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RELATO DE MOSCOU EM TEMPO DE GUERRA

17 dias e algumas horas na Rússia em setembro de 2022

Cristina D.



 

A IK publica hoje, na data que marca o primeiro ano da guerra perpetrada pela Rússia na Ucrânia, os relatos de viagem de Cristina D. a Moscou em setembro de 2022.


De volta a sua cidade natal após alguns anos sem poder visitar sua família – antes, por conta da pandemia –, Cristina, acompanhada de seu filho, vive o duro estranhamento do cotidiano normalizado sob a guerra até testemunhar um importante turning point : o momento do anuncio da mobilização em massa da população russa para os frontes militares.


Na historiografia, é comum lermos relatos de guerra como documentos históricos. Já nas nossas vidas, dificilmente imaginamos escrever algo que um dia será lido como um “relato de guerra”. Por isso, agradecemos muito à Cristina D. por nos confiar estes escritos, e esperamos que sua publicação nos permita compreender um pouco mais sensivelmente o colapso do nosso tempo.


IK, 24 de fevereiro de 2023

 

Preâmbulo


Cheguei na Rússia, em São Petersburgo, em 12 de setembro de 2022. Saí de lá na madrugada do dia 30 de setembro. Foram 17 dias e algumas horas. Dez dias até 21 de setembro, quando pré-anunciaram a mobilização e 8 dias após isto. 20 e 21 de setembro foram o momento quando a situação mudou radicalmente, de um dia pro outro a vida “normal” parou de existir e a guerra bateu na porta de cada família que mora na Rússia. Até o dia 21, pessoas evitavam falar da guerra (depois explico os porquês disso, não se trata tanto assim da apatia política, ao meu ver), referiam-se a ela como “antes de fevereiro” e “depois de fevereiro”. Após o dia 21 só se falava de política, de guerra, das últimas notícias, com ódio e desespero.


A comunicação não verbal


Cheguei na Rússia após passar cinco dias em Lisboa e uma semana em Paris. Em Lisboa participei de um congresso internacional sobre história da arte e em Paris fiquei na casa de uma amiga que faz doutorado sobre o construtivismo (movimento artístico modernista soviético) e sobre um projeto artístico contemporâneo russo. Em Lisboa, durante o congresso tive a primeira impressão sobre como não se falava diretamente da guerra. Uma professora estado-unidense que trabalha na Rússia me apresentou a colega russa que me perguntou onde trabalho, respondi que no Brasil, e lhe perguntei de volta sobre seu local de trabalho; responde ela que em Moscou e, dito isto, nos olhamos longamente nos olhos uma da outra. Por este olhar, sem nenhuma palavra, entendi que ela era contra a guerra, que havia ditadura, dureza, tragédia. Não sei explicar isto muito bem, mas a linguagem corporal, os olhares foram a comunicação sobre a guerra (até a mobilização); é como se não precisasse das palavras, não pudesse falar sobre ou era impossível falar. Quando cheguei em São Petersburgo, notei isto novamente num taxi que pegamos do hotel até o Hermitage. Minha mãe puxava a conversa com o taxista falando da cidade, como precisava de reformas das fachadas históricas, sobre turismo. Acho que foi o motorista quem comentou que não havia mais turistas estrangeiros e que antes havia muitos. Eu perguntei se isso foi “após o fevereiro” e ele mexeu nervosamente os ombros (peredyornul plechami), mas continuou a conversa tranquilamente depois. Pela idade ele pode ter sido convocado para o exército, agora.


Nos dois primeiros dias na Rússia, em São Petersburgo, ainda muito impactada com a imagem de uma vida absolutamente normal e sem perturbações visíveis, ao observar as pessoas na rua, encontrava os olhares de alguns jovens e, de alguma forma, entendia que eles também eram contra a guerra e descontentes com tudo que se passava. Estes olhares eram muito tristes (trágicos, de uma tristeza pesada). Não sei se se trata de intuição ou de reconhecimento mútuo. Da mesma forma, inequivocadamente, as pessoas da Rússia se reconhecem no exterior (como escrevia Nabókov ainda em 1930, pelos olhares tensos); na Finlândia, em Portugal, sempre sabia quem é meu conterrâneo – pelo jeito, pelos olhares, só depois esta sensação se confirmava ao ouvir a língua russa. Em Portugal, aliás, muitas destas pessoas que reconhecia eram da Ucrânia. De maneira semelhante, antigamente sempre era possível reconhecer os soviéticos no exterior, até de costas. E na URSS, depois na Rússia, sempre era possível reconhecer os estrangeiros, até de costas, pelo jeito descontraído de andar, pela postura. Não sei se o mesmo se passa com os brasileiros, se se reconhecem tão bem assim no exterior.


O que imaginava encontrar lá e não encontrei


Outra impressão inicial foi a de que tudo que eu havia imaginado sobre como estava a Rússia após o início da guerra estava falso. Construí uma ideia falsa morando no Brasil e acompanhando as notícias de longe. Falsa, em dois sentidos: primeiro, não vi nessas duas semanas de passagem por Moscou e São Petersburgo nenhuma pichação, nenhuma intervenção urbana, nada contra a guerra. Antes de viajar escrevi um ensaio sobre a arte antimilitarista na Rússia contemporânea para a coletânea de textos de pesquisadores brasileiros sobre a guerra. Li um monte de materiais nas páginas das redes sociais, nos canais de telegram, nas revistas de oposição sobre as ações artísticas de resistência à guerra nas cidades russas; conversei com algumas artistas, acompanhei as notícias sobre os protestos. Esperava encontrar os vestígios dessas ações na Rússia, mas não os vi. Até o elevador lascado do prédio da minha mãe que sempre era coberto com palavrões e inscrições estava limpo, coberto de horrível tinta cinza, intacto. Narrei esse fato para algumas pessoas e, aparentemente, há muita vigilância por câmeras em Moscou, pessoas tem medo de serem descobertas ao escrever algo nos muros ou nos elevadores. Quando peguei o trem de volta de Moscou para São Petersburgo, vi da janela os muros dos subúrbios, cobertos por inúmeros graffitis, nenhum, novamente, contra a guerra ou com qualquer mensagem de protesto.


A segunda ideia falsa foi a de existência de outdoors e símbolos Z pelas cidades, as imagens com este tipo de propaganda patriótica inundaram as redes sociais após o começo da guerra, gerando indignação e horror. Pois não vi NENHUMA letra Z durante essas duas semanas, nem em Moscou, nem em São Petersburgo. Nem a fita gueorguievskaia, que antes era bem abundante nos carros e nos outdoors. Uma amiga contou que houve, pelo menos em São Petersburgo, várias pichações de protesto, porém a prefeitura realizou uma força-tarefa nos primeiros meses apagando todas elas. Também contou que nos subúrbios as vans que transitam entre os bairros muitas vezes são decoradas com as letras Z e mensagens patrióticas. Peguei um ônibus suburbano somente uma vez e não vi símbolos deste tipo, então não sei até que ponto o relato correspondia à situação real, pelo menos naquele momento. Vi somente um carro com símbolos patrióticos e foi nas primeiras duas horas após a entrada na Rússia, da janela de ônibus Helsinki – São Petersburgo, após passar as fronteiras avistei um jipe preto, Mercedes, com o pneu de reserva colado na janela traseira e decorado com a palavra “Patriota” e letras V e Z. Quando vi este carro ultrapassar o ônibus senti repulsa que se misturou às emoções de voltar a minha terra natal após 3 anos (última vez estive na Rússia em 2019, antes da pandemia).



A toxicidade


O sentimento de repulsa me acompanhou na primeira semana de estadia no país, em São Petersburgo e, depois, em Moscou. No ônibus de Helsinki para São Petersburgo as pessoas falavam sobre a situação toda. Uma velhinha na cadeira da frente explicava para uma mulher francesa (a rara turista da Europa Ocidental ou, talvez, uma jornalista) que nem todos os russos apoiam a guerra, que muitos são contra, que só não há protestos porque as repressões são muito duras. Outras pessoas no ônibus comentavam negativamente a experiência de passar a fronteira da Rússia com comentários de ódio, pois todo o tramite foi muito demorado, tinha que mostrar o passaporte carimbado umas 5 vezes e o clima era de entrar numa zona prisional, com revista, perguntas, controle muito rígido.


Mas quando desci do ônibus e andei pela cidade nos dias seguintes, já não parecia que havia sequer algum problema. Pessoas nas ruas eram, não diria alegres, pois a expressão facial geral da população é soturna, cansada e antipática (sempre foi assim, em comparação com os europeus ou, principalmente, brasileiros), mas eram despreocupadas, indiferentes. Os restaurantes e os cafés cheios, as lojas funcionando, comércio bombando, jovens rindo e passeando como fazem os jovens. Parecia um sonho. Se não ligar a TV, parece que nada está acontecendo. E nesses dias justamente o exército da Ucrânia avançava, tendo várias vitórias e libertando as cidades que foram ocupadas meses antes pela Rússia. Após dois, três dias comecei a me sentir fisicamente mal, a defasagem entre a leitura das notícias e o fato de haver guerra, mortes diárias de pessoas por bombardeios e tiros e a aparência de uma vida “normal”, sem perturbações, sem nenhuma conversa sobre isto, criava a sensação de uma existência segmentada, com as camadas de realidade existindo em paralelo, sem se tocar. Novamente, não sei explicar isto muito bem em palavras. Não havia vestígios de guerra, de país estar em guerra, era como se a sociedade se murasse contra qualquer vazamento de emoção ou ideia relacionada ao fato. No café da manhã no hotel em St. Petersburgo pessoas conversavam tranquilas sobre os passeios, as compras, planos de viagem para a Europa ou Turquia. No restaurante georgiano onde fomos jantar, não havia lugares, tudo lotado; isso com os preços altíssimos. O governo segura a cotação do euro e do dólar em patamares baixíssimos, mais baixos que antes de fevereiro; como trouxe euros, tudo em rublos era caro, com os preços de alimentos, por exemplo, mais altos que na França (o que dizer do Brasil). Então, pessoalmente, fiquei chocada que com esses preços os locais de lazer, comércio e alimentação eram mais lotados que na Europa. Acabei não decifrando o fenômeno, pois em conversas com poucas pessoas de meu convívio todo mundo se queixava dos preços, do desemprego, de falta de opções de emprego.


Cheguei na Rússia numa segunda e somente após uma semana (na terça da outra semana) acabei encontrando amigos que eram ativistas e compartilhavam da minha visão sobre a situação toda. Até lá só havia convivido com a família e literalmente passei a um mal-estar muito grande, entendi muito bem como as pessoas contrárias à guerra devem se sentir isoladas, acuadas, solitárias e desesperadas. Minha amiga brasileira de Paris me deu muita força neste momento, pois falava comigo todo dia, perguntava como eu estava, me escutava. Meu namorado brasileiro ficava muito preocupado com as possíveis repressões, vigilância digital e me pedia não falar sobre as questões políticas ou contra o governo por telefone, escutar quase que diariamente sua voz também me ancorava.


Minha mãe logo me avisou que meu padrasto apoiava a guerra e ao conviver com ele pude ter uma ideia sobre porque as pessoas evitavam falar sobre o assunto. Entre “ou vai ou racha”, as pessoas obviamente escolhiam o “vai”, pois as discussões sobre as posições contrárias levariam à separação, às brigas, ao ambiente familiar e cotidiano impossível de ser vivenciado no dia a dia. Sabendo da posição de meu padrasto, a quem amo muito e que está casado com minha mãe há quase 30 anos, não falava com ele sobre as notícias, a política, a guerra. Duas vezes ele me expôs seus posicionamentos e o escutei atentamente para entender sua lógica. Nem ele, nem minha mãe usam VPN, ou seja, não leem a mídia alternativa em russo. Minha mãe lê o jornal alemão, então tem alguma ideia do que se fala fora do país. Meu padrasto só fala russo e um inglês muito primário, só consome as notícias oficiais da Rússia. Além disso, ele é um ex-militar de baixa patente que se aposentou há muito tempo. Segundo ele, Iéltsin cometeu um erro enorme ao entregar a Crimeia para a Ucrânia (e fez isto por estar bêbado no dia quando assinaram o acordo da dissolução da URSS em 1991). Já o Putin tomou a decisão correta ao restituir a Crimeia como o território da Rússia (pois a Crimeia “sempre foi nossa”). Após isso, segundo a narrativa reproduzida por todas as pessoas que apoiam a guerra e muitas indecisas (como minha mãe), a Ucrânia bombardeava durante 8 anos o Donbass e o Lugánsk, perseguindo as pessoas russas, e Putin não teve outra escolha senão começar a “libertação” dos territórios. Outro motivo que se repete nas conversas é a alusão à URSS como um estado que precisa ser recuperado, pois nele os povos conviviam pacificamente, era um país forte que venceu os nazistas e que libertou outros povos. Os anos 1990 (desde o fim da URSS até a chegada do Putin ao poder) são vistos como a fonte da situação atual, quando as decisões políticas equivocadas foram tomadas. Os anos 90 também são a memória dolorida de todas as pessoas, de meu convívio, são lembrados como caóticos, de muita insegurança, de mudanças repentinas. Entende-se que é melhor viver com alguns problemas (como o interminável mandato de Putin, os oligarcas) porém numa estabilidade e previsibilidade. Essa ideia também é muito propagada pela TV, pela narrativa midiática. “Vocês querem voltar para os anos 90?” – basta fazer esta pergunta e todas as pessoas concordam que não e ficam calmas.


Para mim é difícil avaliar até que ponto a estabilidade dos anos 2000 realmente existiu, já que mudei para o Brasil em 1999 e depois só fazia as curtas visitas para ver a família e os amigos (a estadia mais longa foi de 4 meses, em 2009, durante o doutorado). Na minha memória os anos 1990 eram os anos de liberdade, apesar de problemas seríssimos: principalmente, o uso desmesurado de heroína que se difundiu rapidamente entre os jovens, e a bandidagem. Foram dois problemas que atingiram a minha geração e a do meu irmão. Meus colegas de classe viraram bandidos (nasci em 1975), tínhamos 18 em 1993 quando a bandidagem explodiu, andavam armados, resolviam todos os problemas do bairro (e isto era muito bom, pois não precisava apelar à polícia, que perdeu o poder naqueles anos, e todos odiavam a polícia na URSS; a gíria para polícia é “lixo” (mússor)), depois foram presos. Já a geração do meu irmão (ele é de 1978) foi acometida pela epidemia de heroína e seus derivados, a partir de 1992-1993. A turma escolar de meu irmão tinha cerca de 40 pessoas, sobreviveram somente 5-10. O resto morreu de overdose, se suicidou ou foi preso por tráfico. Morávamos num bairro comum de prédios de bloco. Meu prédio tinha 8 entradas com 16 andares cada, cada andar com 10 apartamentos, era um enorme paredão de concreto. Na frente tinha mais um igual e outros prédios menores, no meio nossa escola. Teve a época quando todo dia alguém pulava do telhado ou da janela, sob o efeito das drogas. Alguns conhecidos também morreram baleados sendo bandidos. Mesmo assim, lembro desta época como um tempo de muita liberdade. Para as pessoas mais adultas foi o período de perda de empregos, de desvalorização do rublo, da inflação. O medo dos anos 1990 é bem compreensível.


Voltando ao agora. Outra pessoa pró-guerra que convivi foi o irmão da minha falecida avó, meu tio-avô de 82 anos. Novamente, uma pessoa a quem amo e com quem tenho laços afetivos fortes e com quem não entrava em discussões (nem ele comigo). Evitávamos o assunto como forma de carinho mútuo e de convivência pacífica. O não entrar em discussões se dava por dois motivos: um, eu não queria brigar com meus parentes nessas duas semanas que estava lá e entendia que as brigas iam ser feias, ferozes, pois a questão de quem tinha razão (Rússia ou Ucrânia), de quem era o verdadeiro fascista, neonazista, de quem oprimia e quem libertava, era vital, não se tratava de um ponto de vista, mas de uma convicção, um credo, algo como um princípio ético básico. As posições contrárias rachavam a sociedade, as pessoas tentavam manter as aparências de civilidade, de manter as famílias. Além disso, havia a dependência. Meu padrasto cuidava da minha mãe, não podia me indispor com ele, a gente teria que conviver no mesmo apartamento por dez dias. Meu tio-avô cuidava do meu avô adoecido e frágil, dando uma enorme força. E eu compreendia os porquês de suas ideias. Não sentia nem ódio, nem repulsa em relação a ele (meu tio-avô), mas muito carinho e afeto, apesar de tudo. E entendo por que pensa assim. Aliás entendo quase que a impossibilidade de pensar diferente. Meu tio-avô nasceu em 1940, na véspera da segunda guerra mundial. Durante a guerra, sendo bebê, passou fome, minha bisa sempre contava como tinham que comer grama e cascas de batata para sobreviver. A guerra o marcou. Agora, já idoso, vive no período de mais uma guerra, novamente contra os nazistas (segundo a narrativa governamental e midiática), e se identifica completamente com a campanha militar. A vida dele piorou muito desde o fim da URSS, quando era um taxista e vivia relativamente bem. Hoje em dia, é um senhor doente e empobrecido com aposentadoria ínfima. Hoje em dia trabalharia como um motorista de Uber concorrendo com os jovens migrantes do Cáucaso e da Ásia (que são a maioria dos motoristas dos aplicativos). O Uber, aliás, faliu na Rússia, dando lugar ao Yandex Taxi.


Meu tio-avô me disse, no primeiro dia de nosso encontro: só quero saber uma coisa – se no Brasil prevalece a versão estado-unidense sobre a operação militar (jargão oficial para a guerra) na Ucrânia. Respondi que sim e ele disse que, tudo bem, mesmo assim venceremos (nu nichego, prorvyomsya). Ele não continuou com a conversa. Numa outra ocasião me chamou para dizer algo importante, me disse – você é uma professora universitária, inteligente, quero saber que acha disso – e colocou para tocar no seu tablet uma música contemporânea que narra a morte heroica de um batalhão soviético durante a segunda guerra mundial.


Incrivelmente, a pessoa mais admirável em relação a situação toda foi o meu avô, um senhor de 92 anos, muito fraco fisicamente, porém lúcido de cabeça. Ele foi jornalista internacional soviético, trabalhou muitos anos na América Latina. O único comentário que ele fez sobre o assunto, já na nossa última conversa foi quando comentei que por tudo que consegui na vida sou agradecida a ele (ele e minha avó me criaram, morei vários anos com eles enquanto criança). E ele me disse com muita tristeza que considera falida sua vida, pois dois povos mais próximos, povos-irmãos estão em guerra.


Nessa primeira semana na Rússia percebi que as camadas da vida social se dispõem paralelamente, não se tocam. Na rua, com as pessoas desconhecidas ou pouco conhecidas, não se fala, não se comenta sobre a guerra, a vida flui normalmente, como fluía antes de fevereiro. Já no convívio familiar ou com as pessoas muito próximas se evitava falar do assunto para não provocar o estresse (e a vida na Rússia já é tensa, em muito graças à burocracia insana, mas também devido à inflação, ao desemprego) e as brigas, as rachaduras irreparáveis na estrutura do convívio afetivo, que precisava ser mantido neste período duro. E existia a terceira camada muito fina, de convívio com aquelas pessoas que compartilhavam das mesmas ideias e onde se podia falar a verdade, o que realmente se pensa. No caso de apoiadores da campanha militar, nesta camada havia a liberdade (que não existe em outras camadas, pois as pessoas temem ser reprimidas por suas opiniões, ou questionadas). No caso dos contrários à guerra, nesta camada havia precaução e paranoia.



A burocracia


Na Rússia as pessoas estão como que envoltas numa rede de regras burocráticas sem sentido, que complicam muito a vida. Toda vez que viajo pra lá há o estresse burocrático. Desta vez não foi diferente. Começou já em Portugal quando minha mãe, após olhar a foto do passaporte russo do meu filho que lhe enviei para que comprasse a passagem de trem São Petersburgo-Moscou para a gente (eu não podia comprar, pois cartões estrangeiros não funcionam mais lá) – me avisou que o gênero dele estava errado no documento. Meu filho tem cabelo longo e no passaporte colocaram o gênero dele como feminino. Quando recebi o documento no consulado da Rússia em Brasília não prestei a atenção ao detalhe. “O passaporte dele não é válido” me disse minha mãe. Liguei para o consulado russo de Lisboa, a senhora que atendeu disse que preciso voltar para o Brasil e refazer o passaporte, expliquei que é impossível e se ele poderia usar o brasileiro para entrar na Rússia. Ela já estava muito estressada e gritou no telefone – não vão deixa-lo sair de lá depois! Depois gritou de forma rude que está com uma fila e não poderia perder mais tempo comigo. Quase chorei de desespero, comecei a pensar que teria que deixar meu filho com minha amiga na França, que ele não poderia viajar comigo. Liguei, em seguida, para o consulado russo em Brasília (isso tudo no penúltimo dia de congresso, perdi uma mesa bem legal nesse momento e, depois, já não estava com cabeça boa para usufruir bem do evento; ainda bem que no dia de minha apresentação e de palestra de abertura não sabia do “detalhe”). No consulado em Brasília a moça já foi bem simpática, me acalmou e me disse para usar o passaporte brasileiro. Ela pediu para enviar a foto do documento por e-mail e me escreveu que iria consultar o ministério do exterior da Rússia e me avisar sobre o que aconselhavam. Esperei ansiosamente pelo e-mail durante toda a semana que passei em Paris e só na véspera da viagem pra Rússia recebi a resposta que, sim, meu filho pode entrar com passaporte brasileiro, porém ninguém deveria saber que ele tem a cidadania russa. Avisou também que ele, entrando lá como estrangeiro, precisaria fazer o teste PCR de detecção de coronavírus, feito no máximo 48 horas antes de atravessar a fronteira. O problema é que estávamos indo de ônibus de Helsinki, sem saber quanto tempo demoraria a passagem pela fronteira e, antes disso, tínhamos que nos deslocar da França para a Finlândia. Tivemos que fazer um teste expresso em Paris, pagando 70 euros, procuramos por dois dias pelo laboratório que fazia o teste no sábado após o almoço. Tive que ir até o laboratório no dia anterior, na sexta, para ter certeza que o faziam (na Europa a pandemia meio que já se deu por acabada e não há mais demanda pelos testes). Se o teste tivesse sido positivo, já estava combinando com minha amiga de falsificarmos o resultado. Eu já estava bastante estressada e nem havia chegado na Rússia ainda.


Detalhe: na fronteira um senhor velho deu uma olhada rápida no PCR, quase que nem olhou, não leu o QR Code. Depois a amiga estado-unidense que após o começo da guerra se mudou de Moscou para Helsinki e fez o trajeto já algumas vezes contou que sempre falsifica o PCR, já tem o template para isto e disse que eu tinha que ter lhe pedido o modelo. Eu poderia não ter gastado essa grana enorme e poupar horas de preocupação e de meu tempo.


A segunda complicação de meu filho entrar como estrangeiro na Rússia era que ele precisava ser registrado lá em algum endereço. A regra na Rússia é que qualquer pessoa que passa mais de 7 dias no país precisa fazer esse registro. Na fronteira os estrangeiros recebem um pedaço de papel (minúsculo, que é muito fácil de perder, principalmente se não souber de sua importância) com carimbo, que precisa ser validado na polícia migratória e que tem que ser devolvido na fronteira ao sair da Rússia. Sem apresentar o papelzinho, o estrangeiro não sai do país. Para obter o registro, alguém russo precisa ir na polícia junto com o estrangeiro e o registrar no seu endereço residencial (precisa ser o proprietário do imóvel; mesmo sendo inscrita no apartamento da minha mãe, eu não poderia registrá-lo, não sendo a moradora-mor), preenchendo um imenso formulário com quadradinhos minúsculos para as letras e algumas perguntas tão mal formuladas que quase sempre se comete algum erro ao preencher e aí precisa preencher tudo de novo. Não sabíamos se poderíamos registrar meu filho no apartamento da minha mãe, pois ele mesmo estava inscrito lá como cidadão russo, tínhamos medo que a polícia iria descobrir que ele também é cidadão russo e, a princípio, é ilegal entrar no pais com passaporte estrangeiro tendo a cidadania do país. Pensamos em registrá-lo no apartamento dos meus avos, onde minha irmã é moradora – mor, porém ela mora no Brasil e minha mãe só tem uma procuração para realizar alguns procedimentos burocráticos, na qual não consta a opção específica dela poder registrar as pessoas estrangeiras lá.


Fomos para a polícia com essa dúvida toda. E também para renovar meu passaporte interno que havia expirado durante a pandemia (todos precisam renovar ele aos 45 anos). Sobre meu filho terminamos descobrindo que minha mãe poderia sim registrar ele no apartamento dela, mas só na outra semana, faltando 5 dias para nossa viagem de volta para o Brasil, e meu passaporte ficaria pronto em 10 dias úteis, não sabia se ele ficaria pronto antes da minha partida. Fomos mais 4 vezes na polícia, no total fui lá 5 vezes nestas duas semanas que fiquei na Rússia. Na manhã do dia da viagem de volta fui na polícia pela última vez, expliquei à mulher que estava indo embora e precisava do passaporte, ela o fez, tudo muito rude, me disse para esperar no corredor. “Dunáeva!”, berrou, quando o documento ficou pronto e eu pude pegá-lo. Narro com detalhes, pois toda essa parafernália burocrática cansa, estressa, toma um tempo enorme, nunca se sabe se os responsáveis estarão de bom humor e as coisas fluirão ou se estarão de mau humor e nada andará. Nas últimas vezes que fui na polícia eu já estava bem tensa, nervosa e mal-humorada.


Perguntei a algumas pessoas se a burocracia é fruto do sistema soviético. Minha mãe disse que sim, com certeza. O marido da minha amiga disse que está bem pior que na URSS, pois historicamente nunca havia tantos burocratas no sistema administrativo, como havia agora na era Putin. Lembrei, porém, da literatura clássica russa, de Gógol, de Dostoiévski, de todos aqueles pequenos funcionários, com os pequenos poderes, de negar ou agraciar, com seus carimbos, com suas obrigações sem sentido.


Ah sim, ao chegar ao país e ao fazer o check-in num hotel em São Petersburgo, vi a mudança repentina no modo de agir da mulher da recepção. De uma recepcionista simpática ela rapidamente passou à burocrata irritada, pois como meu passaporte interno estava expirado (não válido), não podia mostrá-lo e pedi para me registrar com meu passaporte para as viagens ao exterior (na Rússia, assim como havia na URSS, são dois passaportes: um é como nosso RG, interno, só que nele há o carimbo com o registro residencial (é obrigatório estar inscrito em algum imóvel) e a rubrica de nacionalidade; e o segundo é para as viagens (como nosso passaporte que usamos quando vamos para o exterior)). A mulher ficou brava e disse que não pode me registrar com o passaporte para o exterior (zagranitchnyi passport), pois só o interno é permitido para isso. Perguntei porque, já que era um documento válido, com minha foto, número e tal. Ela disse que é a lei e chamou a chefe. A chefe, já muito modo burocrata antipática disse que no passaporte externo não há registro de residência, por isso não pode. Aí minha mãe entrou na conversa e disse que o quarto já foi pago, inclusive com o café de manhã. A mulher quase berrando respondeu que ok, vai ter que comprovar a residência e o café de manhã nem pensar, e se retirou. No final tudo deu certo, até o café de manhã.


A burocracia causa grande nervosismo, pessoas tem medo de infringir alguma regra, de ter alguma consequência desagradável, daí agem de forma emocional. Nos primeiros dias isso causa um estranhamento e questionamento sobre porque ninguém se indigna com essas regras estranhas. Com o passar dos dias, já me sentia esmagada pela máquina burocrática, só queria que tudo terminasse logo. Senti surpresa quando uma das funcionárias na polícia me atendeu bem e gentilmente, quase chorei, na realidade. Pensei se ela apoiava a guerra.


O turning point


No dia 20 de setembro, uma terça-feira, estávamos indo, eu e meu filho, visitar minha amiga de infância. Antes, passamos numa loja central para tentar achar algum presente para seus filhos. Esta loja, Détskiy mir, fica na frente da sede da FSB (antiga KGB), um prédio enorme, dos anos 1930, acho, com uma praça na frente. Da janela da loja percebi a praça toda cercada e havia camburões. Como foi a primeira vez, desde a chegada em Moscou, que fui ao centro da cidade, pensei que se encontrava assim já desde fevereiro. Pegamos o metrô para a casa da minha amiga e no caminho li as notícias de que o congresso havia votado pela inclusão da deserção do exército no código penal com a pena de 10 anos de reclusão, havia outras mudanças legislativas. Também li que haveria referendos nos territórios ucranianos ocupados pela Rússia. Não liguei as pontas, a ficha só caiu quando cheguei na casa da minha amiga e ela, muito nervosa, disse que seu marido saiu correndo do trabalho, pegou as crianças e correu para a polícia fazer o passaporte deles para viagens ao exterior. Vão anexar os territórios e declarar a mobilização, disse ela. O filho da minha amiga completa 18 anos em 2022.


Ficamos conversando na cozinha, assegurei a ela que seu filho poderia ir morar conosco no Brasil, que não precisava de visto para chegar lá. Também escrevi na hora para minha amiga brasileira narrando a situação e pedindo ajuda para o rapaz. Essa amiga faz doutorado na EHESS no centro de estudos russos e tem contato tanto com pesquisadores emigrados da Rússia, quanto com professores franceses que se esforçam para receber refugiados. Tentava acalmar minha amiga que começou a ficar muito preocupada, fumava freneticamente, dizia que, primeiro, o passaporte tinha que ficar pronto. Ela ligava para os filhos para saber se demorariam. Respondiam que o pai, por sua vez, estava extremamente nervoso e já havia errado três vezes o preenchimento dos formulários.


Por fim, eles chegaram. Ficamos na cozinha conversando e bebendo vinho, depois conhaque, esperando o pronunciamento do Putin que havia sido anunciado para 20h, depois postergado para 21h, depois para 22h. Finalmente, anunciaram que somente faria o pronunciamento pela manhã junto ao ministro de defesa. Havia dúvidas se seria bom ou ruim que estão postergando, se estaria acontecendo alguma disputa, se já o mataram (a vã esperança). Fumamos. Os adultos estavam indignados, xingando o governo. Jovens dizendo que tem que ir para os protestos, se decretassem a mobilização. Saí de lá tarde e fui encontrar meus amigos no centro da cidade, bem vazia.


No dia seguinte acordei às 9h para ouvir o pronunciamento. Minha mãe havia adoecido com algum vírus na noite anterior e estava dormindo e meu padrasto, aparentemente, não estava sabendo de nada. Contei que Pútin ia fazer o pronunciamento junto ao ministro de defesa e pedi para ligar a TV. Como Pútin é muito prolixo, acabei indo tomar o café de manhã na cozinha, daqui a pouco meu padrasto veio e disse que, sim, decretaram a mobilização parcial. Minha mãe também acordou e soube da notícia. Naquele momento, eles ainda não haviam entendido o que se passou e estavam tranquilos.


Passei esse dia, 21 de setembro, o dia quando de fato decretaram a mobilização, na biblioteca central, que fica na frente do Kremlin. Antes de entrar na biblioteca falei por telefone com minha amiga, ela havia me escrito “e chegou o dia de amanhã que havíamos esperado ontem”. Ela chorou, disse estar extremamente preocupada pelo seu filho (que, felizmente, é estudante de uma universidade estatal), me agradeceu muito pelo oferecimento de ajuda. Da biblioteca escutei o dia todo os sons das sirenes, vários carros do governo transitando para o Kremlin; li as notícias sobre o chamado para os protestos. Chorei várias vezes lá, fiquei com coração muito apertado pelas pessoas que iriam aos protestos e iriam ser presas, espancadas. Pessoalmente, não pude ir às manifestações, não estava integrada em nenhum grupo, estava sem o passaporte interno e precisava sair do país em uma semana. Na realidade, nem soube para qual local os protestos haviam sido chamados, pois paranoicamente saí de todas as redes sociais e do telegram antes de entrar na Rússia.


Quando peguei o metrô de volta, da biblioteca para a casa da minha mãe, parecia ser outra sociedade. As mulheres estavam com os olhos vermelhos de choro, os homens muito nervosos, todos colados nos smartfones, lendo, mandíbulas tensas, dentes apertados. Na minha frente, uma senhora segurava o “1984”.


Nos dias seguintes todos contavam quem já foi convocado, quem estava saindo do país ou tinha que sair do país e não sabia como. A vida parecia um formigueiro, com comunicação muito intensa, todas as redes pessoais e familiares foram ativadas, todo mundo compartilhando informações e se ajudando. No metrô, nos mercados, na rua só se ouviam as conversas sobre a mobilização. Já não havia mais a sensação de normalidade, já se falava que a guerra estava aqui, na porta de cada um.


Minha amiga que, apesar de lamentar a guerra, até aquele momento nunca havia compartilhado nada de material antimilitarista ou antigoverno, começou a me enviar vídeos de análises políticas (todas predizendo a iminente queda do Pútin). Minha mãe, por sua vez, começou a ficar desesperada com a possível guerra nuclear. A cuidadora do meu avô, Albina, que tem parentes no Uzbequistão e em Bashkíria, contou que seu sobrinho de 22 anos foi convocado e que lá, em Bashkíria, cada família recebeu a convocação e em cada família um homem foi requisitado para o exército. Disse ela que aconselhou a família para esconderem o rapaz, porém eles tiveram medo e ele partiu para o posto de mobilização e já foi levado embora no ônibus.


Minha amiga médica contou que já no dia 22 uma clínica inteira foi fechada em Moscou e todos os médicos convocados.


Conversei com meu padrasto que me explicou que era preciso força militar para proteger os territórios ocupados (“libertados”, segundo ele), nem tanto para as tarefas de combate; disse que faltava homens para a tarefa, que a Ucrânia tinha muitos homens e conseguia tanto atacar, quanto proteger, já para a Rússia faltavam quadros, então precisava de pessoas para isso. Ele disse que convocariam médicos, enfermeiros, operadores de tanques, soldados de combate terrestre, artilharia. Não precisariam de marinheiros.


Do dia 21 até o dia 29, quando saí do país, o assunto dominante foi este – quem foi convocado, se foi ou se fugiu, quem saiu do país, quem estava tentando sair, quem corria risco de convocação.


Minha mãe desenterrou o bilhete militar dela (na URSS e, depois, na Rússia, todo mundo que fez a graduação cursou as disciplinas militares (voénnaia káfedra), ao terminar a graduação, consta como reservista), para ver qual era a patente dela. Ela ficou muito abalada no dia 28.09 quando já ficou claro o eminente fechamento da última fronteira terrestre para o Ocidente, a fronteira com a Finlândia. Minha mãe sempre viajava para a Europa Ocidental, gostava de lá, e tem visto Schengen, ela ficou muito mal ao saber que não poderá mais, no futuro próximo, ir para a Europa. Nós, os três filhos dela, não moramos na Rússia e era muito mais rápido e barato viajar para nos visitar via Europa.


A fronteira de volta


Saímos de Moscou no dia 29 de setembro, pegamos o trem até São Petersburgo. Após a mobilização, como todos, lia compulsivamente as notícias, principalmente dos sites de mídia alternativa em russo (antigoverno e antiguerra); em casa era tranquilo realizar essas leituras usando VPN. Já no trem fiquei com medo de abrir os sites no computador, olhei para a fileira de trás, eram dois homens de aparência empresarial, nada confiável. Do lado, um rapaz jovem parecia bem agitado e exausto, pensei que, como nós, estava se dirigindo à fronteira. Em São Petersburgo chovia, pegamos um ônibus elétrico (tramvai), depois andamos debaixo de chuva fina e fria numa rua bastante escura (tudo era escuro) até a rodoviária, arrastando as malas e prestando atenção para não pisar em poças de água e não molhar os sapatos. Eu já me sentia muito triste, ao me despedir certamente por muito tempo de lá; pensava como tudo ali, apesar de terrível, me era próximo, conhecido e vital. Chuva fria se misturava às lágrimas que tentava conter para que meu filho não as visse, não queria lhe assustar com meu estado emocional. Acabamos chegando cedo na rodoviária, tinha medo de alguma confusão na partida, de que iriam cancelar nosso ônibus, pois justamente neste dia a Finlândia emitiu a norma legislativa proibindo as pessoas da Rússia de entrarem no país com os vistos turísticos (a maioria que as pessoas têm), emitidos por qualquer país do espaço Schengen. A regra iria valer a partir das 00 hs do dia 30.09 e nosso ônibus partia de São Petersburgo às 23:30 do dia 29.09.


Como ainda faltava bastante tempo, paramos num café ao lado da estação rodoviária (bem pequena), um schaurma. Esse tipo de estabelecimento salva a vida da geral na Rússia, pois oferece comida barata (as schaurmas). Meu filho ficou admirado como os rapazes que nos atenderam eram simpáticos, expliquei para ele que eram migrantes, não eram russos, provavelmente de alguma ex-república soviética da Ásia Central, por isso entendiam como as pessoas em deslocamento se sentem e tem empatia. No café tocavam as músicas pop dos anos 1990, bem alto, conhecia todas elas de cor, meu coração estava partindo de tristeza.


Ao subirmos no ônibus tudo parecia aparentemente normal, sem as perturbações. O motorista perguntava por passaportes, mostramos os nossos brasileiros. Para as pessoas com os passaportes da Rússia ele avisava que poderiam não deixar passar mas que o problema era das pessoas. Todo mundo estava bem quieto. Uma moça jovem perguntava para todo mundo com que visto estão indo, disse que torcia para que a deixassem entrar (o visto dela era turístico) e que tinha medo de que anulassem o visto caso ela tentasse passar (a Finlândia anunciou que iria anular os vistos das pessoas que tentassem passar pela fronteira após as novas regras serem anunciadas); indecisa, ela não sabia se iria ou não, decidiu ir. Não a deixaram passar, assim como o casal de jovens que se sentou na fileira ao meu lado, o rapaz certamente tentando fugir da mobilização. O que será dele?


A fronteira da Rússia passamos relativamente rápido (lá pedem para descer todas as bagagens para a revista), somente um homem de uns 35-40 anos ficou muito tempo no controle de passaportes, acabei não vendo se ele passou ou se foi barrado. Já na fronteira com a Finlândia ficamos parados durante um tempo longo, de madrugada. A enorme fila dos carros não andou nas 4 horas que ficamos lá. Na nossa frente havia um outro ônibus. Quando nosso ônibus finalmente chegou ao local do controle, o motorista pediu para descermos três pessoas por vez. Fomos logo junto a um rapaz jovem que tinha visto estado-unidense e passou o controle bem rápido. Nós também passamos rapidão com nossos passaportes brasileiros. No controle havia muitos policiais armados, algo que não havia antes, quando atravessamos a fronteira há duas semanas. O rapaz me perguntou se era legal morar no Brasil, ele escutou o que o policial de fronteira havia me perguntado, eu disse que sim, que em comparação com a Rússia qualquer lugar parecia bom, ele concordou tristemente.


Ficamos as próximas três horas num quartinho de espera, aguardando todos os passageiros do ônibus passarem. No espaço minúsculo havia três bancos de madeira e um banheiro. Havia pessoas exaustas deitadas, tentando dormir. A mulher ao lado contou que estava lá já há seis horas, esperando por alguma carona, ela foi a única que permitiram passar do carro, o resto teve que voltar. Esse espaço de espera era vidrado, dele se viam as cancelas, a longa fila dos carros com os faróis acesos, o nosso ônibus, do qual desciam três por três as pessoas; dava pra ver quem voltava e recolhia as bagagens (quem foi barrado). Eu ficava imensamente feliz por cada pessoa que conseguia atravessar a fronteira. Todos no espaço estavam cansados, tristes, desolados. Assim me despedi da Rússia.





Sobre a guerra, sobre a Ucrânia


Após passar duas semanas no país não sei afirmar se as pessoas são contra ou a favor da guerra. É um tipo de pergunta que formulamos estando fora. Lá os problemas parecem ser muito mais complexos, interlaçados, a situação de opressão, como um fundo, sempre presente. A guerra se sente como o inverno, um clima muito difícil, inevitável, com o qual precisa conviver. A percepção geral que tive em relação às pessoas que não apoiam abertamente a invasão na Ucrânia é que é inútil tentar mudar a situação, pois é impossível, não há o que fazer, a realidade é esmagadora, o governo é invencível. E a guerra parecia uma realidade distante para aqueles que não tinham amigos ou parentes próximos na Ucrânia, isto até a mobilização.


No Brasil, acompanhei a polemica nas redes sociais sobre a validade ou não de realizar as performances e intervenções urbanas nas cidades da Rússia usando a tinta vermelha, aludindo aos crimes de exército, dizendo à população que são cúmplices de assassinatos, que suas mãos estão cheias de sangue. Estando fora, eu concordava com os argumentos de quem estava na Rússia e dizia que esse tipo de ação poderia traumatizar as pessoas que já estavam traumatizadas, que poderiam ser gatilhos para as situações de violência pessoais (a vida na Rússia, realmente, é muito violenta), que os refugiados da Ucrânia poderiam topar com as imagens fortes e não seria legal etc. Na Rússia, sentia desesperadamente falta dessas ações nas ruas (entendo que realizá-las exige a consciência de provável prisão por 10-15 anos e a impossibilidade de sair do país), fiquei convicta de que, sim, precisa jogar na cara de pessoas que estão numa guerra, que há mortes diárias, precisava de tinta vermelha espalhada no metro, nas ruas. No começo da guerra aconteceram várias ações do tipo, gestos de desespero tentando dialogar, conscientizar a sociedade, de provocar um sentimento de culpa, afinal. Como foram duramente reprimidas, cessaram de existir. Mas são necessárias, penso e sinto, muito necessárias.


Além de certa conivência ou indiferença em relação à guerra, é comum o preconceito em relação às pessoas da Ucrânia (novamente, por quem não tem amigos ou parentes próximos lá). Usa-se coloquialmente e frequentemente a gíria “khokhly”[1] ao se referir a ucranianos, de forma pejorativa. “Khokhol” e “khokhlushka” são termos usados pejorativamente em vez de ucraniano/ucraniana.


Percebi também a inutilidade de envio de notícias das mídias alternativas para as pessoas na Rússia que apoiam a guerra ou não apoiam a resistência ucraniana. Para qualquer narrativa ocidental ou da mídia alternativa em russo, para qualquer fato há uma contrainformação proferida pela mídia oficial de Putin. No dia 28 de setembro, se não me engano, uma caravana de carros com civis foi bombardeada – pela Rússia, segundo toda a imprensa internacional. Na Rússia a notícia foi de que o bombardeio foi realizado pelo exército da Ucrânia. Como argumentar que a TV da Rússia mente, se o contra-argumento é de que a mídia ocidental também mente. Nas raras vezes que tentei narrar algum fato (como quando encontraram a vala comum na cidade de Iziúm libertada pelo exército da Ucrânia, com mais de 400 corpos de civis e com os vestígios de torturas), houve desconfiança sobre a veracidade das informações. Na realidade, a sensação que tive é de que falar dos fatos que contradizem a narrativa oficial cria uma reação contrária, de ódio, de rejeição que só une as pessoas ainda mais na negação da realidade. “Não tem como saber a verdade no meio de uma guerra” – foi a frase que mais escutei estando lá.


Porém, um fato positivo foi o de que quase não se assiste mais a TV. Mesmo as pessoas que assistiam muita TV antigamente, hoje em dia, assistem bem menos. Talvez porque a TV é bem insana. Em São Petersburgo, quando fiquei dois dias no hotel, fiz o esforço de ver todos os programas noturnos do Primeiro Canal (o oficial, mas há vários, todos mais ou menos similares). Depois não tive a oportunidade, nem tempo de assistir mais. O gênero mais difundido de programas televisivos é o talk, quando um apresentador convida alguns entendedores do assunto que ficam debatendo sobre uma questão “quente” do dia. Entre 16h e 20h (quando sai o noticiário do dia), vi uns três talkings desses, que ficam intercalados com os recortes de notícias, mostrando as vitórias do dia do exército da Rússia, entrevistas com os soldados, com a população dos territórios “libertados” (ocupados). Os apresentadores mantêm um tom de histeria, um deles cada dia aparecia com a camiseta diferente – com letra Z, depois com a letra V. O mote geral da narrativa oficial é que do lado da Ucrânia só há mercenários estrangeiros; que a Rússia é a vanguarda de descolonização (sim, usa-se o termo “descoloniazação” e “pós-colonialismo” a torto e a direito!) e descoloniza a Ucrânia ajudando o mundo a combater a hegemonia da Europa Ocidental e dos EUA. Fala-se muito de como a Europa Ocidental colonizou e dominou o mundo e como a hegemonia persiste, como a Rússia luta para acabar com a hegemonia do Ocidente, para libertar os países oprimidos. Como a Rússia não precisa do Ocidente, dos valores ocidentais que foram impostos à população da Rússia. É muito presente o discurso sobre o neonazismo ucraniano, chamam o exército da Ucrânia e o governo de neonazistas e fascistas, de extrema direita.


Nessa narrativa oficial a Rússia é chamada de Ásia (em contraponto ao Ocidente), fala-se de sangue asiático da população russa. Que o Ocidente colonizou intelectualmente a Rússia e os vizinhos orientais.


Também são frequentes as alusões à possibilidade de uso de armamento nuclear (referem-se a essa possibilidade como à “escalação vertical”, algo que imediatamente me lembrou do “imbrochável” do nosso presidente).


Nos dias que assisti à TV, a Ucrânia avançava num contra-ataque de sucesso, libertando amplos territórios. Nenhuma palavra foi dita a respeito. Não escutei uma análise militar séria, precisa, somente as bravatas e tudo nesse tom histérico, muito exaltado.


Outro assunto presente na TV: denúncias dos fakes ucranianos. Notícias sobre os fatos divulgados na mídia internacional são apresentados detalhadamente como fakes, “desmentindo” exaustivamente seus conteúdos.


Os programas televisivos parecem estar num looping, mudando um pro outro sem mudar o tom e o conteúdo.


Já nas cidades vi alguns cartazes com os retratos dos soldados – apresentados como heróis que morreram defendendo a pátria. Em São Petersburgo vi também uma exposição fotográfica de rua “Olhos de Donbass insubmisso”.

 

[1] A versão mais comum é que este termo existe em alusão ao penteado usado pelos cossacos de Zaporíjia antigamente (quando raspavam a cabeça deixando somente um tucho de cabelo na frente). Qualquer que seja sua origem linguística, seu uso é disseminado na Rússia como forma de um tratamento discriminatório em relação à população da Ucrânia.


 
 

Epílogo (algo que não pode ser escrito em português)


То, что невозможно выразить на португальском.


Родина-мать.


(Я знаю, что сопоставлять государственные/национальные общности с родительскими фигурами — вредно и неправильно. Здесь я использую этот образ исключительно как поэтическую метафору)


Под гнётом матери. Это не мама, а мать. Жить у матери. Мать давит, мать командует, мать недовольна. Мать безучастна. Наезды и предъявы. Мать довлеет. Как довлеет Храм Христа Спасителя над Москвой.

«Дунаева!» - орёт она, выдавая паспорт.


Она неласковая, не заботливая. Она требует, строит, завидует, она всё время раздражена.


Российское государство — это подавление и контроль. Это постоянное разрушение личности. Задача российского государства и общества с детства убить личность, заставить быть как все¨: сидеть ровно, не выёбываться, не качать права. Постоянно давят и строят родители. Главный посыл — не выделяться, не иметь собственного мнения, выполнять беспрекословно самые идиотские требования. Это особенно чувствуется в общении с путинскими ровесниками. Они прикидываются либералами и нормальными, но из них прёт советское. Мелочность и расточительность одновременно. Злословие. Зависть. Потребительство (дорваться до магазинов). Предыдущие поколения, родившиеся во время революции или между войн — те, кто строил СССР, всё-таки верили в идеалы коммунизма, в необходимость социальной справедливости и т. д., имели принципы, были нравственнее. У них ещё оставались или религиозное воспитание, или наивные коммунизм и интернационализм, антикапитализм.

***


«Радуйся, радуйся», пели в церкви. В церкви тихо, тепло, красиво, умиротворительно. Можно сосредоточиться на хорошем, на мыслях. Там красиво поют. И она совсем рядом.


***


Да, ещё Россия — это надрыв. Этот надрыв постоянно стимулируется надрывными песнями (от Высоцкого, романсов, до современной попсы), разговорами по душам, наставлениями, всей этой нравственной физиологией, абсолютно неприличной для европейцев. Это можно было раньше считать душевностью, какой-то искренностью, но сейчас это считывается как грубое залезание в душу. Это один из признаков полного неуважения к личному пространству, к личным границам, постоянное грубое их нарушение: по мелочам, в личном общении, и глобально, на уровне государства. Это неуважение к личному времени, к тому, что называется «удобством, комфортом»» (отсутствие пандусов и лифтов на вокзалах; дикие бюрократические правила). С русскими некомфортно при личном общении , они или показно замкнуты, или лезут в душу, или её выворачивают.


Не советский/русский, в этом смысле, человек — деда. Хотя он и очень жёсткий, принципиальный.


Он единственный, кто скорбит о войне, кто не говорит о ней всуе (всуе говорю о ней и я).


В России все любят учить жизни и стараются растеребить душу.


Уже после суток в Финляндии начинает отпускать, потому что нет бытового хамства, грубости. Все вежливые и доброжелательные. Здесь никто друг друга не рассматривает. Это другой мир, с той же природой.


В России люди постоянно применяют насилие — к себе и к окружающим. Кричат друг на друга. И я понимаю, насколько я русская, в этом ужасном смысле. Как я тоже злословлю, какие у меня тиранические, деспотические черты.


В Финляндии очень много русскоязычных. Один мужик нервно орал в трубку в магазине. Достаточно встретиться взглядом и понятно, что это соотечественники. До мобилизации, когда мы ехали в Россию, по приаэропортовскому шоппингу гуляли сытые и хамоватые люди из России. Финнам, по выражению лиц, было за них неудобно. Их вид, их поведение вызывали недоумение. На обратном пути, в Хельсинки, у людей из России (или у русскоязычных украинцев) было совсем другое выражение лица — озабоченное, напряжённое.


На переходе границы, после мобилизации, когда мы возвращались, людей было жалко, очень. Все были усталые, растерянные, униженные. Раздавленные, подавленные люди. Уезжающие в никуда. Семь человек из автобуса не пропустили. Они были молодые, худые, не наглые. Одного молодого парня я запомню насегда, его завернули. Может быть его пошлют на войну и он умрёт, погибнет.


***

Всё это ненормальное, всё это грубое, наглое, неадекватное поведение объясняется так называемой «особенностью» русского пути, русских людей, непохожестью на остальных. Этим кичатся и этому потакают.

***

Когда смотришь из окна самолёта на облака — пухлые, золотые, бело-голубые, не верится, что под ними могут взрываться бомбы.

***

Отвыкание — привыкание — отвыкание.

***

Я не чувствую зависти к европейцам, я хочу быть как они. Жить так же спокойно, без российских и бразильских проблем. У них расслабленные и улыбчивые лица, они вежливы.


Россия осталась за шлагбаумом на границе с Финляндией, тёмной, холодной, дождливой ночью, со светом фар длинной очереди машин, с людьми, надеявшимися на то, что смогут сбежать оттуда. Я сидела в отстойнике, пройдя финский контроль, с немногими русскими, прорвавшимися через кордон, и смотрела туда, в этот мрак, дождь, ужас. Там оставалось всё родное, всё, что я понимаю без слов, что я так хорошо знаю. Помимо описанного выше, Россия — это вечная неприкаянность.


А моя родина — это русский язык, который не имеет никакого отношения к великой русской литературе или к правительству Путина и к войне. Не надо жить там, чтобы быть дома, - достаточно вспомнить Набокова, Бродского, Гончарову или Ларионова. Анна Ахматова продолжала бы быть Анной Ахматовой уехав из России, Гумилёв и Мандельштам и многие другие были бы живы. Язык не умирает и передаётся по наследству. Есть Ася и Петя.

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