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DIÁRIOS DE QUARENTENA | 14 a 18 de abril



Quando estoura uma guerra as pessoas dizem: "Isso não pode durar, é muito estúpido". E não resta dúvidas de que uma guerra seja de fato muito estúpida, mas isso não a impede de durar. A estupidez sempre insiste, é possível se dar conta disso quando não se pensa só em si mesmo. Nossos concidadãos, a este respeito, eram como todo mundo; pensavam em si mesmos; ou, dito de outro jeito, eram humanidade: não acreditavam nas pragas. A praga não foi feita à medida do homem e portanto o homem diz a si mesmo que a praga é irreal, um sonho ruim que tem que passar. Mas nem sempre passa, e de sonho ruim em sonho ruim, são os homens que passam... Albert Camus, A peste

A máquina de exploração global ameaça colapsar se for detida por muito tempo. O capital, como relação social de produção, é precisamente a compulsão do dinheiro que deve se converter em mais dinheiro à qualquer preço: sejam milhões de hectares ardendo em fogo ao longo de meses, ou milhões de vidas dos economicamente marginalizados e proletárixs compelidos a voltar ao trabalho em meio à ameaça de morte de uma pandemia.


É uma necessidade vital encontrar formas de reprodução social que estejam além dessa socialização totalitária.




14 de abril / O anjo exterminador

Queiramos ou não, estamos presos interna e externamente pelo trabalho. Nesse sentido, o medo ou o ódio que a aglomeração e o confinamento despertam não são uma novidade da quarentena – mas sim, parte da rotina a qual temos sido lenta e sistematicamente condicionados desde pequenos: paralisar-se, atacar ou correr.

O anjo exterminador


O amor tem sido consistentemente relegado pela cultura secular, científica e racional em que vivemos. Não a palavra, da onde ainda se tiram proveitos bastante rentáveis através da indústria cultural e das seitas religiosas, mas seu conteúdo mais profundo.


O amor é o vínculo, o princípio de mediação entre o ser perfeito e o imperfeito, entre o ser pecaminoso e o puro, entre o geral e o individual. O amo é o próprio Deus e fora do amor não há Deus. O amor faz do homem um Deus e converte Deus em um homem. O amor fortifica o débil e debilita o forte, humilha o altivo e eleva o humilde, espiritualiza a matéria e materializa o espírito. O amor é a unidade verdadeira entre o Deus e o homem, entre o espírito e a natureza. No amor, a natureza ordinária se torna espírito e o espírito nobre se torna natureza.[1]


Nenhum programa político, por mais revolucionário que seja, o considera; para a ciência oficial, por mais experimental que se declare, não passa de uma charada química a ser decifrada. Ainda assim, todos nós seres humanos vivemos o amor como uma experiência definitiva. Ao mesmo tempo e sem importar as diferenças idiomáticas ou culturais, somos capazes de reconhecer os estragos da ausência de amor, seja próprio ou ao entorno – que, a rigor, são expressões distintas de um mesmo fenômeno. Quem nunca se encontrou inexoravelmente vinculado a um amor vicioso, autodestrutivo ou imposto? Que tipo de “amor” é esse?


As culturas indígenas ao redor do mundo nos ensinam, cada uma à sua maneira, cada uma com seus próprios símbolos e mitos, que nossa atual tragédia se radica numa falta de amor pela natureza. Vamos nos ater um momento a observar como reage o ego (patriarcal) diante dessa afirmação, como racionaliza. Consideramos então a observação de Marx sobre este problema:


a alienação individual tem origem na alienação das pessoas da natureza[2]


Com a preponderância incessantemente crescente da população urbana, acumulada em grandes centros pela produção capitalista, esta por um lado acumula a força motriz histórica da sociedade, e por outro perturba o metabolismo entre o homem e a terra, isso é, o retorno ao solo daqueles elementos que o constituem e que foram consumidos pelo homem sob a forma de alimentos e vestimenta, retorno que é a condição natural eterna da fertilidade permanente do solo. Com isso destrói, ao mesmo tempo, a saúde física dos operários urbanos e a vida intelectual dos trabalhadores rurais.[3]


Quem tem a sorte de dizer que verdadeiramente ama aquilo que faz em sua vida cotidiana, quer dizer, aquilo que se é? O que a nossa cultura cultiva (apesar da redundância) é o amor pelas coisas, e em particular pelo sucesso e pelo dinheiro. Os adultos perguntam quantos anos você tem e quanto dinheiro você ganha, e não se você gosta de borboletas. Por isso, entre as poucas coisas que nos são permitidas a amar nesse mundo, a que se promove com maior entusiasmo é o “amor pelo trabalho”, cuja outra face se revela no “trabalho do amor”[4]. Na realidade, o trabalho pode ser muitas coisas, mas não todas ao mesmo tempo.


Ainda que o metabolismo incessante entre os humanos e a natureza penetre toda a história da humanidade, uma necessidade eterna que não pode ser abolida, Marx enfatiza que a execução concreta do trabalho humano adquire várias “formas” econômicas em cada estado do desenvolvimento social e, em consequência, o conteúdo do metabolismo trans-histórico entre os seres humanos e a natureza varia significativamente.[5]


De um tempo a esta parte, o trabalho criativo – que resgatando a Marx e às tradições indígenas poderíamos chamar de uma conexão amorosa ou não alienada com o entorno – tem sido marginalizado progressivamente em função de priorizar mais e mais o trabalho por obrigação, em que o criativo (se tem a sorte de seguir existindo) é subordinado à produtividade, à eficiência, etc. Esse processo se pode descrever também como o processo de globalização do salário.


O século XX foi o período de realização dessa empresa que vinha sendo incubada há séculos. Hoje, as flutuações na pseudo vitalidade do sistema salarial afetam a vida do organismo planetário inteiro. Contrariamente, o trabalho como atividade criativa e produtora de vida ocupa um lugar cada vez mais restrito. As prioridades humanas no mundo do trabalho assalariado, como evidenciou esta situação de escassez dos insumos médicos, estão tragicamente invertidas e estritamente determinadas pelo lucro e a exploração.


Queiramos ou não, estamos presos interna e externamente pelo trabalho. Nesse sentido, o medo ou o ódio que a aglomeração e o confinamento despertam não são uma novidade da quarentena, mas sim parte da rotina a qual temos sido lenta e sistematicamente condicionados desde pequenos: paralisar-se, atacar ou correr.


Ainda assim, por mais familiar que possa ser a situação, os confinamentos nunca são fáceis, talvez justamente porque vêm delineados pela alienação. Podemos estar sozinhos ou acompanhados; se o ego não rebate em outras pessoas, encontra uma maneira de rebater nas coisas ou nas paredes imaginárias que a mente levanta.

Podemos aprender a tomar o confinamento como um deserto?[6] Como dizíamos, há quem tenha sorte de poder fazê-lo. A viagem humana do trabalho passou por várias etapas, umas mais secas que outras, e sempre que possível, se deverá fazer da temporada um momento de colheita. As vezes esse despertar do trabalho criativo toma a forma de um assalto global à sociedade de classes, as vezes toma a forma de realizar um sonho pessoal que se oferece aos demais, as vezes de aceitar os medos e as alienações para se mudar de pele. Como dizia outro alemão, “a introspecção é o primeiro passo para a transformação, já que, ao se conhecer a si mesmo, ninguém pode seguir sendo o mesmo”.


RB / 2&3Dorm

14 de abril

[1] Ver A essência do cristianismo, de Ludwig Feuerbach. [2] « De acordo com a interpretação standart, existem quatro tipos de alienação, começando com Marx assinalando a realidade do sistema de propriedade privada, na qual a “realização do trabalho” aparece como “desrealização do trabalhador” e a “objetivação” do trabalho como “perda do objeto”. O produto do trabalho, no qual os trabalhadores objetivam sua própria atividade, não aparece como seu próprio produto. Também não satisfaz suas necessidades, nem confirma suas habilidades criativas. Ao contrário, aparece como um objeto estranho para os trabalhadores, como um poder independente dos produtores: “quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando (auserbeiteit), tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (fremd) que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior [e] tanto menos [o trabalhador] pertence a si próprio. É do mesmo modo na religião. Quanto mais o homem põe em Deus, tanto menos ele retém de si mesmo. O trabalhador encerra sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao objeto. Assim sendo, quanto maior for a atividade, tanto mais sem-objeto é o trabalhador”». Ver Karl Marx’s Ecosocialism de Kohei Saito disponível em sua versão em inglês aqui. Uma versão em castelhano está sendo preparada e deve ser publicada em breve. [NdT 1: parece que uma versão brasileira também está prevista para 2020]. Também consultar a seção «Trabalho estranhado » do primeiro manuscrito dos conhecidos e equivocadamente chamados Manuscritos econômicos filosóficos de K. Marx. [NdT 2: a tradução brasileira usada aqui é de Jesus Ranieri] [3] Ver O capital, livro 1, de K.Marx [4] “Nos mulheres estamos obrigadas a trabalhar para o capital através dos indivíduos que “amamos”. É por isso que nosso «amor » finalmente reafirma sua – e nossa – negação como indivíduos, sua – e nossa – definição como, precisamente, mercadoria força de trabalho. Romper, interromper esse fluxo de amor que tem a macabra fachada da exploração é agora a única alternativa possível para se reproduzir e reproduzir a outros como indivíduos”. Ver El arcano de la reprodución. Amas de casa, prostitutas, obreros y capital de Leopoldina Fortunati, disponível aqui [5] Ver Karl Marx’s Ecosocialism de Kohei Saito. [6] “Nesse sentido, o deserto é esse lugar que através das meditações e das provas, se forma duramente o espírito forte de um novo começo. Hoje temos a possibilidade de não repetir um ritual como se tratasse de um parênteses finalmente insignificante para nós e para o mundo – e quanto aos rituais desgastados e inúteis, deixem-me dizê-los que somos grandes experts – mas para rasgar definitivamente o tecido da Historia que nos detém como prisioneiros de um sonho maléfico. Ir além, como repetia um velho sábio. Neste momento, ir além significa ir muito mais longe do que a pandemia, ir todos juntos a outro plano da existência”. Ver: Carta aos amigos do deserto, de Marcello Tari, publicado no Brasil pela GLAC Edições e disponível aqui.

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