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[BESTIÁRIO 2] O terror branco do Conde Drácula na cidade

Série Bestiário #2


Allan C.

Algumas produções para cinema e TV recentemente realizadas nos EUA abrem um franco diálogo com as histórias de Amadou Diallo, Breonna Taylor, George Floyd e tantos outros homens, mulheres e crianças que tiveram as suas vidas ceifadas nas mãos da violência policial na esteira do racismo estrutural e do recrudescimento da crise do patriarcado capitalista. 12 anos de escravidão (2013), Cara gente branca (2017) Pantera Negra (2018), estão no mesmo assoalho histórico das revoltas que culminaram no Black Lives Matter e que agora prometem azedar a reeleição dos Agentes Laranja, Trump e Bolsonaro.


Os protestos contemporâneos estão para a luta por direitos civis dos anos 1950 e 1960 como os filmes atuais estão para o Blaxploitation, o subgênero que foi capaz, pela primeira vez na história do cinema norte-americano, de trazer protagonismo às pessoas racializadas no interior da indústria cultural, não só para os atores, mas produtores, diretores e grande parte da equipe técnica. Na apropriação que Tarantino faz de Django (1966) podemos enxergar diferenças neste aspecto, mas também - e principalmente - na manutenção dos estereótipos que outras produções foram capazes de superar.


Bem diferente é o caso de Vampiros versus Bronx (2020), um singelo filme para TV que reorienta o estereótipo em direção a um novo arranjo de significados: "Vocês sabem como começa. Os branquelos com bolsas de pano? Sempre é o primeiro sinal!


A referência direta de Vampiros vs Bronx é o Blade (1998) no qual Wesley Snipes faz um caçador de vampiros. Mas a sua referência indireta é Blacula, o vampiro negro (1972), que abriu o caminho para ambos através do esterótipo. O efeito mais decisivo de Vampiros versus Bronx, no entanto, reside em por às claras os violentos processos de embranquecimento urbano - com a especulação imobiliária no centro - através da explicitação dos símbolos da branquitude que, apesar de portarem a violência de racialização, são em geral tomados como positivos, falsos ‘ponto zero’: a modernização, a verticalização, a 'revitalização' urbana, passando pela eugenia higienista até o vampirismo e a morte social da cidade.


Nosferatu (1922)


No manuscrito original de Bram Stoker, de 1897, o Conde Drácula cumpre uma verdadeira jornada de passagem dos macabros castelos rurais da aristocracia em decadência aos prédios urbanos. Sua travessia é relatada em primeira pessoa por Jonathan Harker, agente imobiliário tornado lacaio do vampiro. Tanto na adaptação não autorizada de Murnau, Nosferatu (1922), como na inquietante releitura de Herzog, também chamada Nosferatu (1972), na pele de Klaus Kinski, a entrada do vampiro na cidade figura como a chegada da Peste que tem no agente imobiliário o seu facilitador. O órgão gótico da trilha sonora de Murnau é o tapete sonoro sobre o qual os caixões do Conde invadem a cidade, assombrando os infiéis com a promessa de fazer todos viverem encaixotados.

Prédios-caixão da Muribeca


Pausa brasileira: em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife, os cerca de 70 edifícios da Muribeca ficaram conhecidos como prédios-caixão devido ao risco de desabamento de todo o conjunto habitacional, desocupados a partir de 2003. O nome Muribeca, do tupi, 'mosquito persistente', carrega um estranho mau-agouro: um manuscrito colonial relata a descoberta de uma cidade perdida por um bandeirante chamado Muribeca, com prédios de mais de um andar, arruinados e abandonados.


As assombrações brasileiras merecem ao menos capítulo inteiro no bestiário da modernização: do falido coronel absenteísta que se torna lobisomem, às ruas mal assombradas por fantasmas assustados com o escuro no Recife Velho de Gilberto Freyre - o fantasma brasileiro é tão moderno que tem uma queda pela iluminação pública. Tenho amigos que juram que o terror n'O Horla de Maupassant se deve à esplêndida barca brasileira que atraca no rio Sena carregada da escravidão colonial. Mas estas já são outras estórias.


Já em Herzog, a trilha de Popol Vuh experimenta uma profanação dos corais religiosos, oferecidos no altar da indústria cultural como tema de Krautrock para os entediados citadinos em suas casas de aluguel forradas do mesmo veludo púrpura do interior dos caixões, como o homem-estojo de Walter Benjamin - Gogol.



Em um primeiro nível, a imagem do vampirismo branco sobre a população racializada se refere ao parasitismo de um grupo social sobre outro. Na prática, de fato, a especulação imobiliária exerce uma força parasitária entre as populações urbanas. Também do ponto de vista simbólico, essa representação faz sentido, afinal os corpos são exauridos em função da sua posição na relação: cara, cor, acento, sexo, classe. Mas, o terror branco atravessa paredes. O vampiro invade os dormitórios das torres de aço, vidro e concreto. Nas cidades vampirizadas, quem não morre de fome e de frio, morre de medo.


A imagem do pálido vampiro sugador da vida tem o seu momento de verdade em cada corpo racializado estirado no chão. Se observada a partir de um ponto de vista oblíquo, essa imagem guarda ainda outros níveis. Podemos ver no livro Bram Stoker a representação da modernidade como um assombroso acontecimento no qual a maquinaria capitalista aparece figurada como fantasmagórica. Karl Marx viveu na Inglaterra em um período de florescimento das narrativas sobre vampiros. E Marx lança mão do tenebroso imaginário gótico em suas elaborações ao longo de O Capital, em diversas ocasiões: ‘O Capital é o trabalho morto que, como o vampiro, vive apenas sugando trabalho vivo, e vive quanto mais trabalho é capaz de sugar’; O prolongamento da noturno da jornada de trabalhoapenas mata ligeiramente a sede do vampiro pelo sangue vivo do trabalho’. O vampiro não lhe deixa escapar ‘enquanto ali houver ao menos um músculo, um tendão ou gota de sangue para ser explorado’. Em A condição da classe trabalhadora na Inglaterra, Engels chega a apontar a metáfora diretamente para a ‘vampiresca classe proprietária’. E, no entanto, o colapso da modernização transmutou a sanha vampiresca: 'um cadáver domina a sociedade: o cadáver do trabalho morto'. [Manifesto contra o trabalho].


Se considerada no contexto mais amplo da teoria de Marx sobre a forma social da dominação do capital, a imagem do vampiro emerge com o cheiro forte do enxofre. O capital é vampiresco porque exerce um domínio branco do trabalho morto sobre tudo, debaixo da capa sulfúrica da sua objetividade fantasmagórica. E poucos objetos revelam o fetichismo da mercadoria com tanta nitidez como o prédio de concreto, massa inerte e absoluta, assombrando a vida na cidade. Assim, com um susto, a imagem toma a forma da dominação abstrata mediada por coisas, que é o Capital, ele mesmo vampiresco.


 

Série Bestiário


#2 O terror branco do Conde Drácula na cidade


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