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POR UMA ONE HEALTH ESTRUTURAL

CIRCUITOS CAPITALISTAS DE PRODUÇÃO DE DOENÇAS


Rob Wallace, Luke Bergmann, Richard Kock, Marius Gilbert, Lenny Hogerwerf, Rodrick Wallace e Mollie Holmberg


Patos semi-domesticados retornando sozinhos à fazenda depois de um dia no Lago Poyang, província de Jiangxi, China, outubro de 2007. Foto de Marius Gilbert.

 

A nova abordagem a partir da concepção de “One World, One Health” [Um mundo, uma saúde] integra investigações sobre a vida selvagem, a produção pecuária, a agricultura e a saúde humana por meio de um contexto ecossistêmico (Zinsstag, 2012; Van Helden, P. D., Van Helden, L. S. & Hoal, 2013; Barrett & Osofsky, 2013). O esforço reúne médicos, veterinários e ecólogos, a partir do entendimento de que muitas espécies espalham doenças infecciosas, crônicas e ambientais (Hueston et al.,2013). Essa abordagem tem como precedentes, por exemplo a concepção de “One Medicine” [medicina única], tal como Calvin Schwabe a desenvolveu na conferência “Doenças em Evolução” em Woods Hole, Massachusetts, ou as investigações do fundador da medicina social, Rudolf Virchow, e do veterinário do século XVIII Félix Vicq-d’Azyr, que conectaram em diferentes níveis a saúde humana e a animal em contextos ecológicos específicos (Schwabe, 1984; Wilson, Levins & Spielman, 1994; Saunders,2000; Morens, 2003). O interesse renovado parece impulsionado tanto por questões práticas quanto pelo desenvolvimento teórico das áreas afins, como a ecossaúde e as elaborações da complexidade nas ciências (Webb et al., 2010; Carpenter et al., 2009). As complicações associadas ao surpreendente transbordamento do altamente patogênico influenza A (H5N1) (gripe aviária) de aves para seres humanos no fim do século xx animou a reunião de cientistas de várias disciplinas para abordar a influenza e outras doenças emergentes por meio das agências internacionais de saúde (Anderson et al., 2010).

A nova One Health se apresenta como um cadinho para testar combinações de abordagens especializadas em saúde da população (Kahn et al., 2012). As doenças animais e as humanas, nas quais agora é mais difícil intervir, surgem e se espalham em função de causas múltiplas, interagindo em várias escalas e domínios bioculturais. Variadas epistemologias são necessárias para lidar com essas doenças. De fato, retrospectivamente, muitas das infecções humanas mais comuns hoje surgiram nas civilizações antigas por meio de tais sinergias (McNeill, 2010). Animais domesticados atuaram como fonte para difteria, influenza, sarampo, caxumba, peste, coqueluche, rotavírus a, tuberculose, doença do sono e leishmaniose visceral (Pearce--Duvet, 2006; Wolfe, Dunavan & Diamond, 2007). Alterações ecológicas provocadas nas paisagens por intervenção humana contribuíram para selecionar o transbordamento da cólera a partir das algas, da malária a partir das aves, e hiv/aids, dengue, febre amarela e malária a partir de primatas selvagens.

Os novos patógenos estimularam inovações na medicina e na saúde pública, no tratamento e na profilaxia individuais, na quarentena terrestre e marinha, nos enterros compulsórios, nas enfermarias de isolamento, no tratamento de água e nos subsídios para doentes e desempregados (Watts, 1997; Colgrove, 2002). Cada uma das séries de invenções agrícolas e industriais, acompanhadas de mudanças demográficas aceleradas e novos assentamentos humanos, reposicionou populações de hospedeiros potenciais, o que levou a episódios de novos transbordamentos (Kock, Alders & Wallace, 2001). Desde então, os impactos ambientais, entre os quais as mudanças climáticas, atingiram uma escala geológica (Ding, Mearns & Wadhams, 2013). Enquanto produzimos uma variedade sem precedentes de mercadorias, o que resulta no aumento da extração de recursos e acarreta a produção de diferenças materiais e conceituais entre a economia e a ecologia, vários hábitats foram degradados, assim como a biodiversidade, a função dos ecossistemas e as fontes de recursos, tais como os cursos d’água, os nutrientes do solo e os estoques oceânicos (McMichael, 2009; Foster, Clark & York, 2010). Esses impactos, em conjunto, promoveram o surgimento de doenças em várias categorias de hospedeiros (Jones et al., 2013).

A “Revolução Pecuária”, em particular, interferiu repetidamente sobre esses impactos, por meio da criação, do processamento e da distribuição de animais de crescimento rápido em algumas grandes empresas do agronegócio (Liverani et al.,2013). A pecuária industrial impulsiona uma nova demanda por proteínas de carne e, tal como seus antecessores neolíticos, promove a disseminação de patógenos, sobretudo nos chamados países em desenvolvimento (Jones et al., 2013; Liverani et al., 2013). Contudo, os efeitos sobre o gado são indiretos. Enquanto o crescimento do setor apresenta oportunidades econômicas, por meio da produtividade integrada, a concorrência marginaliza os pequenos produtores, expulsando-os dos mercados (De Haan, Gerber & Opio, 2010; McMichael, 2012). Por sua vez, a insegurança alimentar resultante, a destruição ambiental e as percepções do mundo que ela produz acabam servindo como justificativa para uma determinada ciência securitizada pelo capital, que fortalece a disseminação do próprio modelo agroalimentar que organiza os ciclos de economia e doença (Davis,2007; Sparke, 2014). [1]

Os cientistas sociais começaram a catalogar os mecanismos \pelos quais a propagação das doenças encontra a sua mediação social. Os antropólogos Goldberg, Paige e Chapman (2012) analisaram o Projeto Kibale, da EcoHealth, no Parque Nacional Kibale, no oeste de Uganda, onde avaliaram as conexões locais específicas entre a saúde humana, a saúde animal e a paisagem circundante, considerando como elementos o crescimento populacional, a fragmentação florestal, a pobreza rural, as tradições culturais e as mudanças na agricultura. A dinâmica de infecção multiespécies, inclusive para a bactéria Escherichia coli, parece estar ligada às mudanças agroecológicas em escala e às práticas comportamentais diretamente relacionadas à transmissão. Por exemplo, os seres humanos que cuidam do gado manifestaram alto risco de transportar cepas de Escherichia coli específicas de primatas selvagens locais, cada vez mais marginalizados pelo desflorestamento. Macacos-de-cauda-vermelha (Cercopithecus ascanius) que fugiram das áreas desmatadas e foram se alimentar nas colheitas das fazendas tendiam a apresentar a bactéria Escherichia coli característica de humanos e animais de criação.

Outros estudos investigaram os caminhos percorridos pelas doenças em contextos mais industrializados. Por exemplo, Paul et al. (2013) analisam a cadeia de valor da produção tradicional de aves em Phitsanoulok, na Tailândia. A equipe descobriu que 28 criadores, matadouros, distribuidores e empresas de transporte — intermediários entre agricultores e matadouros — tiveram um papel pouco reconhecido na disseminação do HPAI H5N1 altamente patogênico nessa região. O abate acelerado das aves em meio ao surto facilitou a propagação do vírus e parece ter suas causas relacionadas à percepção dos riscos, às margens econômicas e à remuneração dos envolvidos na cadeia de mercadorias.

Outras ciências sociais situam a abordagem One Health no interior das economias políticas locais e globais. Giles-Vernick, Craddock e Gunn (2010), por exemplo, resgatam as raízes históricas de várias pandemias com a expectativa de que estudos comparativos ajudem a divulgar diferenças e semelhanças inesperadas entre os surtos. O trabalho desses autores tem como objetivo extrair as complexidades inerentes às respostas da sociedade que os estudos de um único local costumam deixar de lado, o que pode incluir “as cargas desiguais de sofrimento […] a que a globalização [o] submete”. Sparke e Anguelov (2012) situam a política do conhecimento epidemiológico dentro de uma divisão socioeconômica entre o Norte e o Sul globais, especificamente no que concerne ao gerenciamento de riscos, ao acesso a medicamentos, à caracterização dos riscos na mídia e, antes de tudo, ao próprio surgimento de novas doenças. Forster e Charnoz (2013) entendem que tais desigualdades também surgem de uma “diplomacia global da saúde” coercitiva — tanto em termos governamentais quanto filantrópicos —, cujos esforços se comprometem com a diminuição dessa divisão. Keck (2010) descreve essa dinâmica de poder como uma extensão da própria medicina colonial. As disputas são parte dos conflitos, em outra escala, ao longo do curso político do desenvolvimento econômico das “fronteiras sentinelas”, onde novas epizootias surgem, assim como das conjunturas epistemológicas em que as disciplinas se encontram.

As lacunas de pesquisa, no entanto, persistem. Neste artigo realizamos uma análise crítica da concepção One Health, conforme concebida até hoje, assim como sugerimos pontos de partida adicionais para cientistas sociais de várias áreas, como a antropologia médica, a epidemiologia ecossocial, a biopolítica e a ecologia política da saúde, todos os quais já abordam vários aspectos da relação entre ciências sociais e epidemiologia (Kleinman et al., 2008; Lowe, 2010; Krieger, 2001; Braun, 2007; Rayner & Lang, 2012). Por mais que essas perspectivas se integrem para compreender o contexto social da saúde da população, até o momento nenhuma delas forneceu provas estatísticas sobre as conexões prováveis entre a acumulação global de capital e os determinantes da saúde ecossistêmica, tal como sugerido, entre outros — como Bond (2012), Collard & Dempsey (2013); Hinchliffe et al. (2013) —, por Krieger (2001).

Para cumprir esse objetivo, também apresentamos aqui uma abordagem que busca modelar os mecanismos pelos quais o contexto socioeconômico mais amplo, em grande parte ausente da abordagem One Health, ajuda a selecionar transbordamentos xenoespecíficos. Especificamente, pela primeira vez, introduzimos uma pesquisa inédita, ainda em andamento, que quantifica a relação entre os circuitos do capital, do qual emergem muitas novas doenças, e sua dinâmica subsequente, seja do ponto de vista dos patógenos, da sua evolução genética ou da expansão socioespacial. Ou seja, propomos a One Health estrutural, capaz de formalizar empiricamente as conexões entre as mudanças na paisagem conduzidas pelo capital e as mudanças na vida selvagem, no meio agrícola e na saúde humana. Se esses esforços forem bem-sucedidos, pesquisadores serão capazes de identificar as combinações estatisticamente relevantes entre circunstâncias agroecológicas locais e relações econômicas que — estendendo-se além dos epicentros específicos — iniciam a disseminação de doenças entre as espécies.


A CIÊNCIA E A ECONOMIA POLÍTICA DA ONE HEALTH


Integrar os estudos de saúde entre espécies parece ser um passo à frente na capacidade de previsão e controle de doenças. Uma pesquisa bibliográfica conduzida por Rabinowitz et al. (2013) reúne uma série de estudos que oferecem evidências da viabilidade da cooperação intersetorial, assim como os benefícios xenoespecíficos advindos da vacinação animal. O grupo de pesquisadores resgata outros estudos que mostram melhorias na previsão da dinâmica de doenças locais específicas e na implementação de intervenções bem-sucedidas. Conforme apresentado até agora, no entanto, a abordagem One Health deixa de lado as principais fontes de causalidade, uma omissão que, para algumas de suas análises, pode acabar revertendo as conclusões iniciais. Por exemplo, a apresentação dos esforços no controle de doenças pode combinar fatores de risco próximos — também o rastreamento dos contatos e da vacinação, a seleção e a biossegurança implementados em resposta — com as causas subjacentes de um surto (De Vreese, 2009). Uma doença não é sinônimo do seu patógeno nem deve ser reduzida ao mapa de infectados, estando ou não inserida em um contexto de One Health, capaz de reconhecer as ecologias funcionais compartilhadas por seres humanos, gado e vida selvagem.

Entre essas investigações, podemos encontrar a pesquisa de Preston, Daszak e Colwell (2013) sobre os efeitos do uso da terra no Peru na emergência de doenças. Embora as especificidades dos efeitos do desmatamento na Amazônia sobre a malária sejam rigorosamente documentadas, o estudo é emblemático de um modelo de saúde que confunde o local de origem da emergência do patógeno com a geografia da causalidade. [2] Tais geografias absolutas geralmente perdem de vista as relações socioespaciais entre os atores econômicos globais, cujos efeitos podem atingir a própria mecânica da modelagem (Yeung, 2005). Ao apresentar mapas atualizados da pecuária global, Robinson et al. (2014) relatam que, à medida que a produção agrícola se intensifica,


torna-se cada vez mais separada da base de recursos da terra (por exemplo, quando alimentos para ração são importados de lugares completamente diferentes) e, portanto, dificulta a previsão com base em variáveis agroecológicas espaciais. O efeito é particularmente acentuado no caso da produção de galinhas e porcos, uma vez que os locais das unidades de produção intensiva geralmente têm mais a ver com acessibilidade a mercados de consumo ou de insumos do que com as características agroecológicas da área, quantificáveis por meio de variáveis detectadas remotamente.

As consequências para a epidemiologia vão além do nível técnico. De volta às premissas fundamentais subjacentes à medicina colonial — que, tal como anota Tilley (2004), em seu auge continha a própria “ecologia da complexidade” —, a One Health, em sua forma absoluta, pode levar os cientistas ao que Connell (2007) identifica como uma relação metrópole/colônia para a atualidade, com a admoestação relativa ao desmatamento e ao risco de doenças no Sul global. Jim Robbins, por exemplo, cita um cientista da EcoHealth: [3]


Ao mapear a invasão na floresta, você pode prever onde a próxima doença poderá surgir […]. Então, vamos para as margens das aldeias, para lugares onde as minas acabaram de ser abertas, áreas onde novas estradas estão sendo construídas. Vamos conversar com pessoas que vivem nessas zonas e dizer: “O que você está fazendo é potencialmente um risco”.

Embora a intenção seja compreensível, atualmente essas crises ambientais não se limitam às zonas de surto, sendo impulsionadas em grande parte por ajustes estruturais de uma variedade de trocas e pela doutrina da economia de exportação, originada do próprio núcleo do capital (Foster, Clark & York, 2010; Gindin & Panitch, 2012). O capital — que apoia os modelos de desenvolvimento e produção que dão origem ao surgimento de doenças nas regiões subdesenvolvidas do mundo — inverte a causalidade, tornando Nova York, Londres e Hong Kong (os principais centros do capital global) três das piores “zonas de perigo” do mundo (Mansfield, Munroe & McSweeny, 2010; Liberti, 2013 [2011]; Pearce, 2012). Juntamente com fundos soberanos, empresas estatais e governos, investimentos do tipo private equity em forma de agronegócios e empresas agroalimentares, desenvolvedores de biocombustíveis e investidores institucionais privados — fundos mútuos, bancos, fundos de pensão, fundos de cobertura (hedge), fundos de universidades e fundos de private equity — estão acelerando as compras de terras agrícolas no Sul global, onde consolidam a produção de alimentos e especulam sobre os preços da terra e de onde exportam para o mercado global, com consequências graves para os pequenos proprietários e para o meio ambiente (Daniel, 2012). [4] O Land Matrix Observatory lista 959 acordos transnacionais de terras consolidados em todo o mundo, em junho de 2014, o que cobre quase 36 milhões de Hectares. [5] O Instituto Oakland estima que quinhentos milhões de dólares estejam investidos apenas em terras agrícolas africanas, com expectativas de retorno de 25% a partir da produção e da valorização da terra, por meio de contratos de arrendamento que podem durar até 99 anos e, dependendo do acordo, garantir direitos ilimitados a água, lucros, repatriação patrimonial e isenções ou reduções nas taxas sobre exportação, impostos sobre o valor acrescentado ou impostos sobre lucros. [6]

Nesse sentido, a One Health, como ciência, pode contribuir para o apagamento do contexto, mesmo enquanto descreve as múltiplas fontes de causa e efeito epidemiológico. Kahn et al. (2012), um entre uma variedade de exemplos, descrevem o processo pelo qual o vírus Nipah surgiu em 1998 na Malásia, com o desmatamento do habitat de morcegos, que migraram para as árvores próximas das fazendas de criação de gado, onde espalharam o vírus aos porcos, os quais posteriormente infectaram seres humanos. Como em outros estudos, a descrição de Kahn et al. deixa de fora as empresas e os acordos de terra que dão condições para a intensificação da produção suinícola associada ao transbordamento, assim como evita comentar as mudanças econômicas mais amplas na criação de gado na região que sustentam a dinâmica local (Pulliam et al., 2012; Otte & Grace, 2012).

Os praticantes da One Health certamente estão familiarizados com a noção de contexto amplo. Uma atenção considerável é dedicada às fronteiras epistemológicas do paradigma. Ao escrever, de maneira convincente, sobre as contribuições econômicas e sociais para o surgimento de doenças, em uma série de editoriais da EcoHealth, Zinsstag et al. (2012) anunciam que


o trabalho intercultural no relacionamento humano/animal exige um esclarecimento do próprio paradigma, de uma maneira autorreflexiva. “Qual é a formação pessoal, cultural e ética que determina meu relacionamento com os animais e meu conceito de saúde única?” As respostas determinam criticamente o valor emocional ou financeiro atribuído aos animais. Isso poderia levar a um novo subjetivismo na ciência? Por exemplo, a One Health pode ser influenciada por ramificações filosóficas capazes de determinar o método da análise econômica do custo de infecções transmissíveis entre humanos e animais.

A busca por tal formulação é projetada sobre termos interculturais conciliatórios: buscar a One Health a partir de outros pontos de vista. Uma expectativa tão modesta pode limitar a One Health que se produz. Parece haver pouco esforço na identificação dos proprietários e produtores específicos. Os atores da doença são classificados por abstrações — suscetíveis, infectados e recuperados — codificadas para equações simultâneas que podem fazer desaparecer as epidemiologias socializadas (Gould, 1993). Até hoje, mesmo o trabalho “socioeconômico” conduzido sob essa rubrica tende a traçar a logística mais ampla subjacente à geografia da doença. Hosseini et al. (2010), por exemplo, analisam os voos aéreos diretos e indiretos em relação com o comércio total de aves e suínos e os gastos com saúde a fim de desenhar um indicador da capacidade de um país em detectar novos casos e, assim, projetar retrospectivamente a disseminação precoce da gripe suína H1N1 em 2009, bem como outras influenzas pandêmicas.

Tais estudos são úteis. É de grande valia descobrir como impedir que um novo patógeno se espalhe entre animais e humanos, qualquer que seja o sistema em que nos encontremos historicamente. Ao mesmo tempo, existem custos profundos associados à reificação de um status quo que, antes de tudo, produziu a própria ameaça. Trabalhos como esses podem promover um tecnicismo que atua como uma ideologia in absentia, deslegitimando implicitamente as alternativas por meio de uma abordagem estreita a um grande projeto não examinado, que já está em andamento (Mészáros, 2010). De fato, se os pontos de vista propostos são suficientemente limitados, as pesquisas sobre doenças pressupõem o neoliberalismo do Estado e do mercado como parte da ordem natural, mesmo que outros estudos mostrem que os mecanismos do sistema sejam centrais para o problema da doença (Wallace & Kock, 2012).

Tal economia política nos demanda saber se a atual infraestrutura epidemiológica pode dar conta de entender a totalidade dos elementos que afetam os problemas abordados. [7] Como, por exemplo, o Banco Mundial ou a Organização Mundial da Saúde abordam surtos originados nas próprias instituições das quais dependem para financiamento e legitimação? Um relatório recente do Banco Mundial oferece um estudo devidamente documentado para a One Health. Smith et al. (2010) buscaram convencer os países mais ricos do mundo a investir em ecossaúde e conservação, recorrendo aos custos inerentes a uma eventual falha por inação: ao menos oitenta bilhões de dólares em prejuízos devido aos surtos de Nipah, vírus do Nilo ocidental, Sars, gripe aviária, doença da vaca louca e febre do Vale do Rift somente entre 1997 2009. [8] Os autores propõem investir um pouco agora — entre 1,9 bilhão e 3,4 bilhões de dólares anualmente, divididos por 139 países — para evitar danos epidemiológicos consideráveis, mesmo com a baixa probabilidade, de ano para ano, de uma pandemia mortal. Os ganhos tendem a aumentar, se promovermos campanhas de redução da pobreza, segurança alimentar e inspeção sanitária. O relatório também entende a One Health, ao compartilhar os custos dos projetos e laboratórios de vacinação animal e humana, como uma forma de institucionalizar os tipos de consolidação de serviços propostos rotineiramente sob austeridade financeira (Stine & Chokshi, 2012).

As análises das ONGS estão recheadas desses “apelos de Prometeu”. Tais relatórios também evitam regularmente abordar a força estruturante do capital na seleção de patógenos mortais, segundo um número cada vez maior de evidências (Jones et al., 2013; Otte et al., 2007; Graham et al., 2008, Leibler et al., 2009; Drew, 2011; Wallace, R. G., 2009a). Juntas, as últimas citações descrevem um sistema insensível às plataformas que cria para o surgimento dos patógenos. Seus ciclos de produção degradam a resiliência dos ecossistemas para doenças, à medida que os recursos naturais são transformados em mercadorias, complicam intervenções epidemiológicas tratando seres humanos e animais antes de tudo como mercadorias e globalizam o transporte de mercadorias, pessoas, animais e patógenos. De fato, seguindo o geógrafo Jason Moore (2011), a produção capitalista não possui uma epidemiologia própria, porque ela é a própria epidemiologia.

A falha em abordar um contexto tão fundamental pode, por si só, servir a um propósito, ainda que não intencional. Na atual recessão global, as intervenções epidemiológicas representam cada vez mais as argumentações declinistas que justificam a apropriação neoliberal de terras, o desmatamento indiscriminado e a intensificação agrícola que, antes de tudo, sustentam muitos dos surtos epizoóticos (Wallace & Kock, 2012; Davis, 2006). As causas dos surtos no Sul global são apresentadas como justificativa para eliminar todas as culturas agrícolas e economias alternativas, exceto as formas de uso intensivo de capital e “biosseguras”, as quais, na verdade, são deseconomias de escala, implicadas em surtos recentes e de novas cepas: dentre os quais, as gripes aviárias de alta e baixa patogenicidade, febre Q, febre aftosa, vírus da síndrome reprodutiva e respiratória em porcos, o piolho de salmão Lepeophteirus salmonis e o ebola da África Ocidental (Liverani et al., 2013; Wallace, R. G., 2009a; Myers et al., 2006; Gilchrist et al., 2007; Evans, Medley & Green, 2008; Mennerat et al., 2010; Leibler, Carone & Silbergeld, 2010; Van Boeckel et al., 2012a, 2012b; Smit et al., 2012; Ercsey-Ravasz et al., 2012; Bausch & Schwarz, 2014). Mais especificamente, as monoculturas de espécies geneticamente selecionadas de animais vivos, altas densidades populacionais, produção rápida e aumento das exportações parecem promover maior propagação e evolução de patógenos.

Por outro lado, uma das pesquisas conduzidas sob a concepção da One Health parece imediatamente passível de expandir seu alcance. Engering, Hogerwerf e Slingenbergh (2013) dividem as doenças infecciosas em quatro categorias. Embora cada uma tenha seu próprio conjunto de fatores típicos, como os autores as descrevem, também possuem seu próprio vínculo com os fluxos de produção e de capital. Por exemplo, doenças endêmicas, a primeira das categorias desses pesquisadores, se destacam sobretudo em países subdesenvolvidos e geralmente estão associadas à pobreza (Alsan et al., 2011). O surgimento de patógenos em novos hospedeiros está relacionado aos próprios modelos econômicos que causam a destruição do habitat da fauna silvestre, por meio da qual as doenças da fauna silvestre se espalham para os seres humanos, bem como aos modelos que apoiam a produção de aves e animais (Jones et al., 2013). A introgressão de patógenos está frequentemente relacionada ao comércio ou à expansão gradual provocada pelas mudanças climáticas e as mudanças no uso da terra (Blackwell, 2010; Brückner, 2011). Finalmente, o aparecimento de patógenos com novas características por meio de transbordamentos ou de resistência antimicrobiana foi repetidamente relacionado à criação intensiva e com uso preventivo de antibióticos na pecuária (Zhu et al., 2013).


TRÊS POSTULADOS PARA UMA ONE HEALTH ESTRUTURAL


Como uma ciência alternativa poderia ser praticada? Na sua forma mais abrangente, uma perspectiva One Health estrutural incluiria todos os processos fundamentais subjacentes às ecologias da saúde, tais como a propriedade e a produção, remanescentes históricos de longa duração e a infraestrutura cultural por trás das mudanças na paisagem que produzem as ameaças à saúde. Wallace et al. (2010), por exemplo, explicam a origem do influenza no Sul da China considerando os termos do seu “presente histórico”, dentro do qual múltiplos rearranjos virulentos surgiram a partir de uma variedade de agroecologias, as quais se originaram em diferentes épocas, seja por dependência dos caminhos evolutivos, seja por contingência: dos tempos antigos (cultivo de arroz), passando pelo início da modernidade (patos semidomesticados) aos dias contemporâneos (produção intensiva de aves).

Tal perspectiva da One Health atuaria como um fundamento, assim como ofereceria limites dentro dos quais outras abordagens também poderiam atuar, considerando suas problemáticas específicas. Quanto mais próxima a abordagem estiver da base da pirâmide esquemática que relaciona as abordagens de saúde, representada na Figura 1, mais amplo será o conjunto de disciplinas essenciais para a pesquisa de uma doença, bem como para o equilíbrio das possíveis intervenções, com seus impactos positivos e negativos. Mecanismos que promovem doenças na base da pirâmide podem estar localizados em outro espaço-tempo que não coincide necessariamente com o da doença atual, já que se relacionam com os circuitos do capital e com práticas históricas. Mecanismos no topo da pirâmide estão diretamente conectados com a dinâmica da doença (tais como a transmissão de patógenos, os hábitos alimentares dos indivíduos etc.). Claramente, o esquema depende de uma simplificação excessiva, já que omite interações complexas através das escalas que conceitualiza, mas, como sugere o exemplo tailandês, pode ser um ponto de partida para entender como as vulnerabilidades às doenças emergem de processos estruturais, cujas origens se distanciam no tempo, no espaço e variam em relação à causalidade, embora o grau zero do impacto dos processos sobre a terra varie direta e indiretamente (Paul et al., 2013; Van Boeckel et al., 2012a; Gilbert et al., 2008; Gilbert et al., 2007; Walker et al., 2012; Amonsin et al., 2008).

Esse programa, geograficamente explícito, pode ser complementado com uma perspectiva baseada na “história de vida”, capaz de rastrear os meios pelos quais as demandas do mercado sobre a produção pecuária moldam a dinâmica de doenças, seja nos laboratórios e celeiros, seja na cadeia de mercadorias propriamente dita (Allen & Lavau, 2014). Como alternativa, a epidemiologia matemática tradicional já começa a mesclar modelos econômicos e modelagem de doenças (Boni et al., 2013). Essa microeconomia agrícola poderia ser expandida para economias políticas mais amplas de disseminação de doenças. Outras complementações são possíveis, tal como sugerimos a seguir. A partir de agora, apresentaremos três postulados básicos em torno dos quais uma ampla gama de esforços de pesquisa pode ser organizada.


i) DIFERENCIAR A PREDOMINÂNCIA DA CRISE A Figura 1 sugere que algumas das crises e oportunidades às quais respondem os diversos atores agroecológicos, humanos e animais emergem a partir de um amplo escopo de causas, mais amplo do que a incipiente One Health foi capaz de propor até o momento.


Como sugerido anteriormente, a distinção entre tipos de crise pode ser definitiva ao enquadrar a própria natureza das doenças analisadas. O filósofo húngaro István Mészáros (2012) diferencia as chamadas crises episódicas ou periódicas, ocorridas no interior da conjuntura político-econômica estabelecida, e as crises de fundamento, capazes de afetar o próprio quadro. Nas últimas crises estruturais, que historicamente se desenrolam através dos limites internos de uma determinada ordem, as contradições sistêmicas começam a se chocar umas contra as outras. Como no caso do Banco Mundial, cujos paliativos para defender o sistema provocam calamidades que podem aprofundar a própria crise que esses esforços desejavam aliviar. Em conclusão, uma parte crítica da caracterização sistêmica das crises em saúde depende da descompactação das economias mais amplas — financeiras, políticas e epistemológicas — das quais dependem tanto as instituições quanto os paradigmas dominantes.

Uma contextualização como essa pode ser estendida para além das advertências descritivas e operacionalizada empiricamente. Por exemplo, as mudanças episódicas que muitos da One Health perseguem podem ser rastreadas à medida que o fluxo de um regime de capitais muda de um domínio ecossocial para outro, tal como os modelos de resiliência estocástica de Ives permitem acompanhar (Armitage & Johnson, 2006; Hornborg, 2009).


ii) DEIXAR O ALCANCE DA PRÓPRIA CRISE DEFINIR AS QUESTÕES ABORDADAS. As próprias variáveis incluídas pelos cientistas da One Health em seus modelos são produto de uma decisão social (Levins, 1998; Leach & Scoones, 2013). O que os pesquisadores definem como elemento interno ou externo a um modelo, incluindo quais dados concatenar ou excluir, pode impactar significativamente seu resultado — não apenas na magnitude do efeito, ou mesmo na direção, mas na própria definição da natureza da causalidade.


Uma análise realizada a partir de uma sociabilidade aberta, ao mesmo tempo capaz de articular os processos sociais sob os quais a ciência é praticada, pode modificar as premissas sob as quais a investigação é conduzida. De fato, essa abordagem exploratória pode contornar a distinção entre crises estruturais e episódicas. A natureza dos problemas de saúde estudados pode sugerir resoluções mais aleatórias e não fundamentais (Gibson-Graham, Erdem & Özselçuk, 2013).

Por exemplo, o antropólogo Lyle Fearnley (2013) rastreou o mecanismo pelo qual a investigação de um grupo de profissionais da One Health foi forçada a adequar a flexibilidade conceitual do problema que eles abordaram. A equipe tinha como objetivo estudar como as influenzas zoonóticas surgiram dentro e ao redor do Lago Poyang, na China, considerado uma fonte de múltiplos rearranjos (Takekawa et al., 2010a; Takekawa et al., 2010b). Os pesquisadores descobriram que a distinção entre aves domésticas e aves aquáticas selvagens, premissa fundamental do estudo (e das pesquisas de modo geral), não possuía sentido prático:


Quando [o ecologista da FAO Scott Newman] visitou a fazenda dos Wang, essa família, muito amável, o convidou para almoçar, obstinada em manter o mal-entendido de que Newman fosse um investidor estadunidense. Ao mostrar a ele o bando de centenas de saudáveis gansos-africanos e patos-reais, Wang disse a Newman, com orgulho, que a produção de aves poderia ser facilmente aumentada e exportada. Wang também enfatizou que a natureza selvagem de seus gansos os tornava particularmente valiosos.

Aqui, a relação entre agricultura e a pesquisa epizoótica em torno dela passa a manifestar uma dinâmica de codeterminação, ainda que em terreno muito diferente do complexo agronegócio/universidades. Como descreve Fearnley, os agricultores de Poyang manipulam regularmente a distinção entre animais selvagens e domésticos, por razões econômicas, produzindo novos significados e valores, inclusive em resposta aos próprios alertas epidemiológicos emitidos para evitar tais práticas. A equipe da One Health, com a intenção de aprender como os vírus influenza recombinantes realmente surgem, indo, por sua vez, contra a prática comum, optou por deixar a crise definir a questão do estudo, integrando economia e ecologia.


iii) INTEGRAR FONTES DE CAUSALIDADE. Tal integração deve ir além da introdução de diferentes disciplinas. O antropólogo Steve Hoffman (2011) argumenta que a interdisciplinaridade institucionalizada em economias de capital intensivo pode atender às novas demandas de trabalho das universidades estaduais e privadas orientadas à produção de lucro, assim como às demandas de pesquisa “orientada por problemas” capitaneada por fundações privadas e programas de pesquisa e desenvolvimento das corporações. Os biólogos Richard Levins e Richard Lewontin (2007) incluem os efeitos epidemiológicos colaterais resultantes de uma série de dicotomias ontológicas de que cientistas, inclusive epidemiologistas, fazem uso em seus próprios trabalhos: dicotomias entre o acaso e a necessidade, a aleatoriedade e o determinismo, o organismo e o ambiente, natureza e a sociedade.


Uma perspectiva estrutural na One Health pode corresponder melhor à dinâmica dos patógenos que estuda, ao integrar essas divisões. Por exemplo, em uma contribuição vital, Leibler et al. (2009) investigam a ecossaúde da pecuária industrial, descrevendo vulnerabilidades a doenças em conexões específicas para cada cadeia de valor. Algumas conexões da produção avícola, por exemplo, são mais vulneráveis à ocorrência de surtos de influenza do que outras. Sua análise, tão sofisticada quanto qualquer outra da One Health até o momento, acaba por reproduzir um dos pressupostos problemáticos do campo de estudos. Embora, como a equipe descreva, a biologia e a economia — a ontogenia das aves e a produção de mercadorias — operem em paralelo, interagindo entre si, nenhum outro caminho é abordado. A biologia e a economia também se fundem repetidamente em objetos compostos, geralmente com teias complexas de ação humana, de animais e de agentes patogênicos (Harvey, 2006 [1982]; Leonard, 2014). Wallace, por exemplo, supõe que a gripe aviária tenha convergido para o cronograma de produção do agronegócio e que o vírus cultive coortes de aves infectadas, não para o mercado, mas para o próximo celeiro de suscetíveis à disposição. [9]


OPERACIONALIZANDO A ONE HEALTH ESTRUTURAL


O grupo do geógrafo Luke Bergmann estende a convergência entre biologia e economia, para além de uma única cadeia de mercadorias, à própria tessitura da economia global, na iminência da operacionalização de uma possível One Health estrutural. Em pesquisas recentes, Bergmann et al. examinaram de que maneira os processos de globalização contribuem para o surgimento e a persistência das doenças. Por meio de uma análise de nicho que sistematiza as covariáveis a serem inseridas na análise da presença de uma doença, os autores ponderam sobre o papel potencial de variáveis ecológicas locais, tais como o uso do solo, a distribuição de espécies hospedeiras e o clima, assim como as variáveis sociais e os termos da interação humano-ecológica. A equipe analisa os papéis desempenhados pelas interconexões globais, além das variáveis potencialmente causais — facilmente disponibilizadas tanto em termos práticos quanto conceituais, como varreduras da densidade populacional. Tal abordagem relacional é onipresente nas ciências sociais contemporâneas, mas ainda é sub-representada no interior da perspectiva da One Health.

Bergmann et al. estão incluindo covariáveis potenciais, pela primeira vez capazes de quantificar o grau de globalização das paisagens agroecológicas locais, como campos e florestas — e os processos naturais e culturais que as cruzam. As paisagens são atravessadas por cadeias transnacionais de mercadorias e circuitos de capital, o que inclui os circuitos financeiros e produtivos, com efeitos locais críticos. O geógrafo David Harvey (2006 [1982]) argumenta que mesmo os mercados globalizados produzem distribuições anisotrópicas de trabalho, troca e produção. De fato, como observaram os geógrafos econômicos desde Karl Marx, essas polaridades, dinâmicas ao longo do tempo e do espaço, impulsionam inovações na distribuição geográfica do capital e servem como fontes de lucratividade para mercados de estagnação inerente (Marx, 1993 [1885]; Sheppard & Barnes, 1990; Magdoff & Foster, 2014). Um local pode, de repente, tornar-se temporariamente propício à produção pecuária de baixo custo e a um comércio vantajoso, por meio de mudanças na tecnologia, nos transportes, no capital fixo, no preço da terra, na demanda efetiva, na concorrência local, na disponibilidade de crédito, na administração, na disciplina do trabalho e no investimento do Estado (Harvey, 2006 [1982]; Leonard, 2014). A nova geografia da produção e os “ajustes espaciais” estabelecem fortes conexões com as transformações das relações entre sociedade e meio ambiente, atingindo todo o comércio global, e, de acordo com a hipótese do grupo de Bergmann, com impactos estatisticamente significativos na evolução e na disseminação de patógenos. Em conjunto com os precedentes históricos que já abordamos, a mudança da geografia econômica da pecuária deve redefinir a combinação de oportunidades ecológicas e pressões de seleção evolutiva que atuam sobre infecções.

Ao reconstruir os dados do Global Trade Analysis Project 7 [Grupo de análises de mercado global 7], comumente usados para modelar as conexões totais da economia global para fins de negociações comerciais (Narayanan & Walmsley, 2008), Bergmann e Holmberg (2016) estipulam uma pegada agroecológica para o capital — ver Figura 3 (Bergmann, 2013a; Bergmann, 2013b). Os produtos de terras agrícolas, florestas ou pastagens globalizadas contribuem para o consumo ou a acumulação de capital em outros países. Outras paisagens são enredadas principalmente nos circuitos locais de produção e troca (Bergmann,2013a). O autor vai além da caracterização das paisagens que produzem diretamente exportações agrícolas tradicionais, identificando as florestas e os campos que fazem parte das redes de commodities que sustentam empreendimentos de bens e serviços orientados para exportação (Bergmann, 2013a). O geógrafo também diferencia o consumo e a acumulação estrangeiros de bens agrícolas “diretos” (por exemplo, frutas ou grãos); produtos agrícolas refinados ou processados (tecidos, pasta de amendoim, produtos à base de carne); bens manufaturados (eletrônicos e veículos); e serviços (transporte aéreo, seguro, educação).



Como essa varredura dos momentos do circuito global de capitais se conecta com as doenças emergentes? Algumas dessas paisagens estão mais bem conectadas a um surto geocodificado, tal como mostra o Sistema Global de Informações sobre Doenças de Animais da fao (empres-i), além dos simples mapas de uso global da terra, incapazes de diferenciar por posicionamento em relação aos circuitos do capital?

Pode-se desejar inserir outras variáveis, mas, independentemente disso, essa One Health estrutural em particular busca mais do que meras correlações espaciais entre usos da terra e doenças específicas — o que, como observamos, também foi questionado por Robinson et al. (2014). Tal perspectiva deveria ser capaz de diferenciar, por um lado, a proximidade de surtos de capital transnacional em relação a consumidores/trabalhadores transnacionais e meios de subsistência locais ou capital local. Por outro lado, essa abordagem deve ser capaz de ajudar os pesquisadores a descobrir se as doenças que emergem em paisagens econômicas/agroecológicas estão ligadas à agricultura, à manufatura ou até a serviços orientados para a exportação. Dada a natureza sinérgica do aparecimento de doenças, abordagens que vão além do local e que sejam lineares são cada vez mais viáveis e fundamentais para o estudo empírico dos processos sociedade/meio ambiente dentro da One Health, além de serem fundamentais para o futuro do campo.

Por exemplo, Wallace et al. estão usando os circuitos de capital de Bergmann para produzir uma filogeografia estatística de isolados asiáticos de H7 e N9, datados da década de 1980, e assim identificar as vias socioespaciais pelas quais surgiu a nova gripe aviária a (H7N9), detectada pela primeira vez em Xangai, em 2013. A equipe está desenvolvendo uma análise de nicho, a partir dos modelos MaxEnt e Boosted Regression Trees, para testar qual, entre uma série de covariáveis sociais e ambientais codificadas geograficamente, inclusive conexões com os referidos circuitos de capital, caracterizaria os isolados locais e as localidades visitadas pelo vírus, tal como inferido pelas filogeografias (Elith et al., 2011; Van Boeckel et al., 2012b). A escala e os mecanismos do surgimento do h7n9 devem ser obtidos por meio de uma exploração automatizada (se a segurança for limitada) do conjunto de dados multidimensionais sobre o qual a genética viral, as localidades e a matriz socioecológica estão relacionadas, em vez de serem retirados de um conjunto estrito de categorias a priori (em última instância, arbitrárias).

Esse tipo de abordagem envolve uma série de ressalvas — sobretudo no que diz respeito à resolução e à disponibilidade dos dados —, mas os pesquisadores devem atribuir uma matriz de índices de circulação para cada doença ou cepa incluída em tais análises. Alguns patógenos, como algumas das gripes aviárias, podem surgir por práticas agrícolas locais ou intersetoriais — ou seja, em uma paisagem em mosaico, de quintal e criação intensiva (Martin et al., 2011). Outros, como a síndrome respiratória e reprodutiva dos suínos e o vírus da diarreia epidêmica suína, são, de forma mais ou menos geral, globalizados em suas agroecologias, talvez por alguma combinação diretamente relacionada à agricultura e indiretamente relacionada ao setor de bens e serviços manufaturados como computadores e seguros. Outros podem ainda assumir múltiplas identidades ao longo do tempo e do espaço. Em outras palavras, pela primeira vez, os epidemiologistas podem se tornar capazes de testar estatisticamente, pesar numericamente e qualificar as “doenças do agronegócio” ao redor do mundo — o que até agora só pode contar com caracterizações eminentemente descritivas. De maneira mais geral, a nova abordagem deve oferecer um novo meio, intuitivo e rigoroso, para codificar o caráter econômico das doenças emergentes.

A perspectiva da One Health reintroduz, por um lado, a investigação científica nas questões que suas disciplinas constituintes há muito evitam como problema de caminho epistemológico. Por outro lado, a atual abstração episódica da abordagem parece sobredeterminada no tempo e no espaço, enquanto afasta a causalidade de fontes sistêmicas. Uma perspectiva estrutural em saúde, tal como aqui apresentada, pretende levar a sério todas as fontes de causa e efeito, para além do seu efeito metafórico nos esquemas explicativos, e incluir assim circunstâncias episódicas, contextos históricos e fundamentais na própria prática científica. Demais abordagens estruturais para a saúde de várias espécies permanecem ainda abertas à exploração.


Notas:


[1] Ver também: wallace, R. G. & kock, R. A. “A pegada alimentar de quem?”, na Parte cinco deste livro.

[2] Wallace, R. G. “The virus and the virus: David Quammen’s ‘Spillover’”, Counterpunch, 14-16 jun. 2013. Disponível em: http://www.counterpunch.

org/2013/06/14/the-virus-and-the-virus/. [“O vírus e o vírus”, na Parte seis deste livro.]

[3] “The Ecology of Disease”, New York Times, 14 jun. 2012. Disponível em: https://www.nytimes.com/2012/07/15/sunday-review/the-ecology-of-

-disease.html.

[4] “How Goldman Sachs Created the Food Crisis”, Foreign Policy, 27 abr. 2011; “Investigating Harvard University’s Timber Plantations in the Iberá

Wetlands of Argentina”, Oakland Institute/Responsible Investment at Harvard Coalition, 2014. Disponível em: http://www.oaklandinstitute.org/sites/

oaklandinstitute.org/files/OI_Report_Harvard_Ibera_0.pdf.

[5] “Global Map of Investments”, Land Matrix Observatory. Disponível em: https://landmatrix.org/.

[6] “Special Investigation: Understanding Land Investment Deals in Africa”, Oakland Institute, 2011.

[7] Wallace, R. G. “We need a Structural One Health”, Farming Pathogens, 3 ago. 2012.

[8] World bank. People, Pathogens and Our Planet, vol. 2: The Economics of One Health. Report n. 69145-glb, jun. 2012. Disponível em: http://docu-

ments1.worldbank.org/curated/en/612341468147856529/pdf/691450ESW0whit0D0ESW120PPPvol120web.pd

[9] Wallace, R. G. “Flu the Farmer”, Farming Pathogens, 17 abr. 2013. [“A gripe fazendeira”, na Parte seis deste livro.]


* Este artigo foi originalmente publicado na revista Social Science & Medicine como parte da edição especial dedicada à One Health (Wallace, R. G. et al. “The Dawn of Structural One Health: A New Science Tracking Disease Emergence along Circuits of Capital”, Social Science & Medicine, v. 129, p. 68-77, 2015).


Tradução: Allan Rodrigo de Campos Silva. In: Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo, Igrá Kniga & Elefante, 2020.




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