato de ser herdeira da ditadura militar e armamentista do início da modernidade - e isso não só na esfera tecnológica, mas também em sua estrutura social. Sob a fina superfície dos rituais de votação e dos discursos políticos, encontramos o monstro de um aparato que administra e disciplina de forma continuada o cidadão aparentemente livre do Estado em nome da economia monetária total e da economia de guerra a ela vinculada até hoje. (…) As sociedades mais burocratizadas e militarizadas são ainda, do ponto de vista estrutural, as democracias ocidentais.” KURZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p.245.

  3. Como observou Charle Tilly “A guerra teceu a rede europeia de estados nacionais, e a preparação da guerra criou as estruturas internas dos estados situados dentro dessa rede.” Sobre isso, ver Coerção, Capital e Estados Europeus. São Paulo: EDUSP, 1996, p.133.

  4. A demanda crescente por soldados começou a ser realizada pelo recurso à contratação de empresários de guerra e seus mercenários até a formação de exércitos permanentes, gerando uma distinção entre a organização militar e civil que,  sem nunca deixarem de estarem implicadas, como bem mostra as guerras coloniais, começaram a ser progressivamente desfeita com as guerras totais. 

  5. Sobre o papel da economia da guerra das armas de fogo na constituição histórica da economia política e suas categorias, ver o livro de Robert Kurz, Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política. Lisboa: Antígona, 2014.

  6. Isso é algo que vale ser reforçado: a economia de guerra se constitui, desde o início, como um mercado mundial, como atesta seu vínculo intrínseco com a colonização e o tráfico trans-atlântico. Além disso, remontando às origens dos Estados modernos como bandos armados, grande parte dos exércitos e das marinhas dos Estados europeus eram formados a partir da contratação, no mercado internacional, de empresários da guerra (condottieres e corsários). Sobre isso, ver novamente TILLY, Charles. Coerção, Capital e Estados Europeus. op. cit.

  7. “Do mesmo modo que os ‘soldados’, como artesãos sanguinários da arma de fogo, foram os protótipos do assalariado moderno, assim também os comandantes de exército e “condottieri”, ‘multiplicadores de dinheiro’, foram os protótipos do empresariado moderno e de sua ‘prontidão ao risco’. Como livres empresários da morte, os ‘condottieri’ dependiam, porém, das grandes guerras, dos podares estatais centralizados e de sua capacidade de financiamento. A relação moderna de reciprocidade entre mercado e Estado tem aqui a sua origem”. Kurz, p.243.

  8. Sobre como a dissociação sexual constitui a forma política e econômica do valor, me remeto aos trabalhos de Roswitha Scholz, como seu ensaio seminal O Valor é o Homem (1992). Para uma introdução ao pensamento de Scholz, conf. COSTA, Agnes. O diagnóstico do colapso e a crítica do valor-cisão. In: No rastro do colapso: reflexões sobre a obra de Robert Kurz. Marxos Barreira, Maurílio Botelho (org.). Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2024. 

  9. Sobre a relação entre tráfico trans-atlântico, mercado mundial e a economia de guerra das armas de fogo, ver a tese de Bruno Lamas (2023) - As metamorfoses da escravatura moderna. Trabalho, autopropriedade e o problema da escravatura na história do capitalismo.

  10. Como observou Antônio Carlos de Souza Lima, em Um Grande Cerco de Paz (1995): a conquista colonial e seu poder tutelar é uma modalidade de guerra.

  11. Sobre a prática de engolfamento, me remeto aqui à formulação de Denise Ferreira da Silva, em Homo Modernus: para uma ideia global de raça (2022). No contexto aqui em questão, embora a economia global de guerra fosse guiada, fundamentalmente, por uma lógica de aniquilação, ela também envolvia práticas de engolfamento, isto é, um tipo de violência parcial “que engole (trans)forma sem destruir”, uma violência produtiva fundamental para garantir a extração de matérias-primas e capacidades produtivas para sustentar a indústria da guerra.

  12. Cabe lembrar que o salto qualitativo da formação da indústria em larga escala do século XIX consiste não tanto na simples inovação da máquina à vapor enquanto uma máquina particular, mas a formação da maquinaria como um sistema articulado de máquinas que se move a partir de energia não-humana e que dispensa, tendencialmente, a energia humana no processamento material das mercadorias, que se torna um “apêndice”. Essa relação diferencial e proporcionalmente inversa entre “energia humana” e “energia não-humana” caracteriza a dinâmica do Capital e a maneira como ele reage ao seu limite não só econômico, mas ecológico.

  13. Em outras palavras, a própria forma-Sujeito moderna, estruturalmente masculina e branca, emerge dependente da combustão energética. Para uma análise da relação histórica e lógica entre sujeito masculino branco, desejo autoritário e combustíveis fósseis, ver DAGGET, Cara New. Petromasculinidade: combustíveis fósseis e desejo autoritário. São Paulo: Editora Igrá Kniga, 2025.

  14. Ibidem, p.42.

  15. Sobre isso, ver FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Casa do Povo, 2019; BROWNE, Simone. Dark Matters: on the surveillance of blackness. Durham and London: Duke University Press, 2015.

  16.  Sobre isso, ver BARREIRA, Marcos. Dinâmica de escalada e fragmentação global: a luta pela ucrânica. In: Margem esquerda, 39, 2022.

  17.  Algo que não é recente, mas remonta ao “imperialismo de segurança” que se formou a partir dos anos 70, no contexto de uma crise de supreprodução estrutural da acumulação capitalista. Sobre isso, ver Robert Kurz.  A Guerra de Ordenamento Mundial: o fim da soberania e as metamorfoses do imperialismo na era da globalização, 2003.

  18. O correlato securitário desse desejo de acesso total é a criação, pela PL Antifacção, de um “banco nacional de dados” com base no DNA de pessoas que integram, promovem ou apoiam facções. Esse sonho de controle total sempre se concretiza a partir de uma seletividade antecipada por uma mapeamento biométrico racial. Sobre a relação entre capitalismo, subjugação racial e acesso, ver MOTEN, Fred; HARNEY, Stefano. Tudo incompleto. São Paulo: GLAC edições, 2023.

  19. O deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) chegou a dizer que a PL expressa o compromisso em “facilitar o trabalho dos produtores, apoiar a inovação e assegurar que o Brasil siga na vanguarda da transição energética”.  Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/10/20/compromisso-e-assegurar-transicao-energetica-diz-motta-sobre-pl-do-licenciamento-ambiental.htm.

  20. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/10/22/projeto-antifaccao-preve-ate-30-anos-de-prisao-para-crimes-de-organizacao-criminosa-e-seguira-nesta-quarta-para-o-planalto.ghtml 

  21. Veja, por exemplo, FÓRUM DE SEGURANÇA PÚBLICA. Cartografias das violências na região amazônica: relatório final, 2022.

  22. Em Pilhagem Social (2015), Franz Schandl, ao observar esse processo de privatização a partir da formação de bandos armados, que passam a exercer funções fiscais, de autoridade, bem como de serviços, comenta que: “Na qualidade de polo de violência, o bando pode funcionar internamente segundo regras que de fato lembram as de seu irmão mais velho, o monopólio da violência”. Disponível em: www.krisis.org/2015/pilhagem-social-mosaico-de-uma-desintegrao-feito-com-pedras-desordenadas/ 

  23. Além das milícias, que vendem de segurança à transporte e imóveis, temos os casos das prisões nas quais se combinam tanto a tericeirização ofocial da gestão por empresas, quanto a informal pelas facções. Ver, por exemplo, DIAS, Camila Nunes; Brito, Josiane da Silva. A privatização das prisões em duas perspectivas: preso como mercadoria e gestão compartilhada com comandos. Disponível em: https://www.comciencia.br/a-privatizacao-das-prisoes-em-duas-perspectivas-o-preso-como-mercadoria-e-a-gestao-compartilhada-com-os-comandos/ 

  24. A crise da estatalidade e da soberania, que se manifesta no estilhaçamento do monopólio da violência tem sido observado cada vez mais por diversas teorizações críticas contemporâneas.

  25. Em outro texto, Com todo vapor às ruínas: o aceleracionsimo econômico e securitário do Lula 3, busquei abordar a relação entre o PAC 3 e o PRONASCI 2, como dois programas que sintetizar a relação intrínseca entre os investimentos em infraestrutura do Capital Global e investimentos em securitização social. Disponível em: https://quilomboinvisivel.com/2023/10/11/com-todo-vapor-as-ruinas-o-aceleraciosnimo-economico-e-securitario-do-lula-3-parte-1/ 

  26. Kurz caracteriza a economia global de saque como uma “barbárie secundária”, no sentido que se trata de uma dinâmica que se forma e cresce à medida que avança o processo de crise da produção de valor, intensificando o recurso à violência armada como forma de realização da concorrência no quadro das relações jurídico-econômicas da forma valor em crise: “O que constitui o pano de fundo e aforça motriz da economia de saque (masculina) é a motivação do dinheiro e da concorrência, que já não pode ser exercida senão com recurso à violência”. KURZ, Rorbert. A Guerra de Ordenamento Mundial. op. cit., p.40

  27. Assim, não se trata tanto de uma força centrípeta que vai das periferias para o centro. Mas, ao contrário, de uma força centrífuga que parte do próprio centro, retornando na forma de uma ascensão política das milícias, reforçando e intensificando o processo de milicianização do Estado, ou de redução do Estado a uma organização criminosa entre outras. Sobre a relação entre Estado, milícia e economia de saque, ver BOTELHO, Maurílio. Economia de pilhagem: milícias, crise urbana e destruição ambiental. In: Geografias Periféricas: contribuições do PPGGEO/UFFRJ. Guilher Ribeiro et al. (Org.) Porto Alegre, RS: Letra1, 2023.

  28. Para uma análise das UPP’s e como o racial opera na legitimação da violência de autopreservação do Estado diante de determinados corpos e territórios, ver FERREIRA DA SILVA, Denise. Ninguém: direito, racialidade e violência. In: Meritum. Belo Horizonte, vol. 9, n.1, p.67-117, 2014

  29. Lula sanciona lei proposta por Moro no combate ao crime organizado. In: UOL, São Paulo, 30/10/2025.

  30. Sobre a PEC da Segurança Pública, conf. a entrevista da Gabriel Feltran para o Instituto Humanitas UNISINOS. Disponível em: https://ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/647437-pec-da-seguranca-publica-em-vez-de-solucionar-questoes-de-fundo-federaliza-os-problemas-das-policias-entrevista-especial-com-gabriel-feltran 

  31. Sem poder me aprofundar aqui sobre essa questão, se trataria de conduzir uma análise de como aquilo que Denise Ferreira da Silva chamou de “dialética racial”, a lógica viciosa da racialidade pela qual pessoas negras se tornam causa e efeito de suas própria violência, opera nas condições de crise fundamental da acumulação capitalista.

  32. Não se trata, assim, tanto de “anexação” de tais territórios e “integração” de seus habitantes, por meio do trabalho, no interior de uma coesa unidade econômica e política nacional, mas de garantir a “segurança” do acesso à “reservas estratégicas de matérias-primas” para as ilhas produtivas do Capital global e dos seus sujeitos masculinos concorrenciais. Isso caracteriza uma mudanças das guerras contemporâneas – dentre as quais do colonialismo de crise - no controle dos territórios.

  33. A maioria dos investimentos da chama “Nova Indústria Brasileira” é voltado para a intensificação da mecanização e digitalização das cadeias agroindustriais e para a inovação tecnológica das fábricas já existentes, aumentando a digitalização e o emprego de robôs. Em termos globais, e embora não seja um processo recente, a intensificação pós-pandêmica da transição tecnológica dos processo produtivos, impulsionada pela concorrência mundial, já apresenta, por exemplo, desemprego e fechamento de unidades de produção no setor automotivo. Cf. https://www.terra.com.br/mobilidade/carros/tempestade-eletrica-cortes-de-empregos-abalam-gigantes-da-industria-automotiva,82f2ada7342b59d6eb237be56b7afd376csntbx9.html. Para uma análise da superacumulação no Brasil, ver BOTELHO, Maurílio. Superacumulação e colapso do capitalismo no Brasil em retrospectiva. In: Geografares, 28, 2019. 

  34. Ao invés de uma “desglobalização”, parece que o que se passa é um aprofundamento da “globalização de crise”, na qual o Capital Global passa a operar por meio de “ilhas de produtividade”. Não só muitas cadeias produtivas ainda se encontram integradas, como mostra a recente “crise dos microchips” da indústria automotiva. Mas também porque a “verticalizando da produção”, pela qual as empresas buscam centralizar e internalizar a cadeia produtiva e suas etapas, se mantêm imediata globalizadas, ao invés de participarem de uma restauração de uma economia nacional coesa.

  35. Claus Peter Ortlieb tratou da relação contraditória entre produção do valor, produtividade material e ecologia. Ao invés de uma “desglobalização”, parece que o que se passa é um aprofundamento da “globalização de crise”, na qual o Capital Global passa a operar por meio de “ilhas de produtividade”. Não só muitas cadeias produtivas ainda se encontram integradas, como mostra a recente “crise dos microchips” da indústria automotiva. Mas também porque a “verticalizando da produção”, pela qual as empresas buscam centralizar e internalizar a cadeia produtiva e suas etapas, se mantêm imediata globalizadas, ao invés de participarem de uma restauração de uma economia nacional coesa.

    diversos de seus textos. Sugerimos aqui Uma contradição entre matéria e forma (2008) e Bater contra a parede (2013).

  36. Segundo relatório da Global Oil & Gas Exit List (Gogel), em 2023 a produção de petróleo e gás bateu recordes, ultrapassando níveis de produção pré-covid-19. Os subsídios governamentais à indústria dos combustíveis fósseis, em 2023, foi de cerca de 7 trilhões de dólares. No Brasil, o setor recebe 82% do total dos subsídios, que são cada vez maiores. Para os dados citados cf. Marques, Luiz. COP29, a COP Zumbi. Faz ainda algum sentido a COP30? In: Jornal da Unicamp, 29/11/2024. Disponível em: https://jornal.unicamp.br/artigo/2024/11/28/luiz-marques/cop29-a-cop-zumbi-faz-ainda-algum-sentido-a-cop30/, acesso em 16 jul de 2025.

  37. Por volta de 2019, a China tinha mais de 500 marcas produtoras de carros elétricos, esse número foi reduzido para menos de 200. Essa alta capacidade produtiva da China tem intensificado a competição global pelo mercado mundial de carros elétricos, impulsionando as transições tecnológicas de diversas outras marcas globais, como tem ocorrido no Brasil. Sobre a superprodução de carros elétricos na China, ver China is sending its world-beating auto industry into a tailspin. In: Reuters. Disponível em: https://www.reuters.com/investigations/china-is-sending-its-world-beating-auto-industry-into-tailspin-2025-09-17/ 

  38. Para ficar no exemplo da combustão fóssil,  segundo o  relatório Banking on Climate Chaos, em 2024 – ano que o mundo ultrapassou a massa crítica de 1,5ºC de aquecimento global - os bancos aumentaram significativamente o investimento em combustíveis fósseis. O papel que os bancos desempenham no financiamento da queima do mundo, sendo 90% por via da emissão de ações e títulos e empréstimos corporativos, mostra o papel do capital fictício e, portanto, o caráter especulativo da queima do mundo. Para os dados do relatório, cf. Banking on Climate Chaos: fossil fuel finance report 2025. Disponível em: bankingonclimatechaos.org. Acesso em 16 jul 2025.

 
 
 
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