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EXERCICIO IMAGINATIVO DE OUTRO MUNDO POSSIVEL




Difundimos o ensaio escrito e enviado por Alberto S., imaginando paisagens de um outro mundo desejável :



OUTRO MUNDO É POSSÍVEL

Esboço de uma teoria política pós-capitalista


Olhem como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam. - Mateus 6:28

Uma nuvem negra se aproxima e nos anuvia a visão; parece não termos para onde correr. A confusão e o desespero brotam nas mentes mais serenas. Os líderes mundiais, atados aos interesses de seus financiadores eleitorais, se mostram incapazes de coordenar uma ação conjunta para evitar a catástrofe. As grandes corporações se apresentam muito mais preocupadas com o lucro do que com vidas humanas, medindo o prejuízo futuro, enquanto não existe a certeza de que haverá amanhã. E nós todos observamos, paralisados e impotentes, na frente da TV ou pela internet, as decisões equivocadas dos governantes, o sofrimento dos semelhantes, cenas macabras do mundo no qual vivemos, mas que nele nos foi vetado o poder de intervir. Porém, os de visão aguçada, que conseguem olhar por trás dessa nuvem, enxergam uma visão do próprio paraíso. Essa visão, ainda imperfeita, corre o risco de se desfazer caso a nuvem fique ainda mais densa. Um mundo melhor não só é possível, como é urgente. Uma transformação política e econômica radical nunca foi tão necessária na história humana. Desta vez não diz respeito a povos e etnias; diz respeito a todos os seres humanos do planeta Terra. Devemos finalmente escolher entre uma sociedade predatória, na qual as pessoas são impotentes e descartáveis, meros espectadores de um filme de terror antes do fim do mundo; e uma sociedade que dê efetivamente poder para as pessoas decidirem suas próprias vidas e acerca da vida do planeta. A decisão errada neste momento pode nos custar muito caro. Pode custar o fim da espécie.


Com a destruição do equilíbrio natural nativo para a expansão de fronteiras agrícolas e de extração de matéria-prima, além do surgimento de zonas industriais superpopulosas próximas a essas áreas, acontecem duas coisas: 1) As populações tradicionais, humanas e animais, são deslocadas para as margens das fronteiras agrícolas, abandonando um metabolismo tradicional e estável com a natureza (alimentação, por exemplo) adquirido nas áreas antigas, e tendo que criar novos metabolismos em novas regiões, ficando passíveis de contrair doenças novas, inexistentes nos metabolismos anteriores. 2) Essas novas doenças adquirem maior possibilidade de sofrerem mutações quando em contato com vastas populações humanas, organizadas em grandes cidades cada vez mais próximas das fronteiras agrícolas. O Estado é o grande articulador desse processo, criando nas áreas invadidas toda a infraestrutura necessária para a chegada do mercado predatório. Essa é só mais uma evidência de que o ser humano não prevê todas as variáveis de sua interação destrutiva com a natureza. Logo, não possui domínio algum sobre o mundo natural, e age irresponsavelmente em prol de "aumentar a produção" a qualquer custo. Quando dizemos que não se deve mais derrubar nenhuma árvore, não é brincadeira. Aos que não dão valor ao meio em que habitam e que lhes proporciona a sobrevivência, para que tratem outros seres humanos da mesma forma basta um curto salto. Se a relação do ser humano com a natureza não mudar completamente, o vírus atual pode não ser o último.


Somente uma civilização com falhas graves no uso da razão pode destruir a natureza para produzir cada vez mais, com a desculpa de alimentar a população crescente e fornecer conforto para todos; no entanto, muitos alimentos apodrecem nas feiras e supermercados, servindo ao equilíbrio de oferta e demanda, enquanto poderiam alimentar milhões de famintos, e os produtos tecnológicos vão ao mercado para logo serem descartados, sem que haja séria preocupação com o que será deles após o descarte. Estamos violentamente extraindo metais da terra, derrubando árvores, queimando petróleo, enchendo mar e terra de plástico, aumentando pastos e plantações de monocultura, desperdiçando água com sistemas de irrigação ineficientes, cobrindo grandes regiões com agrotóxicos, e ainda assim não erradicamos a fome do mundo. A caridade é uma qualidade muito admirável do ser humano; no entanto, sozinha ela não resolve nada. O liberalismo, a social-democracia, o nacional-desenvolvimentismo e o socialismo centralista, as ditas tendências progressistas do jogo político, caminham de mãos dadas rumo ao abismo. Nas democracias representativas, a cobra do fascismo não encontra muita dificuldade para botar seus ovos. Apesar das diferenças, todos esses modelos falham exatamente pelo que possuem de semelhante: o processo de trabalho obrigatório e produção incessante de mercadorias. Os erros, infelizmente, estão nas estruturas da sociedade, arraigados no âmago de todas as tendências políticas de viés institucional.


A produção de mercadorias é o único elo entre todos os países do planeta. Capitalistas ou socialistas, todas as nações almejam aumentar o próprio PIB. Tudo é pensado em questão de número. A imensa maioria das pessoas trabalha por 8 horas no dia ou mais, ajudando as máquinas a confeccionar produtos cuja matéria-prima vem do outro lado do mundo. Ao chegar em casa, os trabalhadores, cujas energias foram sugadas na fábrica, no campo, na sala de aula ou no comércio, raramente se empenham em estudar ou discutir política; na maioria das vezes, basta uma série de conteúdo fácil na TV ou um jogo de futebol, uma cerveja, um cigarro, um calmante e pronto: caem no sono para trabalhar no dia seguinte. No caso das trabalhadoras, a camada mais prejudicada nesse processo, acumula-se ainda o trabalho solo de cuidar da casa e dos filhos. Por fim trabalha-se muito, preocupa-se com o trabalho e descansa-se para o trabalho. O trabalho domina quase que a totalidade do tempo das pessoas. Resta muito pouco para elas e para as relações autênticas entre vizinhos, amigos e familiares. Nesse caso o trabalho, da forma como está organizado atualmente, está destruindo famílias e afastando as pessoas umas das outras. O plano parece ser transformar a nós todos em autômatos, pessoas feitas para o trabalho específico e incapazes de se organizar localmente. Infelizmente, o plano tem dado certo.


Esse panorama é assustador, ainda mais quando pensamos que a tecnologia avançada poderia substituir vários processos do trabalho, e nos fazer trabalhar menos. Em vez disso, cada revolução tecnológica gera um exército de desempregados, e os que têm emprego não estão em situação de abandoná-los para dedicarem-se integralmente ao cultivo de si próprios.


O modo de produção atual forma pessoas pela metade. Elas sabem tecnicamente o que fazer no trabalho, mas delas é retirado o tempo para seus próprios interesses. O apelo midiático das propagandas das grandes corporações ajudam a homogeneizar o consumo no mundo todo. As mesmas marcas de roupas vestem as populações da China ao Chile, passando pela África, que também comem o mesmo hambúrguer e bebem o mesmo refrigerante. As pessoas, sem tempo para exercerem a própria liberdade, seja de trabalho, de pensamento, de consumo, de trânsito ou de decisão, delegam seu poder de intervir na sociedade a líderes pouco confiáveis. Esses líderes, mesmo os mais bem-intencionados, não conseguem fugir do controle das grandes corporações que dominam o Estado, o processo de produção de mercadorias, o mercado financeiro, o tempo dos trabalhadores e o próprio imaginário do que seria uma sociedade melhor. Além disso, a aliança estatal-corporativa não titubeia em fazer uso das armas para reprimir revoltas por justiça popular e garantir seus interesses nefastos, além de massacres diários contra a população pobre. Essa relação do Estado com as grandes corporações é indissolúvel; para derrubar um, é preciso derrubar o outro.


Em meio à crise que nos assola, as corporações, por meio dos Estados, ordenam a seus empregados que trabalhem. Contam vidas em números, mero cálculo econômico. A religião da economia do fluxo internacional de mercadorias exige sacrifícios humanos: do tempo, do pensamento, da vida. O Deus Mercado é um deus da morte. A pulsão de sobrevivência da sociedade globalizada pelo dinheiro, em todas as esferas refém da produção incessante de mercadorias, é o impulso principal que ameaça a nossa espécie.


Esse diagnóstico político e econômico, ainda que sombrio, não é novo. Muitos filósofos, cientistas e religiosos já alertaram para as consequências. Políticos do status quo, das mais diversas vertentes, realizam diariamente espetáculos de malabarismos teóricos para tentar nos convencer de que seus sistemas são os mais eficazes, os melhores que a humanidade pode viver, e que a miséria física e intelectual que acomete a população mundial é fruto da sabotagem da oposição ou de incapacidade/desobediência individual. Muitos, desesperados por não verem saída no jogo político como se apresenta, tornam-se fanáticos e extremistas, incapazes de enxergar o fato de estarem abrindo mão de si mesmos e depositando todas as esperanças em políticos que, apesar das diferenças, flutuam sobre uma mesma estrutura social. O ponto positivo é que muitas pessoas ainda não naturalizaram esse processo de desumanização empreendido pelo trabalho da forma como se organiza hoje. Há uma cobrança e uma esperança internacionalmente disseminada por sistemas alternativos de política e de economia, expressas por inúmeras manifestações anticapitalistas e anti-Estado ao redor do globo. A verdade é que poucos estão felizes com os rumos da sociedade, e mais raros ainda são os enxergam no horizonte organizações sociais diferentes das que se apresentam no debate público atual. Muito se empenhou em negar as estruturas do capitalismo e do socialismo, mas pouco se fez para apresentar alternativas concretas. Mas elas existem, e precisam ser descritas e semeadas. Após muitos estudos, meditações e experiências práticas, estamos começando a ver formas alternativas de sociabilidade e de divisão do poder. Essas formas absolutamente novas são a visão do paraíso por trás da nuvem densa.


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Um indivíduo plenamente livre é aquele que possui poder de decidir sobre seu corpo, seu trabalho, seu pensamento, sua religião, seu modo de vida e que seja capaz de intervir na sociedade em que vive. Essa liberdade nos é impossibilitada, tanto pelo trabalho obrigatório quanto pelas armas do Estado. A fórmula de dominar um saber técnico e obedecer a um superior nos é inculcada desde a escola, sendo muito fortalecida nas relações de trabalho da fábrica, do comércio e da segurança. Ora, para deixarmos de delegar o poder a outrem, é preciso que todos sejam políticos. Para que todos sejam políticos, se faz necessária, primeiramente, a diminuição brusca das horas de trabalho. A tecnologia, nesse caso, não deve servir aos interesses das grandes corporações, que mantém exércitos de desempregados para manter baixos os salários dos empregados, e sim ao conforto da maioria das pessoas e à gradual substituição do trabalho humano pela maquinaria avançada. Somente trabalhando pouco é que podemos nos concentrar em fazer política efetivamente. Em vez de participar de eleições inúteis – alguns governos matam mais do que outros, mas todos matam –, cada um deve ser senhor de si. No entanto, historicamente vivemos em comunidade. Para contemplar os interesses e aspirações de todas as pessoas de uma comunidade, é preciso inverter a pirâmide do poder. Atualmente, poucos mandam e muitos devem obedecer. Há uma divisão entre sociedade civil e Estado, na qual o Estado, junto das corporações, reina soberano perante a sociedade civil, que observa imóvel os absurdos perpetrados pelos que concentram o poder e a renda. Essa divisão precisa ser destruída. Todas as pessoas devem ter o poder de decidir pela própria vida, e poder de intervir democraticamente nos assuntos da comunidade. Somente uma sociedade de indivíduos capazes de pensar por si mesmos, com individualidades fortes e destacadas, em constante diferenciação com os outros, é que pode fornecer uma convivência rica e frutífera, avanços sociais rápidos e uma relação saudável com a natureza. Esse indivíduo só pode existir se ele não for obrigado a ceder todo o seu tempo para o trabalho obrigatório.


A famosa democracia de Atenas na Antiguidade é um modelo muito interessante para pensarmos formas alternativas de poder. Em Atenas, somente os cidadãos podiam votar – o que excluía mulheres, escravos e pobres. Na prática, quem detinha o poder eram os senhores donos de terras. Como eram donos, trabalhavam muito menos do que os servos, fato que lhes proporcionava muito tempo para aprofundarem-se nos assuntos da cidade. Em Atenas, todos os cargos eram rotativos, com média de 1 ano, e os ocupantes eram escolhidos em assembleia. Pode-se dizer que havia democracia em Atenas, mas somente entre os senhores.


Ora, numa sociedade com o processo de trabalho altamente maquinizado, o trabalho humano diminui consideravelmente. Isso quer dizer que existe tecnologia suficiente para que os indivíduos trabalhem pouco e possam participar dos processos decisivos de uma comunidade. Obviamente, é impossível reunir nações populosas em assembleias para decidir os assuntos que concernem a determinadas regiões. Exatamente por isso, é preciso que a democracia comece nas comunidades. Em vez de meros órgãos de consulta, as assembleias populares devem exercer poder efetivo sobre o território no qual se situam. Além de locais de decisão, as assembleias seriam locais de formação. Nelas, as tendências divergentes se confrontariam, ao mesmo tempo em que poderiam alinhar-se numa mesma perspectiva sobre um tema específico. Ninguém conhece melhor a situação de um bairro ou região, suas riquezas e carências, do que os próprios moradores do local.


Essa assembleia deve ser soberana em suas decisões, aberta a todos os moradores de uma determinada localidade. Devido ao avanço tecnológico, não é preciso que a participação nessas assembleias seja necessariamente presencial; a única coisa que se requer é a participação do maior número possível de pessoas. A comunidade pode, por exemplo, decidir se certa área deve servir para o plantio ou como área de reflorestamento; se a avenida ou rodovia necessita de uma passarela; se a comunidade precisa de mais leitos de UTI ou médicos para situações de urgência; se é necessária uma força-tarefa para a produção de remédios ou para a colheita de alimentos; qual deve ser a punição para sujeitos que cometam delitos.

Cada comunidade sabe muito bem as suas demandas, e com a diminuição do trabalho obrigatório, poderá organizar o trabalho coletivo para realizá-las sem depender do Estado. No entanto, é muito difícil que uma comunidade sozinha possua todos os profissionais e recursos para o desenvolvimento da infraestrutura necessária para proporcionar uma vida digna a todos. Além da necessária redistribuição radical da riqueza, as comunidades podem reunir-se em confederações, nas quais seja possível deslocar, de forma baseada em consentimento e redes solidárias, profissionais e recursos de outros lugares para o desenvolvimento de comunidades menos assistidas e com menos recursos.

Para todas essas situações, as comunidades costumam recorrer ao poder público. Na maioria delas, esse poder age, quando age, de acordo com o interesse de minorias dominantes. As comunidades desassistidas não podem esperar a mão amiga do Estado ou a chegada das empresas preferidas dos governantes para se desenvolverem ou obterem justiça social. A força do Estado e dos grandes acumuladores de capital se entrelaçam, operando como um grande monstro que pisoteia as individualidades que se querem livres, ou as associações de indivíduos organizados horizontalmente. Não bastaria abolir o Estado se o dinheiro continuasse sendo capaz de comprar o poder.


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Algumas sociedades indígenas da América do Sul, como os Nhandevá e os M’biá, desenvolveram um modelo político com o qual temos muito a aprender. Nelas, não existe cisão entre sociedade civil e Estado; quase todos os membros daquela sociedade exercem o poder. “Quase”, pois só um indivíduo não possui poder: exatamente o chefe. O chefe, nesse modelo, é um cargo hereditário, e o único poligâmico daquela sociedade; no entanto, ele não pode possuir bens, é obrigado a presentar com frequência os outros membros da comunidade, ninguém presta atenção em seu discurso, e quando houver algum conflito, o chefe deve mediá-lo sem tomar partido de um lado ou outro. Se o chefe ordenar algo para algum membro da comunidade, corre o risco de ser assassinado ou expulso. Dessa forma, essas sociedades impedem que haja uma divisão entre os que mandam e os que obedecem; todos mandam, menos um. Essa chefia sem poder serve para lembrar a todos os integrantes daquelas sociedades de que todos eles podem e devem decidir sobre as questões que concernem às suas comunidades. A figura do chefe sem poder é um mecanismo sofisticadíssimo para evitar que haja divisão desigual de poder naquelas sociedades.


Mesmo que alguns indígenas tenham se integrado, por bem ou por mal à lógica de trabalho e consumo vigente, e hoje façam parte do mundo globalizado, muitos deles ainda vivem de subsistência e da troca, e não gostariam de ter que sacrificar seus modos tradicionais de vida; por isso, não devem ser incomodados. No entanto, apesar da possibilidade e liberdade para tal, é muito difícil que a maioria dos seres humanos queira viver sem motores ou cibernética. Fomos formados, fisicamente e psicologicamente, na sociedade globalizada pela produção e consumo de mercadorias, e nos habituamos a consumir produtos de diversas origens. É interessante para a nossa sociedade que as pessoas trabalhem em áreas diferentes, provendo uma gama gigantesca de opções para o consumo. No entanto, os recursos do planeta não são infinitos. Faz-se urgente a racionalização da produção e do trabalho, abdicando de matérias-primas não-renováveis ou que causem danos ambientais no processo violento de extração. Com isso, uma grande parcela da humanidade concorda. No entanto, o Estado e as grandes corporações visam o lucro máximo, produzindo mercadorias desnecessárias e que causam impacto no território. A extração de ouro ou diamantes, a exploração e queima do petróleo, o aumento exponencial das pastagens, são ações irracionais que procuram atender a certos fetiches humanos, e que podem ser substituídos. A manutenção desses fetiches podem custar muito caro à saúde da espécie humana e do planeta Terra.


Não bastando a produção desnecessária, na economia de mercado o setor de armas e de construção civil não só tira vantagem como incentiva as guerras de reordenamento mundial, cientificamente planejadas para destruir um território, eliminar parte da população e depois reconstruir esse mesmo território, tudo em prol de uma movimentação econômica sem sentido, que enrique a poucos e tira a vida de muitos, militares e civis.


Como os recursos do planeta são limitados, e muitas são as evidências de que nossa relação com a natureza têm sido nociva, é preciso transformar radicalmente a economia. Uma gestão inteligente dos recursos impede que produtos apodreçam ou não sejam reaproveitados, e pode diminuir o tempo de trabalho desnecessário. Nesse ponto, esbarramos no problema da desigualdade. Enquanto alguns são bilionários, donos de grandes extensões de terra, vários carros na garagem e dezenas de casas de aluguel, essas pessoas podem se utilizar de suas fortunas para comprar a força do Estado a seu favor, ou mesmo contratar milícias para a proteção dessas propriedades desnecessárias. O fluxo de mercadorias e a desigualdade social são os designers da cidade e do campo; a preocupação com o trânsito de produtos e blindagem dos ricos é hegemônica, enquanto as relações humanas autênticas ficam fora da conta, quase que inviabilizadas. Assim como a tribo indígena evita que o chefe tenha poder em sua própria estrutura, a sociedade do futuro deve abolir a diferença entre ricos e pobres, inclusive no território. Para isso, seria necessária uma reforma agrária, industrial e urbanística radical, assim como a redistribuição da riqueza existente.


Quem já perdeu alguma pessoa próxima sabe que a dor é imensa e perpétua. Já passamos por muito sofrimento na vida, que não pode ser atenuado; não precisamos de mais sofrimento causado pela desigualdade. Não existe felicidade plena; porém, a única maneira de aumentar os momentos de felicidade é se todas as pessoas sofrerem menos. Enquanto houver outro indivíduo de nossa espécie com fome, com sede, com ganância, com muito dinheiro ou com uma arma na mão, a felicidade é impossível.


Com a propriedade de uso, uma pessoa pode realizar parte de sua liberdade e individualidade na possibilidade de privacidade e no consumo de produtos à sua escolha; quer dizer, uma casa espaçosa para morar e que possa garantir sua privacidade, um veículo para se deslocar, roupas, alimentos, eletrônicos e tudo mais; no entanto, não faz sentido, num mundo de recursos limitados, que alguns indivíduos possuam bens imponderáveis, quase ilimitados.


A economia financeira não expressa a riqueza do mundo. É impossível imprimir em dinheiro, com o risco de faltar papel, toda a riqueza dos bilionários do planeta. Não existe ouro suficiente no mundo que possa ser trocado por todo esse dinheiro. Vivemos numa economia artificial, cujo processo é dominado por alguns conglomerados de bancos, e que não diz respeito aos recursos existentes. Essa economia é abstrata em grau máximo; mesmo assim, as decisões dos poderosos fazem faltar comida na mesa dos miseráveis. Faz-se urgente uma outra economia, baseada no baixo consumo e no comércio local.


Para o preço dos produtos voltarem a expressar o valor do trabalho acumulado em todo o processo, da extração da matéria-prima à loja, é preciso extinguir a figura do patrão. Na autogestão das empresas ou latifúndios pelos funcionários, por exemplo, pode-se trocar o lucro pela contratação do dobro de trabalhadores, e desse modo todos trabalhariam menos; ainda assim, é possível guardar dinheiro para a maquinização gradual do processo. Enquanto gestores da empresa ou grande propriedade produtiva, os funcionários podem escolher para quem querem vender ou destinar seus produtos, de quem adquirem as matérias-primas necessárias, criando assim circuitos econômicos enraizados no território, baseados não no valor abstrato, mas nas leis próprias e na confiança mútua entre quem produz e de quem compra. Somente assim a economia se tornaria orgânica, com o dinheiro expressando de maneira mais aproximada os recursos disponíveis em certos territórios, e não a quantidade de dólares no país. Obviamente surgiriam mais redes solidariedade, podendo haver até a distribuição dos produtos de primeira necessidade produzidos pela comunidade ou pelo conjunto de comunidades, servindo o dinheiro daí somente para a aquisição de bens não-essenciais.


Esse modelo não é um pacto de pobreza; pelo contrário, é um pacto de riqueza entre todos os indivíduos de uma comunidade. O preço pago por não poder ser um bilionário é o de trabalhar pouco, não passar dificuldade material, ter tempo de dedicar-se aos talentos individuais, e acumular bens que reforcem essas individualidades, ainda que não possam ser infinitos. Os rentistas e especuladores são os verdadeiros parasitas da sociedade. A economia de baixo consumo abolirá essas figuras abomináveis da convivência social. Além disso, com o fim das grandes multinacionais e a quebra de patentes, os produtores em suas regiões poderão variar infinitamente as características dos produtos e as redes de fornecedores, de acordo com as matérias-primas disponíveis, sem a concorrência desleal dos lobbys cujo aporte é fornecido pelo Estado.


Para a economia de baixo consumo funcionar, ela requer alguns pactos globais pelo meio ambiente. O fim do extrativismo violento, da mineração sórdida, da exploração de petróleo, da circulação de veículos a combustão, das plantações de eucalipto, do desperdício de água, e uma gradual diminuição no consumo de carne podem auxiliar nesse processo. Não adianta nada uma grande empresa ou vasta propriedade rural ser autogerida se não faz nada para minimizar a poluição ou continua comprando matérias-primas de vendedores que atentam contra o fluxo natural sustentável ou que exploram os trabalhadores para se tornarem “competitivos” no mercado. É muito difícil mudar essa situação de uma hora para outra, mas esse deve ser sempre o horizonte de ação.


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A competição, se não é um instinto natural, está amplamente naturalizada na sociedade. Por si só, ela não é ruim. Porém, a competição de quem é mais rico chega a ser ridícula, coisa de gente fraca e incapaz. Numa sociedade emancipada, que reforce as individualidades, a competição se dá em áreas menos violentas e muito mais gloriosas. A competição esportiva, que prevê a conjunção de capacidades físicas, táticas, técnicas e psicológicas, é um campo no qual essa competitividade não mata nem explora ninguém. O esportista que pratica determinada modalidade por dinheiro certamente é menos motivado e mais suscetível à acomodação do que aquele que pratica o esporte para ser o melhor, lembrado pelas gerações seguintes. Com a aliança entre ciência e esporte, sem a intervenção do dinheiro, mais atletas poderão ter acesso a treinamentos avançados, elevando ainda mais o nível das competições.


Assim como o esporte, a arte representa uma manifestação cultural decisiva para a identidade dos indivíduos e dos povos. Entre os atenienses, o teatro servia como uma espécie de expurgo dos sentimentos ruins da sociedade; o público, através da emoção, deixava nas apresentações todos os seus instintos violentos; desso modo, podiam participar da vida política purificados de impulsos doentios. Para os grandes artistas, interessados na arte e na beleza, o dinheiro não só não ajuda, como ainda prejudica essas ambições. A mídia veicula somente tipos de arte para serem consumidas imediatamente por um público esgotado pelo trabalho, de pensamento uniforme e que gosta das mesmas coisas. Desse modo, é difícil o espectador reunir forças para a fruição e reflexão sobre obras de arte mais complexas. Artistas que juraram amor à arte e não ao dinheiro ficam escanteados nessa relação. Assim, inúmeros talentos artísticos são mutilados pela lógica do trabalho e da vendabilidade. Numa sociedade livre os artistas trabalhariam pouco, podendo dedicar-se com afinco ao próprio talento; além disso, poderiam convencer a comunidade a auxiliá-los em grandes obras, não voltadas para o lucro, mas para a própria arte. As pessoas, travando contato com maior diversidade de obras de arte, teriam uma gama de opções muito mais vasta para realmente poderem saber do que de fato gostam. Uma obra de arte que não seja mera mercadoria descartável, mas que possua potência para perdurar por gerações, não tem preço, pois se trata de um produto autêntico da cultura.


No âmbito científico, alguns dizem que o dinheiro auxilia no avanço tecnológico. Pelo contrário. A ciência voltada para o lucro não necessariamente desenvolve o melhor produto, mas o de mais fácil vendabilidade. O produto tecnológico, feito com matérias-primas de boa qualidade, demora a apodrecer; nesse caso, ele se distingue do produto alimentício, que comumente estraga. A lógica do lucro é a responsável pela obsolescência programada, que faz com que tenhamos que investir várias vezes no mesmo produto, somente para movimentar a economia; a extração incessante de matérias-primas para sustentar a obsolescência programada está ajudando a destruir o planeta muito rapidamente. Na sociedade libertada do trabalho, o cientista pode dedicar-se ao estudo e produção de elementos para facilitar o trabalho e fornecer maior conforto à sociedade, assim como empregar sua energia na criação de medicamentos e métodos para atenuar o sofrimento das pessoas. Mas para muito além disso, a ciência deve servir também à mera curiosidade humana, ilimitada, desta vez não refreada pelo imperativo do lucro.


O uso da matemática não deve servir somente para prever a quantidade de vidas que devem ser sacrificadas ao Deus Mercado para salvar a economia, e sim, em conjunto com as outras ciências, ser utilizada para prever o grau de destruição e manutenção do ecossistema na necessidade de alguma intrusão, ou para distribuir a riqueza de maneira mais equitativa, conhecendo estatisticamente as demandas de produtos de uma comunidade e não precisando produzir excedente, diminuindo o trabalho de todos e o impacto no planeta. Isso sem pensar no desenvolvimento livre da matemática, sem ter que dizer respeito à utilidade.


Na sociedade emancipada, a ciência, as artes e os esportes certamente serão melhores do que são hoje. A economia de baixo consumo, além de suas vantagens culturais, oferece vantagens inclusive no âmbito da variedade do consumo. Com a abolição das multinacionais, a quebra de patentes e o fortalecimento da economia local, o dinheiro ficará na região e haverá maior diversidade de produtos, pois o próprio contexto já é um incentivo ao uso de matérias-primas abundantes na região, assim como para o advento de tecnologias de substituição de matérias-primas raras e não-renováveis. Poderá haver comércio e troca entre todas as partes do mundo, sem a intervenção dos Estados e dos grandes conglomerados empresariais. O fim da homogeneização do consumo é um elemento que reforça as diferenças entre os seres humanos. A individualidade, também expressa na alimentação, no vestuário, no corpo e em tudo que diz respeito à vida particular, será realçada com a diversidade maior de opções no mercado, já que cada empresa, oficina ou terra agrícola seria responsável por diferentes produtos, ainda que servissem para a mesma coisa.


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Muitos defendem que o Direito é um conjunto de normas estabelecidas por toda a população de um país. No entanto, a verdade é que o Direito é um idioma específico, para pessoas letradas na área, criado pela elite dominante e efetivado pelo Estado para domesticar as massas. Alienadas do discurso jurídico, as pessoas pobres precisam confiar em seus advogados. É fato consumado que o Direito é uma área na qual são permitidos malabarismos nas brechas entre legislações contraditórias; comumente, esses malabarismos são praticados por criminosos ricos para saírem ilesos após agressões, assassinatos, corrupção e roubo de terras. É uma espécie de jogo do mais hábil em evocar leis e amarrá-las de uma maneira mais ou menos convincente. Ainda assim, no fim, a decisão última é arbitrária e tomada por alguém que faz parte da elite dominante, já que é possível mobilizar o discurso jurídico, às vezes em conjunto com a coerção armada, para absolutamente qualquer situação. O problema do Direito, assim como da Política e da Economia, está em sua estrutura vertical.


Os conglomerados de leis que regem as nações não dão conta nem de longe da complexidade dos casos particulares. Alguém pode ser preso por roubar galinhas ou ovos, e muitos ficam livres após se apropriarem de terras e bens que pertenciam a pessoas de estratos mais baixos da sociedade. Parece ser mais justa aquela forma de justiça tradicional, na qual a comunidade possui algumas leis seculares, mas que todo caso é analisado individualmente, em relação ao contexto e às motivações. No mundo livre, as sentenças e julgamentos serão executados pela própria comunidade. Ainda que não seja uma lei, podemos dizer que pequenas comunidades possuem maior possibilidade de controlar o número de infrações do que as grandes megalópoles, nas quais todos são anônimos; paralelamente ao Direito e ao Estado, já opera em cada comunidade um sentido de justiça, na qual todos estão empenhados em diminuir ao máximo as ações consideradas injustas; desse modo, todos podem viver melhor, mesmo em situações adversas. O criminoso tem muito menos medo de ser preso e isolado do convívio social do que de ser hostilizado na própria comunidade em que vive, pelas pessoas que conhece desde criança e que, no caso de um crime, estarão decepcionadas e furiosas com ele; certamente, pensará muitas vezes mais antes de cometer qualquer delito. Toda comunidade possui alguns indivíduos que se destacam pela serenidade e senso de justiça, que podem compor, com mandatos revogáveis, as assembleias destinadas ao julgamento de indivíduos infratores. Uma polícia ou um exército só precisariam existir em comunidades que, apesar da estrutura horizontal, ainda possuíssem índices de criminalidade, ou sofressem de ameaças externas. Essas forças devem obedecer à assembleia soberana, não servindo somente para garantir a legitimidade do Estado e a proteção dos bens das grandes corporações, como funcionam hoje, mas sim aos interesses genuínos do povo.


Em relação ao pagamento ou não de impostos, cada comunidade deve decidir sobre a necessidade da arrecadação. Imposto sobre renda e imposto sobre produto, verticalmente requeridos, são uma forma de assalto a quem produz riqueza. Em vez de pagarmos impostos para o Estado favorecer os bancos e oferecer serviços públicos deficientes, é mais eficaz a comunidade angariar recursos de seus indivíduos numa espécie de caixa próprio, no qual todos consintam na colaboração, para o desenvolvimento coletivo daquela comunidade, além de eventuais socorros a indivíduos ou famílias com dificuldades momentâneas. Esses caixas próprios podem ser úteis desde o oferecimento de refeições gratuitas até obras localizadas de infraestrutura.


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No tocante à educação numa sociedade libertada do trabalho obrigatório, a própria comunidade será gestora e participante do processo escolar. Os professores, sem precisarem se deslocar para longe de suas casas para lecionar, nem ter de dar 40 horas de aulas por semana, ensinarão na escola de seu bairro. Assim, poderão se dedicar aos problemas locais e ensinar os alunos a partir de experiências em comum, vividas naquelas regiões específicas, e que facilitam o aprendizado pela proximidade do aprendiz com aquela realidade. Em conjunto, os docentes trazem para os alunos o conhecimento universal e vasto que aprenderam em seus cursos e na vida, relacionando-os com o contexto regional que envolve a todos. Além das disciplinas normais, todo cidadão da comunidade poderá se propor a ensinar na escola, para os estudantes interessados, alguma técnica manual, maneiras de se utilizar máquinas ou softwares, assim como atividades que reforcem o pertencimento cultural e histórico do aluno àquele local e àquela experiência, mas sempre em contraste com manifestações de outras culturas; precisamos conhecer outras complexidades culturais para que ninguém se considere melhor ou pior do que outro devido ao lugar onde nasceu ou à cor de sua pele.


Já as Universidades, que assim como portos, aeroportos, linhas de trem e arenas esportivas transcendem a lógica local, serão geridas pelas confederações de comunidades. Servirão como locais de formação de profissionais como médicos, cientistas da computação, engenheiros, biólogos, historiadores, químicos, farmacêuticos, geógrafos, cientistas sociais, estatísticos, psicólogos, artistas de toda espécie, além da formação de professores e de polos de pesquisa avançada, com alguns pesquisadores desenvolvendo tecnologia para uso prático da comunidade, enquanto outros realizam projetos sobre temas que concernem à curiosidade humana, e só por isso já são dignos de se tornarem objetos de estudo. Toda a carga de leitura, os experimentos e as próprias aulas poderão ser disponibilizadas em formato de texto, áudio ou vídeo para toda a população, que não necessitará de vestibular para acompanhar os cursos e a produção de conhecimento. Desse modo, não será preciso uma formação universitária para exercer qualquer cargo, basta demonstrar aptidão à função perante a comunidade. Para isso, é necessário o acesso livre ao conhecimento acumulado. Nutridos de conhecimentos nascidos a partir de suas experiências nas próprias realidades locais, em relação com o saber desenvolvido por outros povos, os estudantes poderão intervir na comunidade com muito mais propriedade do que qualquer estrangeiro. Os exemplos das comunidades prósperas auxiliarão no desenvolvimento e aprimoramento dos processos políticos, econômicos, jurídicos e educacionais em outras localidades do mundo, proporcionando uma experiência multicultural e humana valiosíssima, e que hoje em dia tem sido falsificada pela homogeneização cultural promovida pela mídia corporativa, pela educação uniforme, pelo trabalho obrigatório e pelo Estado.


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O imperativo econômico entra em contradição com o desenvolvimento racional das forças produtivas. Evolução é deixar o ser humano mais fraco morrer para não passar seu gene adiante, devido a circunstâncias econômicas que estão destruindo populações e ecossistemas inteiros em prol do lucro de alguns; ou seria a utilização da tecnologia para a sobrevivência do número máximo de indivíduos com os menores danos possíveis? A destruição incalculada da natureza perpetrada pelo homem, que acarreta problemas severos e que ameaçam a espécie, como no caso da atual pandemia global, não pode ser chamada de plenamente racional. Também não é um mero instinto animalesco, pois nenhuma espécie destrói conscientemente, com métodos avançados, seu próprio lar. Portanto, trata-se de uma aberração inominável, da qual todos os trabalhadores e consumidores do mundo são obrigados a participar.


Apesar das diferenças que tornam a experiência humana tão rica, vivemos todos num mesmo planeta, que dá sinais de exaustão devido à exploração incessante de recursos, que enriquece pouquíssimas pessoas, e faz a maioria viver para trabalhar. Por isso, independente da autodeterminação dos povos, são necessários pactos globais de preservação do meio ambiente e dos direitos humanos e dos animais. A manutenção de um ambiente no qual a espécie humana possa sobreviver é um dever de todos os povos, para muito além das formas transitórias de governo. No entanto, as experiências históricas com o Estado e a economia globalizada resultam muito perigosas para a estabilidade natural e social. Se todos se responsabilizassem pelas decisões políticas, esse modelo alternativo diminuiria consideravelmente a quantidade de decisões ruins e que não acolhem a maioria dos interesses, costumeiramente tomadas pelos governantes. O modelo de “poder errar” numa eleição e substituir o político na outra se mostra ineficiente; os prejuízos ambientais, morais e perdas de vidas evitáveis são danos irreparáveis. Dadas as condições históricas que nos trouxeram até aqui, nosso tempo nos avisa que não há mais margem de erro. Independente das diversas crenças sobre se há outra vida após essa, o mundo pode ser aqui e agora um lugar agradável, mas aproxima-se mais do inferno; vale a pena lutar para tornar esse mundo melhor. Agora.


Todas as nações atuais são falsas: não expressam a identidade de um povo, e sim a identidade do processo de trabalho e de hierarquia, muito parecido em todas as partes do mundo. A pátria só faz sentido enquanto confederação de áreas autônomas, constituídas por sujeitos livres que se identificam no aspecto histórico-cultural; assim, uma confederação seria simplesmente a execução de ações chanceladas pelas assembleias soberanas e que dizem respeito a áreas de interesse comum entre várias comunidades. O modelo do confederalismo democrático possibilita maior liberdade de transferência de recursos e trânsito entre regiões, abdicando da necessidade de passaportes ou vistos. Da forma como se apresenta, o Estado-nação funciona como uma prisão de povos, confinados no território e no processo de trabalho e consumo uniformes, e submetidos às mesmas leis. Os movimentos de trabalhadores e os partidos políticos, infelizmente, estão presos à lógica vertical do Estado e da economia de mercado global; em vez de reivindicarem mais trabalho, como fazem exaustivamente, deveriam exigir menos trabalho. Se há algum nacionalismo saudável, certamente é aquele no qual as nações confederadas expressem suas culturas autênticas, compostas por experiências históricas e influências de todo tipo, e não que todos consumam o mesmo modelo de produto cultural, como nos é imposto hoje. Para isso, as nações precisam de sujeitos livres, organizações horizontais e menos trabalho obrigatório.


Só com o fim da divisão entre as classes e o poder dividido entre TODAS AS PESSOAS é que a história da humanidade livre começará de fato. As primeiras luzes dessa aurora começam a ser vistas pelo mundo todo. As descrições da sociedade livre realizadas nesse texto não são utópicas: estão acontecendo nesse momento. Paralelamente ao Estado e à economia corporativa, brotam como flores na primavera as redes de economia solidária, circuitos econômicos sustentáveis, associações horizontais de produtores, sítios agroflorestais e comunidades autossuficientes que aboliram o uso do dinheiro.


Porém, dois modelos políticos contemporâneos dão unidade a essas experiências difusas. Em 1994, no sudoeste do México, anarquistas e indígenas, inspirados pelas ideias de Emiliano Zapata, enfrentaram o Estado e se uniram em assembleias horizontais para gerirem os recursos do turismo e a distribuição de alimentos na região, nas chamadas Juntas do Bom Governo; outras bandeiras do movimento zapatista são pela preservação da natureza e justiça social. É triste que povos pacíficos sejam obrigados a pegar em armas para garantirem seu território perante os interesses inescrupulosos do Estado e das corporações. Em 2016, no norte da Síria, na região de Rojava, a população se uniu num modelo político de regiões livres e autônomas. Quase tudo que foi descrito aqui já opera por lá, com muito sucesso. É a própria democracia ateniense revisitada, desta vez inclusiva. Democrática, livre, primando pela igualdade de gênero, orientação sexual, liberdade religiosa, sustentabilidade e economia local, Rojava aparece como uma flor no deserto. Infelizmente, todas as nações do mundo olham para a experiência de Rojava como uma ameaça subversiva. Muita da energia vital dos habitantes da região, que poderia ser usada para a sofisticação do modelo democrático direto em todos os âmbitos da vida, assim como para um maior desenvolvimento científico e tecnológico, é empregada na organização de exércitos de autodefesa com parcos recursos. Não há intenção alguma de expansão militar do território; ainda assim, como em todas as revoluções, os impérios têm medo das ideias. Todos estão contra a experiência radicalmente democrática em Rojava, e fazem de tudo para enfraquecê-la: o imperialismo dos EUA e países da Europa ocidental, o governo fundamentalista da Turquia, o Estado Islâmico, o Irã, o governo russo, a ditadura centralista da própria Síria e até as milícias armadas que reagem contra essa ditadura. Disso podemos concluir que todos os poderes hierarquizados se assemelham em sua podridão. Todas as pessoas decentes do mundo devem conhecer e prestar solidariedade à experiência de Rojava, extremamente ameaçada. A única forma de haver uma revolução pacífica é a maioria das pessoas agirem de modo a não mais se curvarem ao Estado e ao patrão, e obedecerem somente a si mesmos.


Em resumo, a democracia direta nas comunidades, apesar de interesses divergentes que advém quando do encontro entre indivíduos diferentes, serve para racionalizar o processo produtivo de um certo território. Só a democracia direta pode libertar os seres humanos do trabalho desnecessário, da opressão estatal e financeira, e gerir os recursos naturais de maneira não-destrutiva, fortalecendo os laços entra as pessoas e entre a espécie humana e o meio onde habita. Em outras palavras, é preciso efetivamente tomar as rédeas da história, que no momento está nos levando para a destruição completa. Está na hora de não confiarmos mais em líderes, e confiarmos em nós mesmos. Transformar a Terra num lugar melhor, distante da mesquinhez e irresponsabilidade que acometem a sociedade global hoje, deixou de ser uma escolha e se tornou uma obrigação daqueles preocupados com a sobrevivência da espécie humana. Não temos muito tempo, nem tanta margem para continuar errando.

[Agradecimento especial a Caio Momesso]

- Alberto Sartorelli

Referências e indicações de leitura:

Grupo Krisis - Manifesto contra o trabalho

Robert Kurz e Norbert Trenkle – A superação do trabalho: um olhar alternativo para além do capitalismo

Rachel Pach – Biji Kritik Rojava: crítica radical e solidariedade contra a barbárie das guerras de reordenamento mundial

Murray Bookchin - Municipalismo libertário

Daniel Cunha – O Antropoceno como fetichismo

Theodor Adorno - Tempo livre

Guy Debord – O planeta doente

Abdullah Öcalan - Confederalismo democrático

Walter Benjamin - Teses sobre o conceito de História

Pierre Clastres – A sociedade contra o Estado

Giuseppe Luca Scaffidi – Cronofagia: o roubo do tempo, sono e ideias

Étienne de La Boétie – Discurso da servidão voluntária

Raoul Vaneigem – A decadência do trabalho

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