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Os despossuídos, Ursula K. Le Guin

O trecho a seguir, do romance de 1974, foi selecionado como leitura prévia para a oficina de escrita abolicionista

Ursula K. Le Guin, Os Despossuídos (1974)


Trecho selecionado


[...]


Eles tinham tirado a ideia de “prisões” dos episódios narrados em A Vida de Odo, que estava sendo lido por todos os que optaram pelos grupos de História. Havia muitos pontos obscuros no livro e ninguém em Campina Vasta sabia História o suficiente para esclarecê-los; mas quando chegaram na descrição dos anos que Odo passou no Forte Drio, o conceito de “prisão” tornou-se claro por si mesmo. E quando um professor itinerante especializado na matéria passou pela cidade, explanou-lhes o assunto, com a relutância de um adulto recatado sendo forçado a explicar uma ideia obscena a crianças. Sim, disse ele, uma prisão era um lugar onde o Estado deixava as pessoas que lhe desobedeciam as leis. Mas por que elas não abandonavam o lugar? Não podiam sair, as portas eram trancadas. Trancadas? Como as portas de um caminhão em movimento, para impedir que se caia, seu imbecil! Mas o que é que elas faziam dentro do lugar o tempo inteiro? Nada. Não havia nada para se fazer. Vocês já viram fotos de Odo numa cela da prisão de Drio, não viram? A expressão de uma paciência desafiante, a cabeça grisalha inclinada, as mãos cruzadas, imóvel, na penumbra ameaçadora. Às vezes os prisioneiros eram condenados ao trabalho. Condenados? Bem, isso quer dizer que um juiz, uma pessoa a quem a Lei confere poderes, ordenava que executassem um trabalho físico qualquer. Ordenava? E se eles não quisessem fazer? Bem, eram forçados a fazê-lo; se não trabalhassem eram espancados. Um arrepio espalhou-se pelas crianças que o ouviam, todas em seus onze ou doze anos, pois nenhuma delas jamais tinha sido espancada, ou visto alguém ser espancado, salvo num acesso de cólera, breve e pessoal.

Tirin fez a pergunta que estava em todas as mentes.

— Você quer dizer que muitas pessoas espancavam uma única?

— Sim.

— E por que os outros não impediam?

— Os guardas tinham armas. Os prisioneiros não — respondeu o professor. Falava com a violência de alguém forçado a dizer coisas detestáveis e sentia-se embaraçado.

A mera atração da perversidade aproximou Tirin, Shevek e três outros garotos. As garotas foram excluídas do grupo e não sabiam dizer por quê. Tirin tinha descoberto uma prisão ideal, debaixo da ala esquerda do centro de aprendizagem. Era um espaço que mal dava para alguém sentar-se ou deitar-se, formado por três paredes de concreto da fundação e tendo o piso do centro por teto; como as fundações eram parte de uma forma de concreto, o chão do espaço era a continuidade das paredes e uma laje maciça de pedra esponjosa poderia vedá-lo completamente. Mas a porta tinha de ser trancada; descobriram que dois esteios acunhados entre as paredes da fundação e a laje o fechariam de forma assustadoramente definitiva. Ninguém que lá dentro ficasse conseguiria abrir uma porta assim.

— E a luz?

— Não tinha luz — disse Tirin. Falava de coisas assim com autoridade, porque sua imaginação o levava diretamente a percebê-las. Usava todos os fatos que lhe davam a conhecer, mas não eram os fatos a base daquela segurança. — Deixavam os prisioneiros sentados no escuro, no Forte Drio. Durante anos.

— Mas é preciso ar, mesmo assim. Essa porta se encaixa como uma tampa acoplada. Temos de fazer um buraco.

— Levaremos horas para furar um buraco nessa pedra. E de qualquer jeito, quem vai ficar tanto tempo aí dentro para chegar a sentir falta de ar?

Coro de voluntários e candidatos.

Tirin os olhou com ar de desdém.

— Vocês são todos loucos. Quem vai mesmo querer ser trancado num lugar desse? E para quê? A ideia de se fazer a prisão tinha sido dele e isso lhe bastava. Nunca tinha se dado conta de que apenas a imaginação não basta a certas pessoas; elas tinham de entrar na cela, tinham de tentar abrir a porta que não se pode abrir.

— Quero ver como é — disse Kadagv, um garoto de doze anos, com o peito largo e o ar sério e prepotente.

— Ponha essa cabeça para funcionar! — disse Tirin com sarcasmo, mas os demais apoiaram Kadagv.

Shevek foi apanhar uma broca na oficina e eles fizeram um buraco de dois centímetros na “porta” na altura do nariz. Levaram quase uma hora, como previra Tirin.

— Quanto tempo quer ficar lá dentro, Kad? Uma hora?

— Escutem — disse Kadagv —, se eu sou o prisioneiro não posso decidir. Não sou livre. São vocês que têm de decidir quando vão me deixar sair.

— Justo — disse Shevek, enervado por essa lógica.

— Você não pode ficar preso muito tempo, Kad. Eu também quero experimentar! — disse Gibesh, o mais novo de todos. O prisioneiro não se dignou a responder. Entrou na cela. Levantaram a porta e a colocaram no seu lugar com um estrondo; os quatro carcereiros acunharam os esteios, martelando-os com entusiasmo. Amontoaram-se junto ao buraco-respiradouro para ver o prisioneiro, mas como só entrava luz na prisão pelo buraco, nada puderam ver.

— Não suguem o ar desse pobre imbecil!

— Sopra um pouco lá dentro.

— Peida no buraco!

— Quanto tempo vamos deixá-lo?

— Uma hora.

— Três minutos.

— Cinco anos.

— Faltam quatro horas para as luzes serem desligadas. Acho que chega.

— Mas eu quero experimentar.

— Está bem; nós deixamos você aí a noite inteira.

— Bem, eu quis dizer amanhã.

Quatro horas depois arrancaram os espeques e libertaram Kadagv. Saiu tão senhor da situação quanto entrara, disse que estava com fome e que aquilo não era nada; que tinha sobretudo dormido, apenas.

— Você toparia outra vez? — perguntou-lhe Tirin em desafio.

— Claro.

— Não, agora é minha vez…

— Cale a boca, Gib. E agora, Kad? Você entraria ali outra vez sem saber quando vamos deixá-lo sair?

— Sim.

— Sem comida?

— Eles alimentavam os prisioneiros — disse Shevek. — E isso é que é o mais estranho de tudo.

Kadagv levantou o ombro. Essa demonstração arrogante de segurança era insuportável.

— Olhe aqui — disse Shevek para o mais novo —, vá pedir umas sobras na cozinha e traga também uma garrafa de outra coisa qualquer cheia de água. — Voltou-se para Kadagv. — Vamos lhe dar uma sacola cheia de troço e você pode ficar no buraco o tempo que quiser.

— O tempo que vocês quiserem — corrigiu Kadagv.

— Está bem. Entre aí! — A segurança de Kadagv fez surgir a veia satírica e teatral de Tirin. — Você é um prisioneiro. Não responda a quem falar com você. Compreende? Vire-se. Ponha as mãos na cabeça.

— Para quê?

— Já quer desistir?

Kadagv encarou-o com o ar contrariado.

— Você não pode perguntar por quê. Porque se você perguntar nós poderemos espancá-lo. Porque poderemos lhe dar uns chutes nos culhões e você não poderá devolver os chutes. Porque você não é livre. Então, quer mesmo ir até o fim?

— Claro. Pode me bater.

Tirin, Shevek e o prisioneiro ficaram encarando-se, formando um grupo estranho e tenso em volta da lanterna, na escuridão, em meio às paredes maciças da fundação do edifício. Tirin sorriu, arrogante, debochadamente.

— Não me diga o que fazer, seu aproveitador! Cale-se e vá já para aquela cela! — E quando Kadagv voltou-se para obedecer, Tirin empurrou-lhe as costas com força e o fez esparramar-se no chão. Ele deu um gemido agudo de surpresa ou dor e sentou-se segurando um dedo que arranhara ou torcera na parede de fundo da cela. Shevek e Tirin ficaram em silêncio, imóveis, sem expressão nenhuma no rosto, cônscios de seus papéis de guardas. Agora não estavam mais representando esse papel, era o papel que os estava representando. Os mais jovens voltaram trazendo um pedaço de pão de holumínia, um melão e uma garrafa com água. Aproximaram-se conversando, mas o estranho silêncio da cela os atingiu de imediato. Empurraram a comida e a água para o interior e a porta foi levantada e escorada. Kadagv ficou sozinho na escuridão. Os outros reuniram-se em volta da lanterna; Gibesh sussurrou:

— E onde é que ele vai mijar?

— Na cama — respondeu Tirin com uma objetividade sardônica.

— E se ele tiver vontade de cagar? — perguntou Gibesh, dando em seguida uma gargalhada estridente e espalhafatosa.

— O que você vê de tão engraçado em cagar?

— Eu estava pensando... e se ele não puder ver no escuro... — Gibesh não soube explicar direito sua fantasia hilariante. Todos começaram a rir sem saber por quê, dando gargalhadas até ficarem sem fôlego. Todos eles sabiam que o garoto trancado podia ouvir as gargalhadas.

As luzes do dormitório infantil já estavam apagadas, e muitos adultos já tinham se recolhido, embora houvesse uma ou outra luz acesa nos domicílios. A rua estava vazia. Os garotos a desceram às carreiras, dando risadas e gritando um com o outro, excitados pela satisfação de compartilhar um segredo, de perturbar o sossego alheio, unidos pela maldade. Acordaram metade das crianças nos dormitórios, brincando de esconde-esconde pelos corredores e por entre as camas. Nenhum adulto interferiu. O tumulto não tardou a cessar.

Tirin e Shevek ficaram muito tempo sentados na cama de Tirin, aos sussurros. Chegaram à

conclusão de que Kadagv tinha pedido, e iria portanto ficar duas noites inteiras preso.

O grupo reuniu-se à tarde na oficina de reciclagem de madeira e o contramestre perguntou por Kadagv. Shevek trocou um rápido olhar com Tirin. Sentiu-se esperto, teve um sentimento de poder ao não dar nenhuma resposta. E no entanto, quando Tirin respondeu calmamente que ele devia ter-se reunido a outro grupo de trabalho naquela tarde, Shevek ficou chocado com a mentira. Seu sentimento secreto de poder o deixou subitamente pouco à vontade: as pernas coçavam-lhe, suas orelhas ardiam. Quando o contramestre dirigiu-lhe a palavra ele deu um pulo, ou de susto, ou de medo, ou por um sentimento desses qualquer, um sentimento que até então ele desconhecia, semelhante ao embaraço, mas muito pior; um sentimento profundo e abjeto. Não parou de pensar em Kadagv enquanto tapava e areava os orifícios de pregos nas pranchas triplas de holumínia e as areou até devolver-lhes a maciez de seda. Toda vez que voltava-se para seu íntimo, deparava-se com Kadagv. Era terrível.

Gibesh, que tinha ficado de guarda, aproximou-se de Tirin e Shevek depois do jantar, com um ar apreensivo.

— Acho que ouvi Kad dizer alguma coisa lá de dentro. Falou com uma voz meio esquisita. Houve uma pausa.

— Vamos já soltá-lo — disse Shevek.

Tirin o atacou:

— Ora Shev, não me venha com pieguice, não seja altruísta! Deixe-o ficar até o final, para que possa se respeitar quando sair.

— Altruísmo nada. Eu quero é ter respeito por mim mesmo — disse Shevek e pôs-se a caminho do centro de aprendizagem. Tirin o conhecia, não perdia mais tempo discutindo com ele, mas o seguiu. Os garotos de onze anos seguiram atrás deles. Engatinharam por baixo do edifício até a cela. Shevek desprendeu um espeque e Tirin o outro. A porta da prisão caiu para trás com uma pancada

Surda.

Kadagv estava deitado de lado e todo enroscado no chão. Ficou sentado, depois levantou-se lentamente e saiu. Encurvava-se sob o teto baixo além do necessário e a luz da lanterna o fez piscar muito, mas não parecia mudado. O fedor que saiu com ele era insuportável. Tinha tido, por uma razão qualquer, uma diarreia. A cela estava empestada e em sua camisa havia borrões de uma matéria fecal amarela. Quando ele os percebeu à luz da lanterna, tentou escondê-los com a mão. Ninguém falou muito.

Só depois de terem quase se arrastado para sair de baixo do edifício, e quando já estavam a caminho do dormitório, é que Kadagv perguntou:

— Quanto tempo durou?

— Umas trinta horas, incluindo as quatro primeiras.

— Um bocado de tempo — disse Kadagv sem muita convicção.

Depois de levá-lo até as duchas para que se lavasse, Shevek correu até as privadas. Inclinou-se sobre uma delas e vomitou. Os espasmos não o deixaram em paz por uns quinze minutos. Quando cessaram, ele estava trêmulo e exausto. Foi para o salão comum do dormitório, leu um pouco de Física e foi deitar-se cedo. Nunca nenhum dos cinco garotos voltou à prisão debaixo do centro de aprendizagem. Nenhum deles mencionou o episódio, a não ser Gibesh, que dele se gabou para alguns garotos e algumas garotas mais velhos do que ele; mas eles não entenderam nada e ele mudou de assunto.


[...]


Tradução Danilo Lima de Aguiar. Editora Nova Fronteira, 1978.




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