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(NO) FUTURE, (NO MORE) HEROES: sobre os heróis e futuros de Franco Berardi



Heróis sem futuro


Faz tempo que alguns de nós na IK estamos interessados em elaborar uma hipótese crítica sobre a relação formal do pós-punk e o colapso da modernização. O problema é complicado, porque sendo forma vazia a mercadoria assumiria qualquer conteúdo (ou aparência), o que levaria a possibilidade de análise da produção cultural a uma redução monstruosa. Mas continuamos empenhados nessa pesquisa porque sabemos: o estilo não é um detalhe.


A experiência do pós-punk, como fenômeno sociocultural particular, ganha um relevo inusitado quando disposta sobre uma perspectiva capaz de analisar a forma estética de forma imanente, como em Benjamin ou Adorno, ou ainda a partir da análise dos conteúdos dos bens culturais como em Raymond Williams. Enquanto processo, a produção de bens culturais não se restringe a uma relação entre o ser social que determina a consciência mediada por uma ideologia, ou a um sistema administrado. É próprio da obra de arte capturar as formas objetivas da sociedade, produzindo signos e subjetividades carregados de particularidades. Esses conteúdos, apesar de igualados pela indústria cultural através da forma da mercadoria, dependem de uma análise que vá além de um mecanicismo galgado na mesma dinâmica, que a tudo iguala, tornando suas particularidades conteúdos ideológicos apenas. Tanto as letras quanto as próprias canções podem ser interpretadas, assim, a partir do assoalho histórico do qual também emergem os gestos - afirmativos ou contestatórios, não obstante conduzidos por sujeitos socializados a partir de uma matriz fetichista (e inconsciente). No interior de um conjunto difuso de experiências ao mesmo tempo disruptivas e mercantilizadas, a ascensão e o ocaso dos heróis da luta por autonomia encerram tanto uma compreensão própria sobre o "futuro", quanto da forma social do sujeito diante de seus respectivos esgotamentos históricos.


A resenha do livro Heroes de Franco "Bifo" Berardi, escrita por Benjamin Noys, traz esses conteúdos para o primeiro plano, e parece uma boa contribuição para as "futuras" teses nesse campo. Fica o convite para quem se animar com o debate.

 

"God save the Queen", do Sex Pistols, com seu refrão final "No Future", The Stranglers "No More Heroes" e David Bowie "Heroes" foram todas lançadas em 1977. Por um lado, era o fim do futuro e dos heróis, o momento apocalíptico em que os "dois setes se chocam" [1]; por outro lado, seria o começo de outro futuro e de outros heróis, segundo o frágil otimismo de Bowie "poderíamos ser heróis / apenas por um dia" ou, de forma mais perturbadora, nos sinais da emergente contra-revolução neoliberal. O apocalipse, no entanto, seria decepcionante.


O momento punk de 1977 aprisionou-se na dialética da recuperação: fora/dentro; autonomia/heteronomia; selo independente/grandes gravadoras. "Você acha engraçado", cantou The Clash, "transformar a rebelião em dinheiro?" [2] Conselhos que eles podem ter levado a sério, assinando contratos com a CBS enquanto os Sex Pistols assinaram com a Virgin. O trabalho duro ainda não havia começado.


1978 foi o ano do single "Ambition"/"A Different Story" da banda Subway Sect. O coro de "Uma história diferente" era "Nos opomos a todo o rock and roll":


The lines that hit me again and again Afraid to take the stroll Off the course of twenty years And out of rock and roll
As linhas que me atingem uma e outra vez Com medo de dar uma volta Ao longo de vinte anos E por fora do rock and roll

Os Subway Sect recusaram toda "postura combativa". O pós-punk foi o momento da luta pela autonomia, pela independência enquanto algo não pré-determinado em um estado 'puro' anterior a recuperação 'inevitável', mas lutado em pela produção, distribuição e reprodução de música. Em 1981, tocando obviamente na conotação S/M, a banda Throbbing Gristle [3] declarou 'precisamos de um pouco de disciplina' [4]. Este momento também falharia no obstante de forma menos memorável.

[Subway Sect]


1977 foi o fim do momento de Autonomia, o movimento de massas da revolta na Itália que explodiu antes de sucumbir diante da repressão estatal. Incapaz de superar esse limite a Autonomia mergulhou no exílio, na prisão, diante da violência armada do Estado e de grupos radicais e, finalmente, diante de novos compromissos e concessões que constituiriam a nova restauração capitalista. Para Franco 'Bifo' Berardi, a convenção contra a repressão, convocada em Bolonha em 1977, com a participação de 20.000 pessoas, é o sinal desse fracasso iminente - uma capitulação ao 'anti', um fracasso na construção da autonomia, de se perder na dialética. Esta é outra versão da dialética da recuperação, da dissipação de energia, do fracasso heroico.

O pensamento pós-autonomista, a tentativa de continuar após esse fracasso, não investiga o problema da autonomia tal como o pós-punk. A autonomia continua sendo uma questão de fé, especialmente no trabalho de Toni Negri, que tende a encontrar autonomia em todos os lugares, ainda que mais improváveis. A autonomia permanece como a força insurgente da multidão e toda derrota é, se analisada com bastante atenção, uma vitória disfarçada. Uma das virtudes de Bifo reside em questionar esse otimismo, embora ele não tenha ido longe o suficiente. Bifo sempre esteve em sintonia com os efeitos patológicos das falhas da autonomia, dos custos psíquicos da vida capitalista (danificada), de uma certa negatividade, se não de uma negatividade alternativa, de qualquer negatividade que não seja simplesmente sinônimo de sofrimento.


Heróis de Bifo é um livro dessas patologias, inspirado por e recapitulando suas discussões anteriores. Há repetição aqui. Uma ladainha de assassinatos e suicídios em massa, de tiroteios em escolas e locais de trabalho, de homens-bomba, de várias formas de desespero e o que Banu Bargu chama de "vida armada". Quando não há mais nada a perder, é melhor arriscar a morte do que viver uma vida sem nada. 'Suicide Solution' de Ozzy Osbourne (1980). No início de sua conclusão para Heroes, Bifo pergunta: "Por que escrevi um livro tão horrível?" Bifo está certo ao dizer que as pessoas dificilmente precisam saber como as coisas são ruins. Robert Kurz havia notado, em 2002, que:

"os amoques são robôs da concorrência capitalista que ficaram fora de controle: sujeitos da crise, eles desvelam o conceito de sujeito moderno, esclarecido, em todas as suas características" [5].

Muito mais difícil, muito mais obscura, é sua sugestão de que precisamos encontrar uma linha de fuga. Diante do que Bifo chama, de forma ressonante, de "absolutismo capitalista", como devemos imaginar a "fuga"? 'Fuga' é a figura certa para a possibilidade de resistência?


[Imagem do filme 71 Fragments of a Chronology of Chance (1994) de Michael Haneke]


Existe a má depressão (masculina) da modernidade, a depressão de Lênin, que para Bifo leva a um voluntarismo maníaco em busca de sair desse estado deprimido. Este seria um tipo de "depressão maníaca", uma oscilação selvagem. Há também a depressão de nossa modernidade tardia, a depressão da exaustão, por sermos subjugados pelas demandas cognitivas do capitalismo e, em resposta, a selvagem "atuação" dos "assassinos robóticos". Mas, para Bifo, há também uma potência de depressão, uma fuga através da depressão e do pior. Não construa um abrigo, aconselha a Bifo, mas se envolva em 'autonomia irônica', encontre independência diante da dependência absoluta.

[A última fotografia de Lenin (1924)]

Não é difícil devolver ao remetente a acusação de Bifo contra Lênin. Se Lênin tentou "construir" um partido proletário em face de uma classe trabalhadora dizimada e em um país camponês, fatos dos quais Lênin estava completamente ciente, então a construção de um "partido da autonomia" seria outra coisa senão um ato de vontade, outro tipo de voluntarismo? Uma linha de fuga para a 'autonomia irônica' só pode aparecer como uma negação voluntária de nossa dependência ao 'absolutismo capitalista'. O resultado é que as oscilações entre desespero e euforia nos textos de Bifo parecem muito mais acentuadas do que as de Lênin.


Há uma passagem em Heroes que acho impressionante. É sobre uma viagem de carro que Bifo realiza do aeroporto a Seul. Gostaria de citar o final dessa passagem:

"O mar havia recuado e o chão estava cinza e marrom como o céu. Abstração cinza. Calma, intensamente, irremediavelmente, a abstração definitiva tomou conta de mim".

Parece-me que a 'abstração cinza' [6], que lembra a teoria 'cinza sobre cinza' de Hegel, é o lugar para começar a pensar não tanto o 'futuro', mas o presente.

 

Benjamin Noys é professor de Teoria Crítica na Universidade de Chichester. Seu trabalho mais recente é Malign Velocities: Accelerationism & Capitalism (Zero, 2014).


Introdução, tradução e notas: Rafael Florêncio, Allan Cob e Rachel Pach

 

[1] Two Sevens Clash é uma canção gravada em 1976 pela banda jamaicana de reggae Culture, no álbum de mesmo nome, Two Sevens Clash, lançado em 1977 e que foi um enorme sucesso a Inglaterra influenciado a cena punk local. A canção trata de uma profecia apocalíptica feita por Marcus Garvey, que proclamava que haveria um estado de caos no mundo quando os dois “setes” se encontrassem, e as injustiças do passado seriam vingadas (dia sete de julho de mil novecentos e setenta e sete, ou, 07/07/1977). Escolas, lojas e algumas empresas fecharam durante este dia na Jamaica. Independente da profecia, este foi o ano em que o punk rock inglês deu as suas maiores pérolas para o mundo.


[2] “ha you think it's funny, turning rebellion into money”, frase da canção White Man In Hammersmith Palais, da banda The Clash, lançada como single no ano de 1978. Esta canção mesclava elementos seminais do reggae jamaicano com o punk rock inglês, e tratava de diversos temas sociais da Inglaterra do período, tais como pacifismo, a união das juventudes negra e branca contra o racismo, e a distribuição da riqueza social no país. Além disso, a canção fazia críticas aos grupos de punk rock do período, que não estariam preocupados com a revolta social, mas com a sua inserção com sucesso no mainstream.


[3] Banda britânica formada em 1975, em Londres. Como uma banda experimental avant guarde, foi uma das precursoras da música industrial, noise, dark e eletrônica, explorava temas como mutilação, fascismo, S/M e pornografia. A manipulação de efeitos eletrônicos tanto em estúdio quanto em apresentações ao vivo, fazia fundo as performances de palco centradas no músico Genesis P-Orridge e na musicista Cosey Fanni Tutti, mesclando som, ruídos e montagem de fitas magnéticas com imagens de campos de concentração e pornografia ao vivo.


[4] Canção industrial lançada em 1981 pela banda Throbbing Gristle, trazia a inscrição Techno Primitive gravada no lado A do compacto.


[5] Robert Kurz, A pulsão de morte da concorrência. Assassinos amoque e suicidas como sujeitos da crise. 2002.


[6] "Quando a filosofia chega com sua luz crepuscular ao anoitecer, uma manifestação da vida acaba de envelhecer. Não se pode rejuvenescê-la com o cinza sobre cinza, mas apenas conhecê-la. Ao cair das sombras da noite é que alça voo o pássaro de Minerva". Hegel, Princípios de filosofia do direito. A célebre imagem do "cinza sobre cinza" de Hegel foi construída a partir da frase de Goethe: "Toda teoria é cinza e só é verde a árvore de dourados frutos, que é a vida." A controvérsia vida / teoria é ainda objeto de Robert Kurz em Cinzenta é árvore dourada da vida e verde é a teoria. Kurz refaz o percurso das modernas elaborações sobre a prática, colocando sob escrutínio as posições irrefletidas -  do marxismo estruturalista às teorias pós-estruturalistas da práxis - a partir da crítica do fetichismo da mercadoria e sua matriz a priori.

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