O Fantasma do Abolicionismo Penal
- allan cob
- 3 de abr.
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No início de março teve início um debate, um tanto assimétrico, sobre o abolicionismo penal no Brasil. No domingo, dia 9, a Folha de S.Paulo publicou uma entrevista inédita com a geógrafa e ativista abolicionista, Ruth Wilson Gilmore, autora do livro Califórnia Gulag: prisões, crise do capitalismo e abolicionismo penal, lançado no Brasil em 2024 pela Igrá Kniga. No mesmo dia, o editorial d’O Estado de S. Paulo rotulou o encarceramento em massa no Brasil como “um mito”. Enquanto a entrevista da Folha dá conta de matizar alguns dos principais debates em torno do abolicionismo hoje, o Estadão tenta interromper o debate à força, publicando apressadamente um veredito frágil e racista. A despeito do reconhecimento dos elementos da ideologia supremacista na elaboração do editorial, e mesmo sabendo que se trata da tentativa desesperada de defender a manutenção do “direito” secular através do controle racializado e da força armada do Estado, uma análise mais precisa deve reconhecer as limitações próprias provenientes dos bloqueios cognitivos e epistemológicos do autor. Contraditoriamente, e de forma atrapalhada, o jornal acaba por revelar a pertinência e importância das lutas abolicionistas que, por óbvio, só estão ganhando evidência no Brasil por causa do avanço, real, do encarceramento massivo.

Uma das contribuições importantes de Wilson Gilmore é pensar a questão a partir do confronto entre o “abandono organizado” e a “violência organizada”. Com suas particularidades, o encarceramento em massa no Brasil se dá em contextos de confinamento territorial ligados à marginalização e criminalização que extrapolam a geografia carcerária propriamente dita.

De toda forma, a insistência em abrir qualquer discussão sobre crime e justiça com a retórica da impunidade e da corrupção é parte de um projeto ideológico que mantém intactas as estruturas punitivistas e seletivas do sistema penal. O que avançamos na compreensão dos crimes de colarinho branco – e, mais importante, na exposição das violências que esse tipo de criminalidade desencadeia – é fruto direto da criminologia crítica e das contribuições de teóricos abolicionistas penais. Foram essas correntes que desmascararam a ficção do crime como monopólio das classes populares e evidenciaram que as engrenagens do capital não apenas produzem ilegalismos sofisticados, mas garantem que seus autores, quando expostos, sejam tratados com toda a deferência do Estado, ao contrário dos corpos submetidos ao racismo – sempre descartáveis, sempre encarceráveis. Os ilegalismos estruturais que beneficiam as elites sequer são percebidos como crimes pela sociedade.
Uma das formas usadas pelo abolicionismo para analisar o fenômeno de explosão da construção prisional das últimas décadas – afinal, é preciso lembrar, não foi sempre assim – é entender a prisão para além daquilo que ela preconiza publicamente: “proteger a sociedade dos criminosos, desencorajar aspirantes ao crime e reabilitar os apenados”, como reafirma o Estadão em seu editorial. A ideia é compreender o fenômeno como parte da economia política na qual ela está inserida e trazer à luz do dia os expedientes econômicos, geográficos, históricos, sociais e jurídicos de um fenômeno global tão pobremente compreendido.
A pesquisa de Wilson Gilmore, por exemplo, reconta a história da construção de dezenas de prisões na Califórnia, dos anos 1980 em diante, como uma resposta genérica a um conjunto de problemas sociais: da violência ao desemprego, passando pela disputa por recursos hídricos e pelo declínio da economia rural no estado. No entanto, o programa do encarceramento em massa nunca foi fácil de emplacar. Ele exigiu uma articulação política inédita entre Estado, elites locais e diferentes setores do capital.
As imensas cidades prisionais foram construídas com base em um sofisma largamente difundido pela mídia: 1) o crime aumentou; 2) o Estado reprimiu; 3) o crime diminuiu. Aqui, a resposta repressiva do Estado com a construção de novas prisões teria sido responsável pela diminuição da criminalidade. Os dados da autora, contudo, mostram que esse cenário, historicamente, se deu de forma diferente: 1) o crime aumentou; 2) o crime diminuiu; 3) nós reprimimos. Ou seja, quando tem início a construção do que foi, até aquele momento, o maior plano de construção prisional da história do planeta, Wilson Gilmore nos mostra que os índices de criminalidade no estado já estavam em queda, ao contrário do que faziam crer os raivosos noticiários. Se os tecnocratas de plantão estivessem interessados na redução da criminalidade, eles poderiam ter colhido os louros dessa empreitada sem a construção de uma só prisão. Porém, isso revelou uma coisa: a construção de prisões não estava diretamente ligada ao avanço ou retração das taxas criminais. É aí que entra em cena o trabalho de articulação política, que envolveu lideranças estaduais, ruralistas e empresários urbanos, assim como boa parte da mídia. Um dos maiores desafios foi convencer o eleitorado californiano que o Estado deveria gastar mais – ele deveria aumentar o investimento público em prisões.
Por isso, a construção dos presídios somente pôde acontecer por meio de uma coalizão que uniu recursos públicos e privados: terras, capital, força de trabalho e capacidade administrativa do Estado se reorganizaram durante a crise dos anos 1970 para dar à luz a uma indústria das prisões. Milhões de dólares de dinheiro público, aliados ao uso da capacidade estatal para a administração social, se uniram aos interesses de elites rurais, como fazendeiros em busca de se livrar de terras de baixa produtividade agrícola, e a políticos municipais, de olho no investimento estadual – todos mais ou menos encantados com a propaganda da indústria das prisões, disfarçada de programa de desenvolvimento econômico e social local.
Do outro lado da equação, a construção das prisões nunca teria se mostrado solvente caso não tivesse se aliado à produção de “muitos presos”. Assim, para se fazer valer, a economia política das prisões precisou criar também a sua própria demanda. Através de leis mais severas e da criminalização da juventude preta e latina, aos poucos, os presídios se configuraram, enquanto batia recordes de encarceramento, como um dos setores econômicos mais importantes do estado, tornando todos os outros setores, em maior ou menor medida, dependentes dele.
Como se pode perceber, o debate é um tanto mais complexo do que faz querer crer o assustado editorial do Estadão, que declarou agora ter “pesadelos” com “o monstro do abolicionismo penal”, produto de “ideólogos extremistas”. Em tom pretensamente conciliatório, o jornal se apresenta entre uma “esquerda leviana” e uma “direita truculenta” apenas para reforçar o diagnóstico de Wilson Gilmore: em geral, a mídia é incapaz de pensar fora da economia política carcerária. Em determinados casos, que não são raros, a mídia representa o papel de sustentação dessa economia política dependente da repressão estatal. Ao agir dessa maneira, o Estadão ignora todo o percurso histórico que envolve essa economia e o seu fracasso diante de sua missão primeira – controlar o crime –, apregoando seu conselho quimérico de caminho do meio: nem “prender muito”, nem “prender pouco”, mas “prender bem”.
De volta à entrevista de Wilson Gilmore, na Folha, a autora afirma: “Quando uso o termo complexo industrial-prisional, é a isto que estou fazendo referência: produzir prisioneiros, em certo sentido, não é tão diferente de produzir sapatos, algodão ou qualquer outra coisa, porque a eficiência e os trâmites importam. Todos contribuem – o Legislativo, os tribunais, a mídia etc. – para estimular e racionalizar o sistema sem que o problema no coração dele seja debatido”.
Os tecnocratas da punição adoram se apresentar como objetivos e, tal como o editorial do Estadão, não hesitam em atacar o abolicionismo como um todo – milhares de ativistas e movimentos sociais em diversos países – como “delirantes” e “torturadores de dados”. Para isso, o autor anônimo do editorial do Estadão levanta os dados sobre os altos índices de homicídios no Brasil para justificar a nossa população prisional. Essa é a manobra de dissonância cognitiva do Estadão para afirmar que o encarceramento em massa é “um mito”. Um malabarismo argumentativo patético, quando todos os movimentos de luta contra o genocídio da juventude preta (e não apenas eles) não cansam de lembrar: a maior parte dos nossos presos são acusados por tráfico ou roubo, não homicídio.
O boom prisional no estado de São Paulo – paradigmático para a questão no Brasil – teve início na gestão de Mário Covas, na segunda metade da década de 1990, com a inauguração de quinze unidades prisionais em 1998 e o início do programa de interiorização de presídios. Até 2005 (quando se encerra o primeiro mandato de Geraldo Alckmin) foram inauguradas cem unidades prisionais (SAP-SP). A população prisional no estado de SP saiu de 55 mil pessoas, em 1994, para 195 mil, em 2012 (DEPEN, citado por Sinhoretto).

No Brasil, a produção de presos está intimamente ligada à criminalização da juventude negra e periférica. No final dos anos 1990 vimos eclodir a superlotação nas U.E.s (Unidades Educacionais, batizadas em protesto pelos adolescentes como Unidades de Espancamento, mais tarde renomadas oficialmente para Unidades de Internação da Febem, ou U.I.s, por sua vez batizadas em protesto como Unidades do Inferno) em meio a um debate sobre a redução da maioridade penal, enquanto jovens e seus familiares eram submetidos às torturas do sistema prisional. É nesse período também que as mega rebeliões se alastram pelos presídios do estado, assim como o próprio surgimento do PCC (Primeiro Comando da Capital). No entanto, a revolta diante dessas torturas também produziu movimentos sociais de resistência e luta contra essas violências. “Mães da Febem” é o primeiro movimento anti-encarceramento do Brasil, criado em 1998. Logo depois, as “Mães da Febem” dão origem ao movimento “Amparar” (Associação de Familiares e Amigos de Presos/as e Internos da Fundação Casa), ampliando sua atuação junto ao conjunto de sujeitos no sistema prisional e frente ao avanço da produção de pessoas encarceradas no Brasil.
Em 2022, o orçamento do sistema penitenciário no estado de São Paulo atingiu a cifra de R$ 4,6 bilhões – mais do que a soma das pastas de assistência social, cultura, trabalho, esporte e lazer, energia, indústria, comunicações e organização agrária. O estado também investiu R$ 14,7 bilhões nas polícias (G1, 2024). Assim, é possível enxergar que a economia política do cárcere em São Paulo já está consolidada como setor econômico importante para o estado e que, portanto, a construção de uma nova prisão não visa a obedecer apenas às oscilações do crime.
A interiorização dos presídios não apenas transformou pequenas cidades em economias dependentes da máquina penal, como consolidou uma lógica de exclusão e controle social em larga escala. A quem interessa um estado que investe mais na repressão do que no bem-estar social? A resposta está na própria estrutura racial e de classe da sociedade brasileira, que define, desde sempre, quem será a pele-alvo das políticas de encarceramento. O crescimento do aparato repressivo não significou mais segurança para a população, mas sim o aprofundamento do Estado penal, em que polícia e prisões operam como um projeto de extermínio e controle social. O fortalecimento do sistema prisional e a precarização das condições de vida dentro das cadeias não reduziram os índices de violência, mas alimentaram a formação de facções e ampliaram a brutalidade estatal. O discurso punitivista, vendido como solução para os problemas urbanos, ignora que a segurança pública não se faz com mais prisões, mas com investimentos reais em políticas que garantam dignidade e equidade. A luta abolicionista não nega a violência social, mas denuncia sua raiz estrutural e propõe caminhos que rompam com esse ciclo, em vez de perpetuá-lo.
Não se trata aqui de apresentar o editorial do Estadão como vocalizador das piores opiniões sobre a sociedade brasileira. Diante do fortalecimento da agenda da “direita truculenta”, se quisermos manter os termos do jornal, não faltam retrocessos – como na gestão de Ricardo Nunes à frente da prefeitura de São Paulo, que recém inaugurou o seu “prisômetro”. Entretanto – e isso é o mais grave, como nos lembra Ruth WIlson Gilmore em sua entrevista para a Folha –, o consenso em torno da economia política das prisões fez de governos do PT, no Brasil, e dos democratas, nos Estados Unidos, campeões em encarceramento, com o atual governador da Bahia, também petista, defendendo abertamente a construção de novos presídios. Trata-se, portanto, de alertar para o fato de que boa parte da sociedade brasileira desistiu de pensar sobre o problema do encarceramento em massa, em que pese o fato de que o conjunto da sociedade é quem financia a economia política das prisões.
Em contraposição à lógica carcerária e a partir de uma perspectiva abolicionista temos, no Brasil e no mundo, diversas organizações e movimentos sociais que atuam de maneira popular e com o objetivo de criar as condições para uma vida melhor. Como consequência e, ao mesmo tempo, como pré-requisito para o melhoramento da vida social, é necessário que polícias e prisões se tornem obsoletas. A organização “Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial” (IDMJR), por exemplo, tem um importante trabalho abolicionista no território da Baixada Fluminense. Ela vem pautando a incidência política popular com foco no desinvestimento das polícias e das prisões, que tem por finalidade a eliminação da produção de morte e do encarceramento. No entanto, com a consolidação de mais uma polícia no Brasil, a polícia penal, o que temos visto é o aumento do orçamento para o sistema prisional. Para termos a dimensão do tamanho: no estado do Rio de Janeiro, onde a organização atua, o PPA (Plano Plurianual) para o período de 2024-2027, no programa que trata sobre questões de privação de liberdade, o Sistema Prisional e Ressocialização dos Custodiados, tem o montante de R$ 2,1 bilhões.
O abolicionismo penal propõe uma abordagem radicalmente diferente para lidar com conflitos e crimes, partindo do princípio de que o sistema de justiça criminal não apenas falha em resolver esses problemas, mas os aprofunda. A maioria dos crimes violentos ocorre dentro de contextos de desigualdade, traumas não elaborados e ausência de redes de apoio, fatores que o Estado penal não só ignora como agrava. A resposta abolicionista se baseia em interromper esses ciclos desde sua raiz, fortalecendo estratégias de justiça comunitária e restaurativa, investindo em mecanismos que transformem conflitos em oportunidades de responsabilização e cura, em vez de simplesmente isolar os envolvidos.
Não é difícil encontrar nos anais dos séculos XVI, XVII, XVIII e até XIX textos escritos com muita eloquência para afirmar não haver horizonte para a abolição da escravatura. Mesmo personagens autodenominados progressistas, compadecidos pelos horrores da brutalidade do sistema escravista, não conseguiam conceber o abolicionismo como um instrumento real de transformação da sociedade. Jota Mombaça explica isso referindo-se ao fato de que estamos “disputando os limites do possível”.
É, também, nesse campo que se dá a luta política abolicionista. Diante da impossibilidade cognitiva dos herdeiros do modelo escravocrata de ao menos imaginar uma sociedade em que o cativeiro seja abolido, nossa luta é também epistemológica e nossa metodologia é, também, pedagógica, já que, na prática, precisamos ensinar a sociedade a pensar para além das limitações impostas pela supremacia da punição. Afinal, este é um dos instrumentos de controle dos corpos historicamente vulnerabilizados pelos mesmos “intelectuais” que se beneficiam da manutenção do modelo punitivista. Na prática, hoje, alguns dos mais proeminentes nomes da defesa do encarceramento e da brutalidade policial defendem o legado do empreendimento de seus antepassados colonizadores e comerciantes de pessoas escravizadas. Muitas das vezes esses reconhecem na prisão a fonte de poder ancestral de controle, punição e tortura daqueles que seus antepassados criminalizaram por não poderem mais escravizar.
Por tudo isso, são importantes reflexões como as propostas por intelectuais e movimentos sociais abolicionistas, que permitem enxergar a mentira por trás da ideia de que presídios são a melhor resposta para enfrentar os danos sociais e combater a violência. Esse é só o começo do debate.
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Allan de Campos Silva é geógrafo, membro do DataLuta e pesquisador de Pós-Doutorado na Universidade Estadual Paulista (UNESP). É tradutor e editor no Editorial Igrá Kniga.
Bruno Xavier é economista pela PUC-SP, geógrafo pela USP e mestre em Geografia pela USP e pela City University of New York. É tradutor e editor no Editorial Igrá Kniga.
Carlos Preto de Souza é sociólogo, colaborador da Associação de Familiares e Amigos de Presos/as e Internos da Fundação Casa (Amparar) e da Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo.
Dina Alves é advogada abolicionista, presidente da Comissão de Raça e Gênero da OAB/ Iguape e membro do Coletivo Adelinas.
Fábio Pereira Campos Misael é articulador político da Amparar.
Fransérgio Goulart é historiador e diretor executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial.
Letícia Maria Gil de Freitas é articuladora política da Amparar.
Lívia Cangiano é doutora em Geografia e professora da Universidade Federal do Maranhão.
Livia Vidal é articuladora política de Mulheres de Pedra.
Luana de Oliveira é articuladora territorial da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio.
Maria Fernanda Novo é doutora em Filosofia na Unicamp, pós-doutora em Filosofia na USP e pesquisadora visitante na City University of New York.
Maria Railda Alves é co-fundadora e articuladora política da Amparar.
Miriam Duarte Pereira é Co-fundadora e Articuladora Política da Amparar.
*Texto originalmente publicado em Le Monde Diplomatique Brasil com o título de "O debate sobre o abolicionismo no Brasil".
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