Mike Davis
[tempo de leitura: 20 minutos]
Mike Davis foi um grande lutador por justiça racial e socioambiental, morto em outubro de 2022, deixou uma reflexão contundente sobre os catastróficos incêndios florestais que atingem o sul da Califórnia pelo menos uma vez a cada década.
Mike é uma importante referência para a luta abolicionista, tendo integrado o movimento Critical Resistance - fundado por Angela Davis, Ruth Wilson Gilmore e Rose Braz - que lutava pela abolição do complexo industrial prisional, termo cunhado pelo próprio Mike.
O texto do Mike, disponível aqui no Blog da IK, é um convite à reflexão sobre a relação entre a ecologia do fogo e a máquina de catástrofes ambientais do capitalismo em colapso.
Boa leitura!
A evolução de muitos dos ecossistemas nativos da Califórnia está intimamente ligada ao fogo. A supressão moderna de incêndios cria combustíveis que levam a incêndios catastróficos. Por que então as pessoas insistem em reconstruir casas no cinturão de fogo?
“É claro que milhares de casas surgirão aqui. Haverá castelos em vários desses morros.”— John Russell McCarthy, These Waiting Hills (1925)
O período mais infernal em Los Angeles vai do final de agosto ao início de outubro. O centro da cidade geralmente fica envolto em uma poluição amarela e ácida, enquanto ondas de calor se espalham pela Wilshire Boulevard. Do lado de fora dos arranha-céus com ar condicionado, moradores de rua se amontoam miseravelmente em qualquer sombra disponível.
Do outro lado da Harbor Freeway, os cortiços superlotados do distrito de Westlake — o Harlem Espanhol de Los Angeles — são fornos intoleráveis. Sufocadas em seus pequenos quartos, famílias de imigrantes fogem para as escadas de incêndio, varandas e calçadas. Mães ansiosas enxugam a testa dos bebês com água enquanto crianças mais velhas, com os olhos ardendo por causa da poluição, choram por paletas: os cones de gelo raspado com sabor vendidos por vendedores ambulantes. Jovens sem camisa — alguns com bíceps formidáveis cultivados na prisão e tatuagens do tamanho de um mural da Virgem de Guadalupe nas costas — monopolizam a sombra dos toldos das lojas. Em meio a centenas de hectares de asfalto e concreto derretidos, quase não há ervas daninhas, muito menos gramados ou árvores.
A 48 quilômetros de distância, a costa de Malibu - onde o exagero atinge até as ondas - desfruta de um clima completamente diferente. A temperatura é de 30° (10 graus mais fria que no centro da cidade), e o céu azul-cobalto é claro o suficiente para discernir a forma tênue da Ilha de Santa Bárbara, a quase 80 quilômetros da costa. Em Zuma, os surfistas pegam ondas sob os olhares despreocupados de suas deusas do sol, enquanto em Topanga Beach, treinadores de cavalos conduzem Appaloosas pela areia molhada. Indiferentes à miséria no “continente”, os moradores de Malibu sofrem mais um dia entediante e perfeito.
Nem é preciso dizer que as diferenças existenciais entre o bairro residencial e a costa dourada são enormes em qualquer época. Mas o final do verão é o início da temporada de incêndios florestais no sul da Califórnia, e é quando Westlake e Malibu sofrem um problema em comum: incêndios catastróficos.
De acordo com estimativas anteriores, Westlake (incluindo partes adjacentes do centro da cidade) tem a maior incidência de incêndios urbanos do país: um de seus dois corpos de bombeiros foi inundado por incríveis 20.000 chamadas de emergência em 1993. Alguns cortiços e hotéis-apartamentos convivem constantemente com histórias de incêndios que remontam à sua construção no início do século XX. O famoso Hotel St. George, por exemplo, sofreu incêndios fatais em 1912, 1952 e 1983. Além disso, quase todos os incêndios mortais em prédios residenciais em Los Angeles desde 1945 ocorreram em um raio de 1,6 km da esquina das ruas Wilshire e Figueroa, no centro da cidade.
Malibu, por sua vez, é a capital dos incêndios florestais da América do Norte e, possivelmente, do mundo. O fogo aqui tem um ritmo staccato implacável, sincopado por deslizamentos de terra e inundações. O litoral acidentado de 35 quilômetros de extensão é fustigado, em média, por um grande incêndio (mais de 400 hectares) a cada dois anos e meio, e toda a superfície das montanhas ocidentais de Santa Monica foi queimada três vezes ao longo do século XX. Pelo menos uma vez por década, um incêndio no chaparral se transforma em uma tempestade de fogo aterrorizante que consome centenas de casas em um avanço inexorável pelas montanhas em direção ao mar. Desde 1970, cinco desses holocaustos destruíram mais de mil residências de luxo e causaram mais de US$ 1 bilhão em danos materiais. Alguns proprietários de imóveis insatisfeitos foram atingidos duas vezes em uma geração, e há áreas isoladas de litoral ou montanhas, especialmente entre Point Dume e Tuna Canyon, que foram incineradas até oito vezes desde 1930.
Em outras palavras, fique na foz do Malibu Canyon ou durma no Hotel St. George, por qualquer período de tempo, você acabará enfrentando as chamas. É uma certeza estatística. Ironicamente, as paisagens mais ricas e mais pobres do sul da Califórnia são comparáveis na frequência com que sofrem desastres incendiários. Isso foi enfatizado tragicamente em 1993, quando um incêndio em maio em um prédio residencial em Westlake, que matou três mães e sete crianças, foi seguido no final de outubro por 21 incêndios florestais, culminando em 2 de novembro na grande tempestade de fogo que forçou a evacuação da maior parte de Malibu.
Mas essas duas espécies de conflagração oferecem imagens inversas uma da outra. Defendidos em 1993 pelo maior exército de bombeiros da história americana, os ricos proprietários de imóveis em Malibu também se beneficiaram de uma gama extraordinária de seguros, do uso da terra e subsídios para assistência a desastres. No entanto, como a maioria dos especialistas prontamente admitirá, tempestades de fogo periódicas dessa magnitude são inevitáveis, desde que o desenvolvimento residencial continue a se espalhar através da ecologia de incêndios das montanhas de Santa Monica.
Por outro lado, a maioria das 119 mortes em incêndios nos cortiços nas áreas de Westlake e Downtown poderiam ter sido evitadas se os proprietários dos cortiços tivessem cumprido padrões mínimos de segurança nas construções. Se enormes recursos foram alocados, quixotescamente, para combater forças irresistíveis da natureza na costa de Malibu, então, escandalosamente, pouca atenção foi dada à crise de incêndios causados pelo homem e remediáveis no centro da cidade.
Desde o início, o fogo definiu Malibu no imaginário americano. Em Two Years Before the Mast, Richard Henry Dana descreveu uma viagem de barco para o norte, de San Pedro a Santa Barbara, em 1826, e a visão de um grande incêndio ao longo da costa do Rancho Topanga Malibu Sequit de José Tapia. Apesar — ou, como veremos, mais provavelmente por causa — da proibição espanhola da prática dos indígenas Chumash e Tong-va de queimar os arbustos anualmente, os incêndios nas montanhas ameaçaram Malibu repetidamente ao longo do século XIX. Durante o grande boom imobiliário do final da década de 1880, a propriedade inteira foi vendida a 5 dólares por hectare para o milionário brâmane de Boston, Frederick Rindge. Em suas memórias, Rindge descreveu suas batalhas incessantes contra invasores, ladrões de gado e, acima de tudo, incêndios florestais recorrentes. O grande incêndio de 1903, que se espalhou de Calabasas até o mar em poucas horas, incinerou o rancho dos sonhos de Rindge em Malibu Canyon e o forçou a se mudar para Los Angeles, onde morreu em 1905.
Desde a época dos Tapias, os proprietários do Rancho Malibu reconheceram que o extraordinário risco de incêndio da região era moldado, em grande parte, pelo alinhamento estranho de seus cânions costeiros com os “ventos de fogo” anuais do norte: os notórios Santa Anas, que ocorrem principalmente entre o Dia do Trabalho (primeira segunda-feira de setembro) e o Dia de Ação de Graças (no final de novembro), pouco antes das primeiras chuvas. Originários de áreas de alta pressão sobre a Grande Bacia e o Planalto do Colorado, os ventos Santa Ana se tornam quentes e secos à medida que descem como avalanches em direção ao sul da Califórnia. O Vale de San Fernando atua como um fole gigante, às vezes impulsionando as águas de Santa Ana à velocidade de um furacão enquanto eles avançam em direção ao mar através dos cânions estreitos e desfiladeiros acidentados das Montanhas de Santa Monica. Adicione uma faísca à vegetação densa e seca em tal ocasião e as encostas explodirão em incêndios florestais incontroláveis: “A velocidade e o calor do fogo são tão intensos que os bombeiros só podem tentar impedir a propagação lateral do fogo enquanto esperam pelos ventos para abater ou o combustível para diminuir.”
Menos compreendida naqueles dias era o fato de que esse ciclo de incêndios florestais dependia essencialmente da vegetação dominante de Santa Monica — chaparral de arbustos chamise, matagal de sálvia costeira e bosques de carvalhos vivos. Décadas de pesquisa (especialmente na Floresta Experimental de San Dimas, nas Montanhas San Gabriel) deram à ciência do final do século XX percepções vívidas sobre o papel complexo e, em última análise, benéfico do fogo na reciclagem de nutrientes e na garantia da germinação de sementes na variada flora pirofítica do sul da Califórnia. A pesquisa também estabeleceu a importância fundamental do acúmulo de biomassa sobre a frequência de ignição na regulação da destrutividade do fogo. Como Richard Minnich, autoridade mundial em incêndios florestais de chaparral, enfatiza: “O combustível, não as ignições, causa o fogo. Você pode enviar um incendiário para o Vale da Morte e ele nunca será preso.”
Uma revelação importante foi a relação não linear entre a estrutura etária da vegetação e a intensidade do fogo. Botânicos e geógrafos do fogo descobriram que “a probabilidade de um incêndio intenso e rápido aumenta drasticamente à medida que os combustíveis ultrapassam os vinte anos de idade”. De fato, calcula-se que um chaparral de meio século de idade — fortemente carregado de massa morta — queime com 50 vezes mais intensidade do que um chaparral de 20 anos de idade. Em outras palavras, um hectare de chaparral antigo é o combustível equivalente a cerca de 75 barris de petróleo bruto. Expandindo esses cálculos ainda mais, uma grande tempestade de fogo em Malibu poderia gerar o calor de três milhões de barris de petróleo em chamas a uma temperatura de 1.100º C.
"A supressão total de incêndios”, a política oficial nas montanhas do sul da Califórnia desde 1919, tem sido um erro trágico porque cria enormes estoques de combustível. Os incêndios extremos que eventualmente ocorrem podem transformar a estrutura química do próprio solo. A volatilização de certos produtos químicos vegetais cria uma camada repelente de água na superfície do solo, e essa camada, ao impedir a percolação, acelera drasticamente a subsequente inundação e erosão. Uma obsessão monomaníaca com o controle da ignição em vez de controlar o acúmulo de chaparral simplesmente torna as tempestades de fogo catastróficas e as grandes inundações que as seguem praticamente inevitáveis.
Durante uma geração após a morte de Rindge, sua viúva, May, lutou para manter a Shangri-la da família isolada e intacta diante das tentativas do estado de abrir uma rodovia através do rancho. Como uma das heroínas de punho de ferro interpretadas por Barbara Stanwyck, a chamada Rainha de Malibu fechou as estradas do rancho em 1917, colocou arame farpado ao longo do perímetro e guardas armados nas junto às cercas com ordens de "atirar para matar". Em um episódio durante a década de 1920, caubóis de Rindge provocaram um confronto tenso com xerifes após expulsarem uma equipe de inspeção rodoviária sob a mira de uma arma. Manchetes histéricas de jornais alertavam sobre “Guerra Civil na pacífica Califórnia do Sul!”
Mas a pressão durante o boom da década de 1920 para abrir a área costeira aos loteamentos especulativos foi implacável. No exagero da época, a ocupação das montanhas se tornou o destino manifesto de Los Angeles. “O dia da invasão de Santa Monica pelos brancos chegou”, declarou o vidente imobiliário John Russell McCarthy em um livreto publicado pelo Los Angeles Times em 1925. Em antecipação a essa corrida por terras, o xerife do condado estava prendendo todos os caminhantes à vista e colocando-os para trabalhar em gangues de prisioneiros construindo estradas através dos cânions acidentados ao sul de Rancho Malibu. (Os críticos radicais da época denunciaram este sistema como “corrupção imobiliária deliberada”, destinada apenas a aumentar o valor das terras em distritos montanhosos “que a população desta cidade nem sequer sabe que existem.”)
A viúva Rindge, em todo caso, não teria permissão para atrapalhar “a marcha dos aventureiros caucasianos”, como disse McCarthy. Após uma das batalhas jurídicas mais prolongadas da história da Califórnia, o tribunal concedeu ao estado o direito de passagem através de Rancho Malibu. Aberta ao tráfego em 1928, a Pacific Coast Highway proporcionou aos encantados moradores de Los Angeles a primeira vista da magnífica costa de Malibu e introduziu uma nova e potente fonte de ignição — o automóvel — na paisagem inflamável.
A infatigável May Rindge continuou a lutar contra os construtores e incorporadores de estradas nos tribunais, mas, ao final, os custos do litígio a forçaram a arrendar partes selecionadas da orla de Malibu para uma colônia de celebridades do cinema que incluía Jack Warner, Clara Bow, Dolores Del Rio e a própria Barbara Stanwyck. A inauguração inesperada da colônia aconteceu com um incêndio florestal rápido como um raio que destruiu 13 novas casas no final de outubro de 1929. Exatamente um ano depois, catadores de nozes na área de Thousand Oaks acidentalmente iniciaram outro incêndio, que rapidamente se tornou uma das maiores conflagrações da história de Malibu.
O incêndio de Decker Canyon em 1930 foi o pior cenário possível, envolvendo um chaparral de 50 anos e um violento vento ‘Santa Ana’. Diante de uma frente de oito quilômetros de chamas gigantescas, 1.100 bombeiros pouco puderam fazer, exceto salvar suas próprias vidas. À medida que a tempestade de fogo avançava inesperadamente em direção a Pacific Palisades, houve pânico oficial. O supervisor do condado Wright, com os nervos abalados por uma visita às linhas de incêndio em colapso, colocou cem patrulheiros nos limites da cidade de Los Angeles para alertar os moradores sobre a evacuação. Se o “incêndio que assola o distrito de Malibu se aproximar”, ele suspirou, “toda a nossa cidade poderá ser destruída”. No final das contas, esse apocalipse (que pode ter dado a Nathanael West a ideia de queimar Los Angeles em seu romance O Dia do Gafanhoto) foi evitado — sem nenhuma iniciativa humana — quando o inconstante vento Santa Ana subitamente acalmou.
Em retrospectiva, o incêndio de 1930 deveria ter provocado um debate histórico sobre a sensatez de abrir Malibu para novos empreendimentos. Apenas alguns meses antes do desastre, Frederick Law Olmsted, Jr. — o principal arquiteto paisagista dos EUA e designer do sistema de parques estaduais da Califórnia — havia se manifestado a favor da propriedade pública de pelo menos 4.000 hectares das áreas de praia e montanha mais pitorescas entre Topanga e Point Dume. Apesar de uma nova série de incêndios em 1935, 1936 e 1938, que destruíram quase quatrocentas casas em Malibu e Topanga Canyon, autoridades públicas teimosamente desconsideraram a sensatez da proposta de Olmsted para um grande espaço público em Santa Monica. O condado de Los Angeles, por exemplo, desperdiçou uma oportunidade extraordinária em 1938 ao adquirir 9.000 hectares da propriedade falida de Rindge em troca de US$ 1,1 milhão em impostos em atraso. Por apenas dólares por hectare, teria sido o negócio do século.
Em vez disso, em dezembro de 1940, May Rindge, já pobre e de coração partido, foi forçada a colocar todo o seu império em leilão. Os potenciais compradores foram aconselhados a fazer “uma seleção antecipada” de “lotes de frente para o mar, locais para vilas, hotéis, clubes de golfe, propriedades, clubes de praia e iates, lotes de renda e negócios, pequenas casas de veraneio, ranchitos, grandes ranchos e área para posterior loteamento.” A desconsolada Rainha do Malibu morreu dois meses depois.
Durante a Segunda Guerra Mundial — anos de seca severa na Costa Oeste — centenas de vigilantes contra incêndio foram enviados às montanhas do sul da Califórnia para protegê-las contra supostos sabotadores do Eixo. Poucos meses após a sua retirada, 150 casas em Malibu foram incineradas em outro incêndio em novembro. No entanto, este novo desastre não conseguiu desencorajar a migração pós-guerra de artistas, editores, livreiros, poetas, roteiristas e arquitetos (incluindo o próprio Olmsted) — muitos com meios muito modestos, alguns tentando escapar da perseguição do macartismo — que imaginaram Malibu como uma Carmel ao sul. Em um envolvente livro de memórias desse período, o bibliotecário da UCLA Lawrence Clark Powell descreveu um estilo de vida genial dedicado a Mozart e à caça de baleias.
Ele também forneceu um relato clássico do ataque da terrível tempestade de fogo da semana de Natal de 1956, que, abrindo caminho em direção ao mar, refez o caminho do incêndio de 1930.
O vento ainda estava forte quando fomos para a cama às dez, o céu estava limpo, brilhando com estrelas, o farol de Anacapa acendeu sua luz de advertência. Os ciprestes, pinheiros e eucaliptos eram mais barulhentos que as ondas. Os pelos dos gatos soltavam faíscas quando acariciados. Dormimos apesar da atmosfera sinistra.
Uma análise do Serviço Florestal sobre esse desastre, que matou uma pessoa e destruiu cem casas, enfatizou o desafio impossível de combater forças naturais tão erráticas e indomáveis.
Os incêndios em Malibu combinam os elementos mais conhecidos do comportamento violento, errático e extremo do fogo: redemoinhos de fogo, velocidades extremas de propagação, mudanças repentinas na velocidade e direção da propagação do fogo, descargas de gases não queimados complicadas pelo calor intenso e fumaça impenetrável retida perto do solo.
De fato, a conflagração, que coincidiu com o aumento das ansiedades em relação à Guerra Fria, teve repercussões políticas inesperadas. “Se o governo não conseguiu derrotar os incêndios florestais em Santa Monica”, perguntaram os críticos, “como lidaria com possíveis holocaustos nucleares?” Assim, a administração Eisenhower reconheceu o incêndio de Malibu como “o primeiro grande desastre de incêndio de âmbito nacional”, e o Congresso — mais preocupado com a credibilidade de um vasto estabelecimento de defesa civil do que com a tragédia dos proprietários locais — debateu como fornecer “prevenção completa contra incêndios”. e proteção no sul da Califórnia.” (Além disso, grandes incêndios em Malibu seriam usados mais tarde por pesquisadores para modelar o comportamento de tempestades de fogo nucleares.)
De acordo com o historiador de incêndios Stephen Pyne, o incêndio de Malibu também marcou a transição do problema tradicional de incêndios florestais para um “novo regime de incêndios” caracterizado pela “mistura letal de proprietários de casas e arbustos”. Essa fronteira artificial entre chaparral e subúrbio aumentou o perigo natural de incêndio, ao mesmo tempo em que criou novos perigos para os bombeiros, que agora tinham que defender milhares de estruturas individuais, além de combater a própria frente de incêndio. “Embora tenha sido frequentemente observado que o chaparral, particularmente aquele composto em grande parte por arbustos de chamise, é uma comunidade de clímax de fogo, em tom irônico, que o mesmo é verdade para o subúrbio montanhoso do sul da Califórnia.”
No final das contas, o incêndio de 1956 — seguido por dois incêndios com um mês de intervalo, em 1958-59, que deixaram oito bombeiros com queimaduras graves e destruíram outras cem casas — foi o começo do fim da boêmia Malibu. Uma lei perversa do novo regime do fogo era que o fogo agora estimulava tanto a exploração imobiliária quanto a sucessão social ascendente. Ao declarar Malibu uma área de desastre federal e oferecer às vítimas do incêndio alívio fiscal, bem como empréstimos preferenciais com juros baixos, o governo Eisenhower estabeleceu um precedente para o subsídio público de subúrbios em áreas de incêndio. Cada nova conflagração seria pontualmente seguida por uma reconstrução em uma escala maior e ainda mais exclusiva, à medida que as regulamentações de uso da terra e, às vezes, até mesmo o código de incêndio eram relaxados para acomodar as “vítimas” do incêndio. Como resultado, inquilinos e proprietários modestos foram deslocados de áreas como Broad Beach, Paradise Cove e Point Dume por pirófilos ricos encorajados por seguros contra incêndio artificialmente baratos, assistência socializada a desastres e um amplo compromisso público de "defender Malibu".
Na ausência de um zoneamento de risco de incêndio do tipo que Olmsted havia defendido anteriormente, a única restrição ao desenvolvimento era o fornecimento limitado de água para combate a incêndios e consumo doméstico. A conclusão de uma tubulação de fornecimento de água, conectando Malibu aos reservatórios do Metropolitan Water District, foi o sinal verde para uma nova corrida por terras. A Comissão de Planejamento Regional do condado prontamente endossou as fantasias mais selvagens dos desenvolvedores ao autorizar uma expansão impressionante de 1.400 por cento da população de Malibu na próxima geração: de 7.983 residentes em 1960 para uma projeção de 117.000 em 1980. Embora os atos costeiros da Califórnia de 1972 e 1976, sob o slogan populista “Não fechem a praia!” eventualmente abrandou este gigante imobiliário (bem como reprimiu propostas de pesadelo como uma central nuclear no Corral Canyon e uma rodovia de oito faixas através do Malibu Canyon), a urbanização da costa de Malibu — o “quintal Big Sur” de Los Angeles — era fato consumado.
No entanto, ao mesmo tempo em que abriam as comportas para o desenvolvimento destrutivo, autoridades municipais e estaduais também rejeitavam todas as oportunidades de expandir a orla da praia pública (míseros 22% do total em 1969). Eles também não demonstraram qualquer interesse em criar um fundo de terras públicas nas montanhas, que agora estavam inteiramente sob propriedade privada, até os leitos dos riachos. Consequentemente, a maior parte de Malibu permaneceu tão inacessível ao público em geral quanto era na era Rindge. (Para pessoas de cor, além disso, a entrada era completamente proibida) Como os historiadores da batalha pelo acesso à costa disseram: “Os sete milhões de pessoas a uma hora de carro de Malibu ouviram música dos Beach Boys e assistiam aos filmes de surfistas, mas os vinte mil residentes ficaram com a praia para eles.”
Ao retornar para a costa, o bibliotecário da UCLA, Powell, condenou amargamente a sua aristocratização:
Em uma compra e venda febril de terras, a costa ficou completamente transformada e irreconhecível. Cada casa que se segue, maior e mais grandiosa, assume a vista de seus vizinhos em uma espécie de competição desenfreada.… Uma vez perdido, o paraíso nunca mais será recuperado.… Os incorporadores destruíram as montanhas de Santa Monicas além da recuperação.
Os novos-ricos de Malibu construíram em patamares cada vez mais altos sobre o chaparral da montanha, sem se importar muito com as inevitáveis consequências devastadoras. A próxima tempestade de fogo, no final de setembro de 1970, combinou um clima perfeito para incêndios (condições de seca, calor de 38 graus Celsius, 3% de umidade e ventos de Santa Ana de 136 quilômetros por hora) com uma safra abundante de casas de madeira combustíveis. De acordo com os bombeiros, os populares telhados de telhas de cedro “estouraram como pipoca” enquanto uma parede de chamas de 32 quilômetros rugia pela cordilheira de Santa Monica em direção ao mar. Com o asfalto da Pacific Coast Highway em chamas e todas as rotas de fuga bloqueadas, moradores aterrorizados da famosa Malibu Colony se refugiaram na lagoa próxima. Brasas caíam como chuva infernal na praia, e o dia se transformou em noite sob a gigantesca nuvem de fumaça. Combinado com outro incêndio no Vale de San Fernando, a maior tempestade de fogo do século XX em Malibu acabou matando 10 pessoas e carbonizando 403 casas, incluindo um rancho de propriedade do então governador Ronald Reagan.
Proprietários furiosos — ignorantes do verdadeiro equilíbrio de poder entre a supressão de incêndios e a ecologia do chaparral — denunciaram o governo local por não salvar suas casas e exigiram novas e caras "soluções" tecnológicas para os problemas de incêndios florestais de Malibu. “Autoridades eleitas, extremamente sensíveis à proeminência nacional de Malibu na arrecadação de fundos políticos, foram rapidamente atendidas. Um exemplo famoso ocorreu no final da década de 1970, quando a Colônia de Malibu foi atingida pelas ondas mais fortes em um quarto de século. Larry Hagman, J. R. Ewing do seriado de TV Dallas, teria dito a Jerry Brown, o governador da Califórnia: “Jerry, faça alguma coisa. Droga, estamos em sérios apuros. Traga sua bunda aqui para baixo!” Em pouco tempo, Malibu foi declarada área de desastre e os membros da Guarda Nacional estavam ajudando a cercar as casas de Hagman com sacos de areia — também na casa de Linda Ronstadt, da namorada de Brown.
Enquanto isso, os desenvolvedores — correndo para ficar à frente da proposta de legislação costeira de “crescimento lento” — redobraram seus esforços para novos loteamentos. O boom subsequente apenas forneceu mais combustível para os três incêndios sucessivos de “Halloween” que consumiram casas em outubro de 1978, 1982 e 1985. Os dois primeiros incêndios começaram em Agoura e seguiram aproximadamente a rota do incêndio de 1956 através do Trancas Canyon, enquanto o terceiro repetiu o itinerário do incêndio do Decker Canyon em 1930.
O incêndio de 1978, que consumiu casas de milhões de dólares na área de Broad Beach (onde o bibliotecário Powell viveu na humilde década de 1950), também estabeleceu um novo recorde de velocidade: o fogo atravessou 20 quilômetros de terreno muito acidentado em menos de duas horas (o incêndio de 1970 levou o dobro do tempo). Uma testemunha ocular descreveu como a frente de fogo devastadora “transformou milhares de coelhos selvagens em bolas de pelo em chamas que disparavam loucamente, apenas para iniciar novos incêndios nos locais onde caíam”. Os animais sobreviventes — tanto domésticos como selvagens — “misturaram-se no caos com os seres humanos evacuados ao longo da praia de Point Dume, enquanto surfistas indiferentes pegavam suas ondas”. Os moradores traumatizados de Malibu, também atingidos por enchentes e deslizamentos de terra desastrosos em 1978 e 1980, tiveram que ser perdoados por imaginar que a natureza estava ficando mais furiosa com eles.”
***
Breve posfácio
Quando a maioria de nós constrói ou compra uma casa, avaliamos cuidadosamente a vizinhança. Em Malibu o bairro é o fogo. Fogo que revisita as montanhas costeiras várias vezes por década. Nos últimos sessenta anos, dez desses eventos frequentes se transformaram em tempestades de fogo devastadoras. O mais recente incêndio, o Woolsey Fire, incinerou 1.500 casas e matou pelo menos três pessoas. Começou em pastagens secas ao sul de Simi Valley, local do notório julgamento dos agressores de Rodney King, depois cruzou uma rodovia para incendiar a densa vegetação costeira de salva no flanco norte das Montanhas de Santa Monica. Os cânions profundos da cordilheira, perfeitamente alinhados com os ventos sazonais de Santa Ana, mais uma vez agiram como foles, acelerando a corrida do fogo para a costa, onde queimou casas de praia. O grande número de residências perdidas atesta não apenas a ferocidade do incêndio, mas também a quantidade de novas construções desde a tempestade de fogo de 1993.
Built LA
Por que mais mansões nas colinas amantes do fogo? Por causa de um fato perverso: depois de cada grande incêndio na Califórnia, os proprietários e seus representantes se abrigam na crença de que, se o incêndio florestal não pode ser prevenido, sua destrutividade pode ser domada. Assim, a recém-incorporada cidade de Malibu e o condado de Los Angeles responderam ao desastre de 1993 com regulamentações agressivas sobre remoção de vegetação rasteira e materiais de telhado resistentes ao fogo. Criar um "espaço defensável" tornou-se o novo mantra, logo ecoado por toda a Califórnia após outros grandes incêndios, como os que varreram o Condado de San Diego em 2003 e 2007, queimando 4.500 casas e matando 30 pessoas. Assim, em vez de um debate há muito esperado sobre a sensatez da reconstrução e a necessidade de evitar novas construções em áreas de extremo risco de incêndio natural, a atenção pública foi desviada para uma discussão sobre os melhores métodos de limpeza da vegetação (motocultivadores ou cabras?) e de casas resistentes ao fogo. E se os subúrbios periféricos e as subdivisões do interior, de fato, pudessem ser à prova de fogo, então por que não construir mais? Desde 1993, quase metade das novas casas da Califórnia foram construídas em áreas de risco de incêndio. No entanto, como um Galileu contemporâneo poderia dizer sobre o espaço defensável, "e ela ainda queima". Nos últimos dezoito meses, 20.000 casas e talvez 1.000 vidas foram perdidas em um superincêndio após o outro.
Esses incêndios são antigos e novos.
Duas causalidades diferentes estão envolvidas. Primeiramente, a vegetação e a topografia, orquestradas anualmente por nossos furacões secos, definem padrões e frequências de incêndios persistentes. Sem intervenção humana, no entanto, muitos pequenos incêndios iniciados por raios no fim do verão criam uma complexa colcha de retalhos de vegetação de diferentes idades e combustibilidades.
As tempestades de fogo de cem mil acres que agora vivenciamos anualmente ocorreram ocasionalmente após secas épicas, mas em um regime de fogo "natural" elas eram raras. No entanto, a prevenção de incêndios no século XX cultivou grandes áreas de chaparral e floresta envelhecida, criando condições perfeitas para grandes incêndios. Mas enquanto muitas cidades da Califórnia eram cercadas por pomares de frutas cítricas e terras agrícolas, o fogo, mesmo em sua nova e maior encarnação, geralmente era contido antes de atingir as moradias. Hoje, nossas barreiras contra incêndios da horticultura acabaram, os campos de morangos agora são subúrbios envelhecidos e a busca por praias, lotes com vista para as montanhas e grandes árvores criou riscos de incêndio que antes eram inimagináveis.
Enquanto isso, as mudanças climáticas estão chegando à Califórnia na forma de seca e calor extremo no verão, juntamente com episódios de chuvas torrenciais recordes. Embora os cientistas debatam se a precipitação média anual, calculada ao longo de décadas, irá realmente diminuir, cairá mais como chuva do que como neve, uma preocupação séria, dado que o nosso sistema hídrico depende da camada de neve da Serra para armazenar e modular a liberação da água que irriga cidades e campo. Além disso, a precipitação não é mais um indicador preciso do risco de incêndio. O inverno de 2016-17 foi o mais chuvoso da história do norte da Califórnia, e a primavera trouxe a mais gloriosa exibição de flores silvestres em gerações. Mas julho foi um mês tórrido e as temperaturas costeiras, geralmente na casa dos 20°C, ultrapassaram os 38°C por uma semana. O verde da primavera foi pontualmente transformado em uma safra abundante de brasas. Quando os ventos começaram a soprar em outubro, primeiro Santa Rosa, ao norte de São Francisco, e depois Montecito, ao sul de Santa Bárbara, pegaram fogo. Três mil casas foram perdidas e várias dezenas de pessoas, a maioria idosas e inconscientes da ameaça iminente, morreram. Mas a natureza na Califórnia reservou um último ato e quando os céus se abriram nas colinas queimadas de Montecito em janeiro, outras 25 pessoas desapareceram nas rápidas enxurradas de detritos. O mesmo ocorreu em Malibu e no sopé da Sierra nos meses seguintes.
Por fim, uma ou duas palavras sobre Malibu e Paradise. As duas cidades compartilham três características comuns: ambas são muito brancas (a população negra de Malibu é de 1,5%; Paradise, 0,1%), relativamente idosos (o dobro da porcentagem média de maiores de 65 anos do estado) e habitam notórios corredores de incêndio.
De fato, a área de Paradise joga na mesma liga de elite de incêndios de Malibu, com seis grandes incêndios desde 1950, incluindo incêndios consecutivos no verão de 2008 que exigiram evacuações e deixaram as estradas de Paradise congestionadas ─ sob a forma do caos que estava por vir. Mas, fora isso, as cidades são símbolos de duas Califórnias completamente diferentes. Os valores dos imóveis em Paradise são metade da média do estado e um décimo da de Malibu, tornando-o um dos últimos lugares acessíveis do estado. A renda familiar em Paradise é US$ 13.000 abaixo da média estadual; Malibu custa US$ 60.000 acima. Paradise também tem uma característica única: quase 20% de sua população com menos de 65 anos foi enumerada pelo último Censo como portadora de deficiência. Essa proporção extraordinária de idosos, doentes e deficientes sem dúvida contribuiu para o enorme e inconsolável número de mortos. Dois tipos de californianos continuarão a conviver com o fogo: aqueles que podem pagar (com subsídios públicos indiretos) para reconstruir e aqueles que não podem pagar para viver em nenhum outro lugar.
_ _
Tradução: Allan C.
Comments