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DIÁRIOS DE QUARENTENA | 21 a 28 de março


They say that history repeats itself. But history is only his story. You haven’t heard my story yet. My story is different from his story. My story is not part of history, because, history repeats itself, but my story is endless. It never repeats itself. Why should it? A sunset does not repeat itself. Neither does the sunrise. Nature never repeats itself. Why should I repeat myself? (1) Sun Ra, A joyful noise

A pandemia e sua administração feita pelos Estados do mundo nos revela, mais uma vez, o estado de catástrofe engendrado por uma sociedade organizada ao entorno do dinheiro, do trabalho assalariado, do "trabalho do amor" (não-trabalho doméstico e de cuidados) e da produção de mercadorias. Mas todo momento de decomposição pode ser visto como uma possibilidade de ajuste e condição para uma nova experimentação. O órgão doente pede atenção, não morfina.




21 de março / O começo de uma época


Em uma civilização acostumada com a guerra em todas as suas formas, onde as transformações climáticas são um problema a ser herdado pelas próximas gerações, a pandemia chega como um choque que nos lembra abrupta e violentamente de não deixar para amanhã o que podemos fazer hoje.

O capitalismo não pode se dar ao luxo de parar a máquina. Isso é claro para os governantes, economistas e job creators ao redor do mundo: o seu contínuo funcionamento depende da ordem de coisas que os privilegia. Mas o homem comum também tem dificuldade de pensar, ou melhor, teme pensar, que realmente algo assim possa ocorrer: que tipo de mundo seria esse? Como é possível uma vida sem salário?

Este é o dilema mais lancinante que a pandemia impõe sobre nossa vida cotidiana, como um golpe seco sobre a mesa: economia ou vida. Há séculos essa contradição assombra a humanidade, mas hoje, pela primeira vez na história, se apresenta para nós como um terremoto em escala planetária. Estamos sendo testemunhas de uma profunda mudança, quais são as possibilidades da humanidade se tornar protagonista dessa mudança, pondo - em primeiro lugar - fim à inércia que nos levou ao limite? [1]

Os experts apuram os cálculos científicos e afiam suas penas para o próximo best seller, mas a situação não admite projeções simplistas, nem especulações elaboradas, tudo está para ser visto. Talvez, essa seja uma das razões dessa crise aparecer como a mais catastrófica do último século: pela primeira vez a infraestrutura do sistema se vê ameaçada de maneira global e simultânea.

Esta gripe pode estar matando menos pessoas ao redor do mundo em três meses do que uma campanha militar na Síria em algumas semanas, mas seu impacto expõe em tempo real a incapacidade dos governos, inclusive os mais ricos e poderosos, para salvar vidas sem colocar em risco a máquina econômica que sustenta o mundo em sua lenta agonia. Essa agonia já não é mais uma realidade alheia para ninguém. Em uma civilização acostumada à guerra em todas suas formas, onde a mudança climática é um problema herdado para as gerações seguintes, a pandemia chega como um choque, que de maneira abrupta e violenta nos lembra de não deixar para o amanhã o que podemos fazer hoje.


É evidente que o verdadeiro problema não é a quantidade de vidas que esta crise pode cobrar, caso contrário, não se explica que nenhum dos genocídios do terceiro mundo nos últimos 30 anos tenha causado tanto horror e pânico globalizado quanto hoje. Além do mais, na China as contas estão confusas. Primeiro, observou-se que era possível, devido à drástica redução dos níveis de CO2 no país, que a pandemia tenha salvado indiretamente mais vidas do que causou diretamente. Mas logo se falou também dos números de 250.000 mortes por acidentes de trânsito por ano[2], que já havia sido consideravelmente reduzido graças à diminuição no tráfego. A estes números devem ser adicionados aqueles que não morreram em acidentes de trabalho, etc. Entrar na matemática dos obituários, em qualquer caso, é desnecessário.

O que resulta de enigmático dessa repentina mas anunciada crise mundial é que todo um modo de vida inteiro pode colapsar, mesmo que a sua base material não tenha sido afetada. Não deixa de surpreender, por exemplo, o fato de que ainda toda infraestrutura de deslocamentos aéreos esteja praticamente intacta – todos os aeroportos e aviões funcionando, toda a tecnologia e logística disponível, etc. – basta apenas algumas semanas de interrupção de fluxos normais de passageiros para que todo o sistema esteja a ponto de quebrar. Essa é a natureza gasosa e efêmera da existência no mercado de ações ao qual o Ocidente nos condenou, colocando o dinheiro no centro de toda a vida; um mundo em que tudo que é sólido se desmancha no ar[3].

Com impotência e um profundo sentimento de terem sidos roubados, xs reféns da AFP[4] chilenas hoje estão vendo suas poupanças da vida se evaporarem no ar digital. O verdadeiro crime não é roubar um banco, mas fundá-lo. O que é a inflação? Como se regula a produção de dinheiro? O que é valor? O que é uma mercadoria? Esses são os tipos de perguntas que funcionam como base para qualquer pesquisa sobre a volatilidade dos mercados. Porém, nenhuma explicação fará com que os fundos dxs pensionadxs voltem a ficar cheios. E, mais importante ainda, nenhuma riqueza virtual se compara com a riqueza concreta de uma vida digna e livre. Como foi enfatizado há algum tempo, a questão não é a de interpretar o mundo, mas transforma-lo.

Os mesmos CEOs que até recentemente declararam interdição ao Estado, agora recuam com o rabo entre as pernas: somente a estrutura política e militar que gestionam os governos do mundo, pode manter flutuando o seu navio. Estas cenas nos recordam que Capital e Estado são duas caras da mesma moeda patriarcal.

Mas a situação já não é mais suficiente. Durante séculos e séculos de confusão e miséria, de violência naturalizada e de formas de produção social fundamentalmente autodestrutivas, a tripulação possui mais esperança nos destroços do que em qualquer uma das ofertas engenhosas com as quais os capitães tentam manter sua empresa flutuando. A insurreição da vida cotidiana se vislumbra em cada vez mais partes do mundo, como uma única via de escape da forca. Transformar o inconsciente em consciente, diriam os surrealistas junto da psicanálise.


A incompatibilidade entre economia e vida hoje é flagrante, somente a neurose a mantém fora de vista. Mas como lidar com essa neurose ofuscante em um contexto de pânico e terror que gerados pelos meios de comunicação e a sociedade de controle? No contexto de um “isolamento social” programado para inocular novas cepas de TICs e TOCs que surgirão quando terminar a quarentena e irão nos acompanhar até a morte? Após tudo, sabemos que a vida desdobrada e projetada na internet não é mais do que uma forma sofisticada do fetichismo da mercadoria, de nossa uni-dimensionalidade. Ficar em casa é uma opção saudável para quem a casa é um lugar seguro, ou para quem simplesmente tem casa. Quem se encontra dentro dessa minoria?

Superar o trauma que significa a experiência dessa pandemia não depende da eficiência e da boa vontade dos governantes, que hoje vemos com impotência à maneira que nos crucificam: para eles é mais conveniente fabricar armas do que respiradores mecânicos.

O vírus nos obriga a manter distância entre os corpos para nos mantermos com vida. Mas essa mesma distância nos faz recordar na prática que são as relações sociais reais, o apoio mútuo, a solidariedade e a consciente interação com o nosso entorno que pode nos salvar dessa catástrofe. Mais uma vez temos a vida adiante, nos dando a oportunidade de sermos humildes e começar de novo.

RB / 2&3Dorm

21 de Março 2020

[1] Assim como existem cientistas que negam o aquecimento global e outros que não, enquanto alguns cientistas se apressaram em indicar os pangolins e os morcegos como causadores do vírus, outros asseguram que a verdadeira causa é o ataque humano ao meio ambiente e seus efeitos nessas espécies: https://www.thenation.com/article/environment/coronavirus-habitat-loss/


[2] Segundo a OMS em 2018 se registraram aproximadamente 256.000 mortes relacionadas a acidentes de transito.


[3] A famosa descrição feita por Marx sobre a sociedade da mercadoria, e que Marshall Berman transformou no título da história de um outro vírus contemporâneo: a gentrificação.


[4] Uma das muitas joias do experimento neoliberal no Chile, um sistema de pensões cujo afilhadxs, recrutados a força pelo Estado, colocam suas poupanças a disposição dos mercenários para especulação financeira.

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