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WALTER BENJAMIN: migrante e refugiado

Esther Leslie


No dia do aniversário de Walter Benjamin, a IK publica a tradução de uma palestra proferida pela pesquisadora Esther Leslie na White Chappel Gallery em Londres. Das origens materialistas da melancolia, tropeçando no fetichismo da mercadoria, a passo de ganso pelas origens militares de Berlim no radio para crianças, de navio para as colônias espantado diante dos fuzileiros alemães no Camarões, em viagens de ácido entre Paris e o Marrocos e através de exortações que parecem ter saído de "O caminho do sucesso em 13 teses", Leslie projeta profanas iluminações - umas inusitadas, outras estouvadas. Resta saber qual é qual. Boa leitura!


IK

 

Walter Benjamin era um refugiado ou um migrante? Nos dias de hoje ele seria considerado um ou outro? Isso que significaria atualizar, tornar contemporâneo, trazer Walter Benjamin para o Agora? Possivelmente. Ao menos lança uma certa luz histórica sobre o político - ou o contrário, uma luz política sobre o histórico. Walter Benjamin era um migrante. Ele começou a sair em retirada da Alemanha em 1927, em busca de outros lares - Moscou, Ibiza, Dinamarca, Itália. Voltou a trabalhar na Alemanha, fez trampos, trabalhou no rádio, para jornais e revistas.


Mas ele sentiu os tempos de mudança. Com o modo precário de trabalho de escritor freelancer, ele estava sempre procurando o lugar mais barato para viver - comer, dormir - e ler e escrever. Ele relata em seu diário em 1932 que, depois de gastar todo o seu dinheiro, considerou seriamente viver em uma caverna em uma ilha no Mediterrâneo. Escreveu que suportaria qualquer privação para não precisar voltar a Berlim. Benjamin foi surpreendido por forças históricas, desde o lar burguês acolchoado de sua infância até a caverna sem conforto dos despossuídos. Mas ele tomou essa decisão de mudar - em busca de um algoritmo de custo de vida e capacidade de ganhos, o lugar onde se poderia obter uma renda mínima e o local onde uma renda mínima era suficiente para sobreviver - a fim de melhorar sua vida, economicamente, enquanto fazia o que o atraía, e às vezes tinha que ser um picareta, entregando resenhas ou programas de rádio ou curvando seus textos e idéias para se adequar aos diversos contratantes. Viveu assim enquanto foi possível. Mas, depois de 1933, já não era mais possível fazer muito. A eleição de Hitler foi uma ruptura e ao mesmo tempo não foi. Benjamin viu a sua ascensão e sabia que era outra maneira de continuar a opressão e a exploração que constituíam o capitalismo. Até a menor resenha escrita por Benjamin se abria para sua compreensão desse fato. Aqui, ele apresenta as continuidades entre a reação bismarckiana do final do século XIX e o presente:

A barbárie do presente já estava germinando naquele período, cujo conceito de beleza mostrava a mesma devoção à limpeza que o carnívoro exibe em relação à sua presa. Com o advento do nacional-socialismo, uma luz brilhante é lançada sobre a segunda metade do século XIX. Esses anos marcaram as primeiras tentativas de transformar a pequena burguesia em um partido e aproveitá-la para fins políticos determinados. Isso foi feito por Stoecker, no interesse dos grandes proprietários de terras. O mandato de Hitler veio de um grupo diferente. No entanto, seu núcleo ideológico manteve o do movimento de Stoecker de cinquenta anos antes. Na luta contra um povo colonizado internamente, os judeus, o pequeno burguês bajulador passou a se ver como membro de uma casta dominante e desencadeou seus instintos imperiais. Com o Nacional-Socialismo, entrou em vigor um programa que impunha os ideais do Gründerzeit - brilhando calorosamente à luz da conflagração mundial - na esfera doméstica alemã, especialmente a das mulheres (Walter  Benjamin. Gesammelte Schriften, III, 572-579; Review of Sternberger's Panorama. In Selected writings, V.4, p.145-152).

Essas linhas são da resenha de Benjamin do Panorama, ou Vistas do século XIX de Dolf Sternberger. Aqui, ele observa como uma pequena burguesia do final do século XIX, sob a influência de Adolf Stoecker, o progenitor das teorias da conspiração judaica que lamentam a influência do capital judaico, “passou por uma aprendizagem para futuros poderes, revivida e ampliada sob o nacional-socialismo" e como os "estratos burgueses médios" abandonaram o poder político, de modo que "o caminho foi aberto para o capitalismo monopolista e, com ele, a renovação nacional".


Essa renovação nacional deveria ocorrer sem os judeus ou internacionalistas. Um migrante sai porque não pode mais viver, sobreviver ou porque pode apenas sobreviver onde atualmente se encontra. Um migrante segue em frente. Benjamin tentou seguir em frente. Ele de fato seguiu em frente. De novo e de novo, procurando lugares para viver. Passou grande parte do seu tempo aguardando alguns centavos. Esta carta de 1938 para Adorno - responsável por intermediar qualquer chance de um relacionamento financeiro bem-sucedido com o Instituto de Pesquisa Social [de Frankfurt], expressa bem o medo diário de rejeição e fome e a patética sujeição em tentar parecer agradável à qual ele foi compelido:

A chegada de sua carta, cuja espera, como você pode imaginar, preocupou-me muito com o tempo, era iminente quando meus olhos caíram um dia num capítulo de Regius. Sob a rubrica "À espera", lê-se: "A maioria das pessoas espera cada manhã por uma carta. Que a carta não chegue, ou contenha uma negativa, sucede em geral àqueles que já estão tristes". Quando dei com essa passagem, estava triste o suficiente para descobrir nela um palpite e um pressentimento sobre sua carta. Se portanto em seu conteúdo - pois não falo de sua postura inalterada - havia algo que me fosse um estímulo, este é o fato de que as suas objeções, por mais que os seus amigos sejam solidários com elas, não devem ser interpretadas como uma recusa (Adorno, p.416, 2012).

Se há melancolia e ansiedade na vida de Benjamin, ela deve estar localizada de maneira bastante concreta nas dificuldades em ser publicado e no medo da pobreza que daí advém. Benjamin lista as razões de sua tristeza nesta carta - a situação dos judeus na Alemanha, o desesperado prognóstico da doença de sua irmã, o medo de que ele não seja naturalizado na França por razões políticas, o que o levou a adotar o outro pseudônimo como escritor. Benjamin tomou medidas para mitigar essas decepções e obstáculos e seguir em frente, buscando novos lares e novas gentilezas, o migrante que quando pôde, aceitou convites.


Contudo, 1933 - a declaração do Terceiro Reich - também representa outra coisa. O migrante é transformado em refugiado. Devido à impossibilidade de permanecer - mesmo que quisesse - e permanecer vivo, Benjamin é transformado em refugiado. Em 28 de fevereiro de 1933 ele escreve para Gershom Scholem:

O pouco autocontrole, com que as pessoas das minhas relações encaravam o novo regime, já se desvaneceu e agora diz-se que o ar está irrespirável; circunstâncias que aliás perde a transcendência, à medida que estão nos estrangulando. Isto sobretudo no plano econômico. (Benjamin, p.44, 1993)

A agonia econômica que há tanto tempo Benjamin conhecia, dada a sua incapacidade de garantir qualquer coisa além dos trabalhos precários, continuou - embora houvesse adicionado a isso o medo da violência e da deslegitimação. O migrante vira refugiado - de forma que sua experiência se torna um pouco diferente. Mais movimentos. Mais países. Mais gentilezas, ou sua ausência. Mais buscas. Em sete anos de exílio em diferentes partes da Europa, ele - o copioso escritor e recebedor de cartas - tem 28 mudanças de endereço.


Brecht, ao saber do seu suicídio na fronteira da Espanha com a França, escreveu um poema, citado abaixo, no qual o nomeou refugiado - ou melhor, a palavra equivalente alemã, 'Flüchtling', [re-fugido] alguém que está em fuga, que enfatiza, ao contrário, o ato de se mover, que contudo não alcança um lugar de refúgio. Benjamin foi preso há 75 anos, "em fuga", e talvez permaneça para sempre em fuga, um Flüchtling, um fugido. Como expresso por “O suicídio do refugiado W.B.” (Brecht, 1986, p.190):

Soube que você levantou a mão contra si mesmo Antecipando assim o algoz. Oito anos banido, vendo a ascensão do inimigo Por fim acuado numa fronteira intransponível Você transpôs a que pareceu transponível Reinos desmoronam. Chefes de bandos Andam como estadistas. Já não enxergamos Os povos sob os armamentos. O futuro está em trevas, e as forças boas São fracas. Tudo isso você viu Ao destruir o corpo sofrido.

Brecht enfatiza a capacidade de observação de Benjamin - vendo a ascensão do inimigo',tudo isso 'você viu’ - em vez de 'tudo isso ficou claro para você'. Observar o inimigo, à medida que cresce em força, reunir as suas tropas para a guerra, obscurece o futuro. São esses poderes de observação que continuam a tornar Benjamin fascinante. É ele, que em cada pequena expressão parece funcionar micro-cosmicamente, por meio de energias condensadoras, tanto negativas quanto positivas, sua reconstrução de uma coisa, um evento, um gesto relativo à coisa, palavra ou momento observado, conectado a história do mundo e aos futuros possíveis.


Benjamin modela pequenos mundos nos quais as forças espaço-temporais são amplificadas, ampliadas, isoladas e tornadas claras. Talvez até de forma exagerada - pois isso significa literalmente que “acumula incansavelmente ruína sobre ruína” como a "catástrofe única" que Benjamin notavelmente coloca diante do Angelus Novus, de Klee. O método de Benjamin de olhar para as coisas, coisas que ele explode no continuum do tempo e do espaço, condensa as forças que operam no Agora, no momento, mas em relação ao que tem sido e ao que poderia ter sido.


As Passagens (Arcades), por exemplo, retratam um micromundo que Benjamin observou e explorou, mas também criou, de certa maneira reconstruído em palavras. Nestes mundos, como em nosso mundo maior, as contradições se concentram. O nacionalismo e o internacionalismo formam uma importante contradição projetada nas arcades como microcosmo - cujo futuro estava sendo disputado na Espanha enquanto Benjamin escrevia suas anotações sobre na década de 1930. A arcade / [galeria ou passagem] - uma passarela recoberta por vidro e ferro entre as ruas, alinhada com lojas e cafés de luxo e habitada de várias maneiras, por flâneurs, consumidores e cortesãs - era um espaço significativo para a formação da da vida moderna. Incubou modos de comportamento que viriam a figurar de forma mais proeminente no decorrer de um século: distração, compras como atividade de lazer, sedução pelo espetáculo das mercadorias, displays de “não-toque” e exibição extravagante. As arcades eram uma forma arquitetônica internacional e estavam repletas da pilhagem colonial. O império impulsionou uma expansão na produção de mercadorias, em termos de novas fontes de matérias-primas que poderiam ser trabalhadas e vendidas nos novos mercados e zonas de influência.


Benjamin via as primeiras galerias comerciais como 'microcosmos' do poder imperial e da sociedade de consumo


Os efeitos do Império, contudo, refletem as próprias nações imperialistas e fornecem as matérias-primas de um crescente mercado de commodities. O imperialismo tomou conta do mundo como totalidade - um mercado total e uma fonte produtiva completamente explorável. O imperialismo unificava o mundo através de rotas comerciais e troca ou pilhagem de mercadorias. As primeiras arcades foram construídas, em Paris, para o retorno de Napoleão da campanha egípcia. Esse microcosmo pode servir de tela para uma reflexão onírica sobre mundos distantes, mediados pelo fetiche da mercadoria ou pelo espetáculo da distração. O imperialismo foi uma tremenda fonte para o espetacular. Em dezembro de 1885, por 2 anos, o novo protetorado alemão dos Camarões apareceu como espetáculo em Berlim, depois em Dresden e Munique, em um Panorama de Louis Braun. Um panorama colonial, uma pintura envolvente de 115 metros de comprimento, sob holofotes, mostrava um céu abafado, palmeiras e bananeiras, com a marinha alemã atacando, perseguindo, ferindo e matando negros rebeldes. Benjamin escreve sobre sua entidade irmã, o Panorama Imperial, onde terras distantes, terras que estavam sendo capturadas militar ou economicamente, foram brevemente exibidas para educação, entretenimento e lucro.

'Do panorama das colônias alemãs em Berlim: assalto dos fuzileiros alemães aos rebeldes negros Joss e Hickory nos Camarões'. [Illustrirte Zeitung, 2 January 1886]


No entanto, Benjamin mostra que, se alguém olharmos de forma oblíqua, não são necessários galerias ou panoramas para captar ou desencadear essa visão imperial. Os espaços da cidade, especialmente aqueles que são percebidos apenas de forma inesperada ou passageira e, portanto, disponibilizados para uma maneira particular de olhar, já podem ser microcósmicos, no sentido de que produzem mundos dentro de mundos, mundos indecisos, mundos realmente existentes, motivado pela história e pelo poder, e ainda assim deslizando sob várias formas de invisibilidade. Depois de caminhar por Paris na década de 1920, Benjamin relata, em seu Projeto Arcades:

Excurso sobre a Place du Maroc. Não apenas a cidade e o intérieur a cidade e o campo aberto podem se entrecruzar; tais entre cruzamentos podem dar-se de maneira muito mais concreta. Existe a Place du Maroc em Belleville; este tristonho monte de pedras, com suas habitações populares, tornou-se para mim, quando me deparei com ele numa tarde de domingo, nao só o deserto marroquino, mas também e ao mesmo tempo um monumento do colonialismo imperial. Naquela praça, a visão topográfica entrecruzava-se com o significado alegórico e, nem por isso, perdeu seu lugar no coração de Belleville. [W.B, Passagens, p.933]

Belleville é uma multiplicação de pontos de vista. Há uma visão topográfica, que vê as formas do terreno, suas colinas e depressões, ou, neste caso, sua areia, que é evocada nas pobres moradias feitas de pedras. Ao mesmo tempo, o local evoca o imperialismo colonial, o arrebatamento de Marrocos pelos franceses, sua desolação e tudo o que isso implica em termos da história política e da moralidade. Benjamin continua:

O poder de despertar semelhante visão é habitualmente reservado aos alucinógenos. E, de fato, os nomes de ruas são em tais casos como substâncias inebriantes que tornam nossa percepção mais rica em esferas e camadas do que na existência comum. Deveríamos levar em consideração o estado ao qual elas nos transportam, sua virtude evocadora - e isso também refere-se a certos estados cíclicos - , mas isso ainda diz pouco, pois o elemento decisivo aqui não é a associação e sim a interpenetração e perscrutação das imagens. O paciente que percorre a cidade durante horas noite adentro e se esquece de voltar para casa talvez estejas ob o domínio desta força. [W.B. Passagens, p. 933]

O nome da rua está carregado por um novo significado: uma poesia disponível para todos; uma estratificação e amplificação de sentidos e significados, que se derramará sobre aqueles que estão abertos a eles; uma catarata de conexões, levando para dentro e para fora da compreensão da história política e da verdade emocional.


Benjamin extrai das coisas que testemunha uma interpenetração de imagens - um efeito de montagem, uma imagem dialética - que é uma concentração das energias do mundo, em seu estado mais potente, amplificado por causa da constrição do espaço que as mantém. O microcosmo, para Benjamin, não é o mundo autossuficiente que se fecha em relação àquele em que reside. Ao contrário, é a versão miniaturizada do mundo maior, uma destilação de seus poderes negativos ou um enclave, uma possível forma utópica futura existente no mundo e também por ele impedida.


Esses microcosmos que estimulam a imaginação e o pensamento se expandem e são ampliados, como as ondas que transmitem os pensamentos que emanam do microcosmo do estúdio de rádio e induzem as crianças de Berlim e Frankfurt a modos de pensar, perceber, traçar conexões, neutralizar a história convencional de suas cidades, seu dialeto e suas moradias, revelando cidades dentro da cidade e iluminando suas formas.


Essa tarefa é levada a cabo por Benjamin em uma palestra para crianças de 1930. Casernas de aluguel (Benjamin, 2015) é uma exploração da arquitetura de Berlim, baseando-se no trabalho de Werner Hegemann em Das Steinernde Berlin. Começa observando como as formas da cidade emergiram das necessidades militares. Desde o reinado dos Hohenzollerns, Berlim é uma cidade militar e, em alguns pontos, um terço de sua população estava ligada ao exército, como soldados ou seus dependentes. Nos primeiros dias, os soldados e suas famílias eram alojados nas casas de outros berlinenses, mas no final do século XVIII já havia soldados demais para que pudessem ser abrigados dessa maneira. As casernas foram construídas para combatentes e suas famílias e todos permaneceram dentro dessas estruturas sob uma virtual prisão domiciliar. A solução arquitetônica da caserna, Benjamin continua, foi adotada em toda a cidade, quando Frederico, o Grande, ordenou que a cidade fosse construída no céu para abrigar uma população crescente. O estado militar prussiano condenou muitas pessoas à superlotação, a falta de ar e luz e a condições miseráveis ​​de moradia.


Mas, o pior ainda estava por vir, em 1858, quando o Ministério do Interior da Prússia executou o "horrível" Plano Hobrecht para o desenvolvimento de Berlim. O plano tornou dominante as casernas de aluguel e fez a densidade das moradias aumentar. O Estado relutava em comprar terras privadas e, em vez disso, criou um "plano astuto" para incentivar o desenvolvimento privado desenfreado e não regulamentado. Em 1871, durante os dois anos do Gründerzeit, encorajou-se um mercado especulativo para a construção de casas em larga escala, com a idéia de expandir a cidade para 2,1 milhões de habitantes.


Quando as construções de fato começaram, prevaleceram duas regras: um: o maior número possível de apartamentos empilhados sob o mesmo teto; e dois, que o edifício parecesse magnífico por fora. Especialmente nas periferias, foram construídas as chamadas boulevards que iam de um extremo ao outro do distrito e depois desapareciam ou terminavam em uma rua lateral. Até as villas erguidas ali eram na maior parte apenas casernas de aluguel disfarçadas, com apartamentos no porão, dormitórios apertados e áreas comuns reduzidas. As vastas e pretensiosas salas de estar davam para a rua, independentemente de ela correr para o norte, nunca permitindo que a luz do sol entrasse na sala. O egoísmo, a miopia e a arrogância que deram origem às casernas de aluguel permaneceram na ordem do dia em quase todos os lugares em Berlim até a Primeira Guerra Mundial.


Contudo, essa palestra de rádio termina com esperança. “Particularmente Tempelhof é um exemplo daquilo que mudou para melhor em Berlim desde a revolução. Basta comparar as casas construídas entre 1912 e 1914 na área da antiga praça de manobras do exército com aquelas da cidade-jardim de Tempelhof Felde, cada uma delas aninhada em meio à vegetação”. Os 'castelos fortificados’ uma frase que Benjamin empresta dos ‘Neues Wohnen, neues Bauen’ [Prédio novo, Vida nova] de Adolf Behne, (1927), também estão prestes a dar lugar a arranha-céus, concreto, aço e vidro. Benjamin se refere a imagem da revista Uhu, de abril de 1930. Os prédios terão varandas e terraços ajardinados para habitantes que 'serão gradualmente transformados por eles, tornando-se mais livres, menos medrosos, mas também menos hostis e infinitamente agradecidos àqueles que lideraram a luta pela sua libertação'.

Benjamin acreditava que a arquitetura moderna poderia ajudar a construir um novo tipo de sociedade humana


Um plano mais novo surgirá e transformará Berlim em uma cidade na qual um Estado responsável é obrigado a atender às necessidades de seus cidadãos e desenvolvê-las em direções que conduzam ao seu bem-estar. O estado molda a vida de seus cidadãos, negativamente através da geração de leis e "positivamente" através do fornecimento de moradias e outras manobras econômicas mesquinhas e de grande escala. Tudo o que surge depois da guerra, por trás de uma revolução, ainda que fracassada, parece proporcionar algo melhor para o povo, uma reforma que também reforma a cidadania. Mas Benjamin vai além, em um gesto que paira entre a alegação de que os ambientes sociais moldam a consciência e a noção de determinismo tecnológico: os habitantes desses blocos serão refeitos, reconstruídos por eles mesmos pelos novos ambientes, novos materiais, novos arranjos, pois estes transformam a vida social e política. Observe como a caserna de aluguel é um pequeno mundo que se transforma para dentro, produzido por uma forma social brutal. O arranha-céu que entusiasma Benjamin é outro tipo de microcosmo, virado para fora, vítreo, alto. Um microcosmo pode concentrar as forças negativas do mundo e replicá-las em miniatura, tornando-as legíveis para um comentarista crítico como Benjamin. Ou pode mediar as possibilidades futuras de um novo mundo, ser um mundo em miniatura, projetando em si energias democráticas.


O que Benjamin vê e remedeia são objetos ou lugares que permitem uma evocação das negatividades obscurecidas e das rotas possíveis - as perspectivas, talvez, tanto do migrante quanto do refugiado. Suas descrições de microcosmos revelam o que torna o lugar onde estamos tão ruim, o que precisa ser radicalmente diferente para tornar a vida habitável. Espaço e tempo estão ambos concentrados no microcosmo; as forças da reação se reúnem e explodem do passado para o presente. De uma perspectiva, existe apenas o mesmo inferno contínuo de opressão e exploração. Mas, o tempo dobrado sobre si mesmo também se rompe de maneira prismática, se espalha para fora de suas entranhas outras vezes, gerando outros destartes que podem se tornar "agora", a possibilidade de fomentar a novidade, até mesmo a novidade que é sempre a mesma novidade que se derrama dos olhos de uma eterna criança.


Benjamin vê mundos dentro de mundos e tempos dentro de tempos. Essa postura é fundamental para ele. Em um pequeno artigo sobre a Vogue alemã em Paris, em 1929, ele explica que "existe um conhecimento ultravioleta e infravermelho desta cidade". Toda cidade tem esse aspecto extra-sensorial - seu análogo literário ou fotográfico que sombreia, ilumina, mina e substitui o aspecto da habitação cotidiana. Esse conhecimento ultravioleta e infravermelho desejaria fornecer outros fins e outros começos para Benjamin: nenhuma morte na fronteira; um manuscrito completo e não o seu rumor; e uma cidade que talvez não o tivesse escorraçado como um errante. E, no entanto, ainda há mais para descobrir. Não precisamos continuar escrevendo fantasias das outras vidas possíveis de Benjamin. Mais recentemente o descobrimos como adepto do rádio, pedagogo, escritor de contos, poemas e enigmas. Adicionamos essas outras facetas a Benjamin, o colecionador, o sociólogo, o alegorista, o crítico literário, o escritor de diários, o pai, o místico, o marxista, o pós-moderno, o desconstrucionista, o judeu, o flâneur, o ativista estudantil e terrorista, o assaltante, a vítima…


Esses novos Benjamins emergem de empreitadas editoriais, do esforço de recortar o tecido existente e redirecioná-lo, estendido, encontrando peças que permaneceram nas sombras ou foram desvalorizadas. Se você tem um conceito, então algum valor pode ser gerado. E esse processo de reavaliação, de explosão de conteúdos nunca antes desejados sob a luz pode vir de qualquer lugar. Isso ainda é verdade, agora mais do que nunca. Desde que os escritos de Benjamin em alemão entraram em domínio público em 2011, há inúmeras edições de seu trabalho, livros on-line, reais, livros digitais, além de coleções temáticas, aleatórias, comentadas, gratuitas e selvagens. Ele é virtualmente viral. Suas palavras proliferam sem controle pela web. Em outros lugares do mundo, edições elegantes e filosóficas de seus textos nascem mais laboriosamente.


Chegamos agora à morte de Benjamin - e a de seus últimos companheiros. Benjamin teve azar. No mesmo dia em que chegou à fronteira entre a França e a Espanha, foram enviadas ordens para o fechamento da fronteira. Se ele e seu grupo de refugiados tivessem chegado um dia antes, não teria sido impedidos de entrar na Espanha. Benjamin, apátrida desde 1939, foi interrompido pelo tempo em um campo de concentração e por uma caminhada pelas montanhas que exauriram um homem com uma saúde tão ruim. Ele possuía documentos para os EUA, mas não tinha visto de saída francês. Atingiu a fronteira do intransitável. A história do que acontece a seguir, neste dia, há 75 anos, é bem conhecida, embora os documentos que a relacionam sejam confusos e parciais e o mistério envolva a morte - um mistério explorado pelo filme 'Who Killed Walter Benjamin', de David Mauas .


Mas voltemos ao que resta dele, senão da sua memória, lá em Port Bou. O memorial de Dani Karavan para Benjamin, na cidade onde ele cometeu suicídio, emprega o idioma do memorial pós-conceitual como obra de arte. Um poço estreito leva-o até o mar perigoso, para nos fazer pensar em perda, perigo, morte. Gravada no vidro do memorial está, em várias línguas, uma frase de Benjamin, que observa: “É mais árduo honrar a memória dos sem nome do que a dos renomados. A construção histórica é dedicada à memória dos inomináveis”. Essa frase das anotações de Benjamin no final de sua vida insiste em que os oprimidos são constantemente roubados de sua história e que sua memória está sempre 'em perigo' de erradicação, minada, como diz "a favor das grandes e oficiais narrativas do poder", a "procissão triunfal em que os governantes de hoje pisam sobre os que estão esparramados", em que a memória histórica é "entregue como a ferramenta das classes dominantes".

O memorial de Benjamin em Port Bou, onde ele cometeu suicídio


Na nota introdutória do ensaio “Sobre o conceito de história”, Benjamin critica a recontagem histórica que depende de recitar as artimanhas de heróis gloriosos da história de forma monumental e épica, e não está em posição de dizer nada sobre os 'sem nome', aqueles que são os trabalhadores da história, assim como os que sofrem os efeitos da brutal ação histórica de outras pessoas. O próprio modo de construção histórica de Benjamin ​​é dedicado à memória dos sem nome. Lembra os oprimidos da história, vítimas e seus feitores desconhecidos. Benjamin constrói uma nova visão do passado, na qual o historiador testemunha uma brutalidade sem fim cometida contra os 'oprimidos'. Ele entende que essa foi a tarefa de Marx em O Capital. Benjamin lê o livro como um memorial anti-épico, pulsando no presente, insistindo em reparação. O esboço do trabalho de Marx é apresentado como um contrapeso à ofuscação da genuína experiência histórica. Marx memoriza o trabalho dos inomináveis, cujo sofrimento e energia produziam "riqueza" em todas as suas formas, inclusive nas vastas acumulações de mercadorias.


O memorial de Karavan a Benjamin atua como memorial a outros, a muitos, que foram vítimas dos fascismos europeus. Ali onde Benjamin passou por um caminho da Espanha para a América, outros tomaram caminhos diferentes, fugindo de Franco para a França. Os movimentos são muitos. Os motores são muitos. Eles não pararam de se mover. Para trazer isso para o Agora - o Agora de Walter Benjamin -, estamos cercados, mas mantidos longe de muitos milhões de pessoas sem nome. E a arbitrariedade de saber se alguém é capaz de fazer a travessia em um dia ou no outro também não mudou - ou melhor, explode de volta ao nosso presente. O memorial de Karavan a Benjamin atua agora, mais do que nunca, como um memorial para os outros que ainda estão em movimento. Sempre me ocorreu que sua vista para o mar Mediterrâneo em turbilhão poderia confundir os espectadores casuais que pensariam que foi ali que Benjamin conheceu sua morte, em vez de em algum quarto de hotel sujo da cidade. Hoje, porém, esse corpo de água do Mediterrâneo, não tão distante, consome o corpo de migrantes e refugiados - de pessoas. E eles são compelidos a fugir aos milhões.

As pessoas em movimento e sem nome de hoje na costa do Mediterrâneo

 

Referências


Adorno, Theodor. Correspondência 1928-1940 - Adorno Benjamin. Ed. Unesp. 2012.

Brecht, Bertolt. Poemas 1913‐1956. São Paulo, Brasiliense, 1986.

Benjamin, Walter. Correspondência. Ed. Perspectiva, 1986.

Benjamin, Walter. A hora das crianças: narrativas radiofônicas. Nau, 2015.

Benjamin, Walter. Passagens. Ed. UFMG, 2018.

Benjamin, Walter. Gesammelte Schriften, Band III: Kritiken und Rezensionen. Sukhamp Verlag 1991.

Benjamin, Walter. Review of Sternberger's Panorama. In Selected writings, V.4. Harvard University Press, 2003.


Tradução: Allan C.

 

Casernas em ruínas


A palestra de Esther Leslie trata do périplo de Benjamin pela Europa, entre a condição de migrante e refugiado, sempre com a ameaça do fascismo lhe arranhando os calcanhares. Entre o vários temas tratados, está o programa de rádio para crianças feito por Benjamin sobre as "Casernas de Aluguel" de Berlim. Replicada como miniatura das forças negativas do mundo, as casernas tornaram-se microcosmos da estrutura militar de Berlim, que em certo momento as construiu para abrigar os soldados e seus familiares. Essa estrutura habitacional/militar chegou a compôr cerca de 1/3 de toda a população da cidade. Ao ler essa entrevista, me lembrei do filme que vi há pouco tempo e que tem bastante conversa com as Casernas de Benjamin. O filme é o "Alemanha Ano Zero". Aqui, Rossellini, iniciando o percurso do neo-realismo italiano, filma a Berlim de 1948, em plena reconstrução, tentando emergir dos escombros. Na trama, um jovem de 12 anos leva em si a contradição das misérias dos anos do pós-guerra aliadas às sombras da educação do Estado nazista. O resultado horrendo da história parece ter relação com esse caráter egoísta da caserna de aluguel, "um pequeno mundo que se transforma para dentro, produzido por uma forma social brutal." Aqui, Rossellini mostra a destruição física de Berlim junto com as permanências fossilizadas da mentalidade nazista, mesmo após o final da 2° GM.

Link para o filme "Alemanha Ano Zero": https://www.youtube.com/watch?v=JKmZEm_OYwM&t=4s


Bruno X.


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